É difícil de compreender que ainda não se tratem as cefaleias e a enxaqueca com a seriedade que merecem. São a primeira causa mundial de incapacidade nos indivíduos com menos de 50 anos, afetam cerca de dois milhões de portugueses, e ainda são retratadas socialmente como situações triviais e momentâneas. Quem sofre vive na sombra, estigmatizado, incompreendido por colegas, amigos e familiares, prisioneiros de uma situação que a sociedade insiste em desvalorizar.
Quem tem enxaqueca não tem só uma dor de cabeça. Tem uma doença neurológica. Invisível, mas devastadora. Incapacitante, roubando horas, dias de vida, passados com dor e sintomas exasperantes que impossibilitam as atividades mais básicas da existência, levando à total inação. Imprevisível, aprisiona as pessoas num viver incompleto, onde a antecipação do sofrimento anula a capacidade de sermos autores da nossa própria narrativa.
Mais frequente e severa nas mulheres, a enxaqueca acentua as desigualdades de género, especialmente em ambiente laboral. As mulheres que sofrem são vistas como fracas, incapazes de "resistir" a uma "simples dor de cabeça", perpetuando um ciclo de incompreensão e preconceito que precisa ser desmistificado.
É precisamente em ambiente laboral e empresarial que a ignorância sobre a enxaqueca se torna especialmente perversa. De um lado, colaboradores sofrem em silêncio, escondendo a dor por medo de serem mal interpretados, desvalorizados, de perderem oportunidades ou o próprio emprego, muitas vezes utilizando dias de férias para colmatar faltas e evitar a discriminação. Ao contrário do comum preconceito, a maioria abdica do seu tempo pessoal nos dias seguintes às crises, na tentativa de compensar o trabalho perdido, na ilusão que dispõem da sua vida livremente. Nalguns contextos laborais, são diariamente expostos a ambientes físicos e psicológicos adversos, que aumentam o risco de ter crises, agravando a doença.
Do lado das empresas, a iliteracia e a falta de compreensão condicionam a ausência de políticas de apoio adequadas, contribuindo para uma força de trabalho exausta e, finalmente, improdutiva. As empresas que começam a despertar para a necessidade de investir em programas de bem-estar físico e psicológico, sejam alertadas para incorporar estratégias para a prevenção e tratamento das cefaleias, dada a sua prevalência e impacto. Não se trata apenas de um gesto de compaixão, mas de uma questão económica: menos absentismo e presenteísmo, mais produtividade e um ambiente de trabalho saudável. Um estudo recente na população ativa, em Portugal, estima um custo de perda de produtividade anual atribuível apenas à enxaqueca de cerca de mil milhões de euros por ano. Será suficiente para abrir os olhos?
Ainda não, pelo menos para os responsáveis pelas políticas de promoção da saúde nas empresas, nem para quem se encarrega da gestão dos cuidados de saúde no país. Apesar dos fatos inegáveis – doenças altamente prevalentes, incapacitantes, com um impacto económico significativo e tratáveis – e dos esforços da MiGRA (Associação de Doentes com Cefaleias e Enxaqueca) e da Sociedade Portuguesa de Cefaleias, em produzir e divulgar dados nacionais úteis às autoridades de saúde, ainda não se vislumbra um interesse real em ajudar essas pessoas. Parece paradoxal, até porque não é necessário investimento financeiro para melhorar. Apenas gerir melhor, melhorar a eficiência dos serviços, chamar os parceiros certos a colaborar, organizar e dar prioridade às pessoas, e não às políticas. Está provado que o investimento realizado na organização adequada dos serviços de saúde para as pessoas que sofrem de cefaleias é inferior ao valor dos benefícios obtidos em retorno. E melhorar a eficiência do sistema de prestação de cuidados de saúde para patologias que afetam quase 20% da população é um passo significativo para melhorar o sistema, como um todo. É suficiente, para conseguir ver?
