Portos nacionais como porta de entrada de contrabando na mira da Procuradoria Europeia

Agência Lusa , AM
3 mar, 07:03
Porto de Leixões

Portugal tem oito investigações ativas na Procuradoria Europeia

Os portos de Leixões e Sines, mas também as fronteiras aeroportuárias nacionais, são uma preocupação crescente para a Procuradoria Europeia em relação a crimes de contrabando, agravada pelo cenário provável de guerra comercial a envolver a União Europeia.

Portugal tem oito investigações ativas na Procuradoria Europeia (EPPO, sigla em inglês) que dizem respeito a crimes aduaneiros, ou seja, crimes de contrabando, adiantou à Lusa o procurador europeu português, José Ranito, a propósito da divulgação do relatório anual de atividades de 2024 deste organismo judicial da União Europeia (UE).

“Antevê-se uma guerra comercial, portanto isto envolve uma atuação vigilante da UE relativamente a produtos que vêm de fora. (…) É uma preocupação que temos relativamente a Leixões e Sines, mas também nas fronteiras aeroportuárias. Temos identificados crimes nesta área em que Portugal está a servir de porta de entrada para outros países”, disse José Ranito.

A tentativa de mascarar a proveniência de produtos com origem na China, taxados “mais gravosamente” pela UE para proteção do mercado interno de práticas de ‘dumping’ (vender abaixo do preço de custo), são um dos motivos na base dos crimes aduaneiros, mas a EPPO, a nível geral, tem também sinalizado a tentativa de através deste tipo de crime contornar sanções impostas à Rússia pela invasão da Ucrânia.

José Ranito manifestou a preocupação do agravamento dos crimes aduaneiros “num cenário internacional em que há a afirmação comercial de vários blocos geopolíticos, em que a Europa está no meio”.

Sobre as 44 novas investigações abertas em 2024 na representação nacional da EPPO, José Ranito admite “um aumento tendencial das investigações que poderão dizer respeito a crimes relacionados com fundos europeus”, que deverá também agravar-se face ao período de coexistência de vários programas de fundos comunitários em execução.

Os programas de recuperação e resiliência (PRR) dos vários Estados-membros são um alvo crescente de denúncias e investigações ativas, um cenário a que Portugal não escapa, com oito investigações em curso atualmente, mas o procurador europeu português não quis comentar o eventual impacto das medidas recentemente adotadas no país para facilitar procedimentos e acelerar a execução das medidas previstas.

“Uma das características do PRR é a necessidade de execução num curto espaço de tempo. Relativamente aos sistemas de controlo não opinamos, porque não fazemos parte da arquitetura da montagem do sistema nem fomos convocados para fazer análise ao perfil de risco da corrupção, é algo que deferimos para as entidades nacionais que têm esse mandato”, disse.

Sobre a fraude ao IVA, que permanece, em Portugal e em todo o espaço de atuação da EPPO, como o tipo de crime que mais prejuízo causa aos interesses financeiros da UE, José Ranito adiantou que a Comissão Europeia está a preparar alterações legislativas relativas ao “modo de monitorização das transações intracomunitárias” com o objetivo de “antecipar a deteção e impedir este tipo de crimes”.

O IVA intracomunitário está a ser usado por crime organizado que antes se dedicava a outras áreas, apontou o procurador José Ranito, explicando que isso se deve também à “própria arquitetura do IVA no espaço da UE”, que permite lesar os cofres dos Estados “e, reflexamente, os cofres comunitários”, uma vez que parte deste imposto entra diretamente para o orçamento da UE.

“O que estamos a ver é crime planeado, crime organizado, disperso por várias jurisdições, com apoio legal, apoio contabilístico, utilização do sistema financeiro e isto é algo que nos preocupa”, disse o procurador europeu.

José Ranito destacou a “tripla dimensão” do impacto deste crime – prejuízo financeiro direto, a violação do princípio de igualdade de oportunidades para operadores económicos e a segurança interna, um dos sinais de alarme lançados pelo relatório de 2024 da EPPO e que o procurador português associa também aos crimes de contrabando.