Nos cuidados de saúde, a situação não é muito melhor. Os médicos dos cuidados de saúde primários e os farmacêuticos comunitários, que são a primeira e mais importante linha na abordagem a estas doenças, não são capacitados, na sua formação académica, para conseguir gerir as cefaleias, e a enxaqueca, de forma eficiente. E sem eficiência, com a escassez de recursos humanos sobejamente conhecida e o peso assistencial imposto pelas métricas dos planos nacionais de saúde, a atenção dada a estes doentes, tornando-se escassa, arrisca-se a ser inútil. E a primeira porta, a mais importante, fecha-se. É quando começa a escurecer....
Nos casos mais ligeiros, há quem se resigne, tolere... sobreviva. A cada mês perde um, dois dias de existência, em sofrimento... o sofrimento molda, o tempo reconfigura-se. De repente, num ano perderam 24 dias, numa década são 8 meses, numa vida a dor torna-se uma companheira que eclipsa parte da sua existência.
Para os casos mais graves, multiplicam-se os relatos de anos de sofrimento e tentativas frustradas de encontrar um profissional de saúde que consiga ajudar ou um qualquer tratamento que funcione. Nos cuidados mais diferenciados, e apesar dos neurologistas estarem conscientes do impacto esmagador da enxaqueca, uma parte ainda enfrenta dificuldades em geri-la de forma eficaz e alguns desvalorizam-na. Um inquérito realizado pela MiGRA revelou estatísticas alarmantes: 60% dos doentes em acompanhamento regular expressam insatisfação com o seu tratamento, e entre 55 a 70% permanecem alheios às opções de tratamento avançadas.
Em Portugal, tanto no seio do sistema nacional de saúde (SNS) como no sistema privado, existem centros especializados no tratamento das cefaleias e enxaqueca, destinados aos 1 a 2% de casos mais complexos - 20 a 40.000 portugueses. Nestes, médicos dedicados ou equipas multidisciplinares dispõem de técnicas avançadas e acesso às terapêuticas mais recentes. No entanto, desde a introdução destes fármacos em 2019 a realidade pinta um quadro sombrio: em média, apenas cerca de 300 doentes são tratados por ano, em todo o país. Nos centros privados, o acesso à medicação é frequentemente um privilégio limitado, mesmo para quem pode pagar as consultas, devido aos elevados custos de tratamento que escapam ao amparo do SNS. No SNS, a verdadeira limitação reside na escassez de tempo médico dedicado a esta função, que resulta numa oferta de serviços dolorosamente insuficiente – apenas 13% dos doentes que teriam indicação conseguem aceder. Assim, discriminamos o acesso à medicação e fracassamos, de forma contundente e angustiante, em atender as necessidades das pessoas mais afetadas, cujas vidas são lenta e penosamente destruídas, deixando muitas à mercê de dor diária ou quase diária, e das suas inerentes e progressivas complicações. Estamos de olhos abertos, mas na escuridão.
Mas há estrelas no céu... poderá o seu brilho guiar-nos para um futuro menos doloroso?
Conseguiremos parar de tratar a enxaqueca e as cefaleias como problemas menores?
Trabalhemos, juntos, para uma mudança de atitude em todos os níveis - pela melhoria da compreensão sobre a doença na sociedade e nas empresas, pela adequação da formação dos farmacêuticos e dos médicos de cuidados de saúde primários, pelo real empenho dos decisores e financiadores dos sistemas de saúde, pela otimização do acesso a cuidados de saúde equitativos, atempados e adequados!
A enxaqueca precisa ser levada a sério, as pessoas que sofrem merecem receber o tratamento adequado e eficaz, que lhes permita viver suas vidas ao máximo. Porque o tratamento existe, e não se trata de um luxo ou de uma extravagância. Porque o tratamento devolve tempo de vida, que é perdido, dolorosamente, a conta-gotas.
A inação já não é uma opção. É hora de agir e colocar as pessoas com cefaleias e enxaqueca no lugar de prioridade que merecem.