“Até à existência da EPPO as autoridades nacionais tinham uma visão muito umbilical dos impostos que eram devidos em cada um dos Estados. Acabámos por tentar aplicar uma visão diferente, o que nos interessa é o espaço da UE como um todo e não apenas o dano em IVA em Portugal. Creio que esta é evidentemente uma mais-valia da nossa atuação em crime transfronteiriço. É por isso que também nos mostramos disponíveis para ter um papel a dizer na violação das sanções impostas à Rússia”, disse.

Portugal tem de investir em meios para a Procuradoria Europeia

Portugal tem de investir nos meios alocados à Procuradoria Europeia, alertou o procurador português, que quer mais procuradores e equipas policiais dedicadas que permitam fazer mais do que apenas uma acusação deduzida desde o arranque do organismo.

“No ano de 2024 nós não conseguimos concluir nenhum processo com acusação e a Roménia conseguiu no mesmo espaço de tempo deduzir 18 acusações. Portanto, isto tem uma consequência direta na nossa produção. Pelo volume de trabalho, pela complexidade dos processos, é manifesto que o número de procuradores europeus delegados que temos neste momento em Portugal é insuficiente”, disse à Lusa José Ranito, o procurador português na Procuradoria Europeia (EPPO, sigla inglesa), a propósito da divulgação do relatório anual de atividades relativo a 2024.

A comparação com a Roménia não é feita por acaso. O país é um dos seis entre os 24 Estados-membros da EPPO – para além da Bulgária, Grécia, Espanha, Chipre e Itália – que já tem equipas policiais dedicadas, mas não só.

O país de 19 milhões de habitantes, praticamente o dobro de Portugal, tem 20 procuradores delegados, contra os seis de Portugal, tem 16 assistentes para os procuradores, contra os quatro de Portugal, e tem também equipas dedicadas só para análise financeira.

“Não temos equipas especializadas de investigação e desde que iniciámos operações, a EPPO em Portugal deduziu uma acusação e isto é uma performance que nos deixa preocupados”, disse José Ranito.

Portugal abriu 44 novas investigações em 2024 e não conseguiu concluir nenhuma. A chamada ‘Operação Admiral’, de fraude ao IVA, mantém-se como a única acusação da representação nacional na EPPO e aconteceu em 2023, estando ainda em julgamento.

Em visita a Portugal, a procuradora-geral europeia sublinhou junto das autoridades e Governo do país a necessidade de equipas dedicadas, mas o procurador José Ranito já apresentou ele próprio as dificuldades da equipa ao novo procurador-geral da República, à ministra da Justiça e ao seu gabinete e também ao ministro das Finanças, num processo de diálogo para justificar a necessidade, por exemplo, de mais dois procuradores delegados em Portugal, aumentando para oito o número nacional, um pedido feito já em 2022 ainda sem desfecho.

“Tem que haver definitivamente aqui um investimento e é esse o diálogo que estamos a manter (…). Não vemos do outro lado uma postura de bloqueio, mas por enquanto a situação não tem alterações”, disse.

A consequência de não o fazer, alertou, será “um cenário de estrangulamento da capacidade de resposta”, face ao aumento da carga de trabalho em 40% resultante das novas investigações abertas em 2024 e aquele que se espera pela tendência de crescimento nas fraudes aos fundos, segundo estimou o procurador nacional.

“A nossa filosofia não é competir com as autoridades nacionais, é reforçar a arquitetura antifraude e darmos um valor acrescido na resposta em termos de ação penal neste tipo de crimes e, portanto, não pretendemos minimamente competir com meios que estão ao dispor das autoridades nacionais. Penso que a existência de equipas dedicadas é absolutamente essencial”, defendeu José Ranito.

O procurador apontou a necessidade de integrar elementos da Polícia Judiciária (PJ), Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e Guarda Nacional Republicana (GNR) em equipas policiais dedicadas.

A EPPO tem atualmente 24 Estados-membros, com a adesão em 2024 da Polónia e da Suécia.

O organismo, que funciona como um Ministério Público independente e altamente especializado, entrou em atividade a 01 de junho de 2021 e tem competência para investigar, instaurar ações penais, deduzir acusação e sustentá-la na instrução e no julgamento contra os autores das infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União (por exemplo, fraude, corrupção ou fraude transfronteiriça ao IVA superior a 10 milhões de euros).

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