Mulheres portuguesas que tentaram envenenar os maridos e foram apanhadas

24 abr 2022, 08:00
Veneno (Pexels)

Uma teve ajuda de um amigo que era médico, a outra envenenou o marido, 28 anos mais velho, através de uma sonda nasogástrica enquanto estava acamado. Estas são as histórias de "Sofia" e de "Rita" que mostram como o envenenamento ainda é uma realidade em Portugal. Um método que é usado em especial no meio familiar. Preferem um modo "mais oculto e disfarçado de matar" o cônjuge, diz o advogado Pedro Barosa

Entrou no quarto da unidade de cuidados de saúde continuados (UCC) de Guimarães, a enfermeira passou-lhe a medicação para ela dar ao marido que ali estava acamado e começou então a preparar tudo para dar continuidade ao seu plano secreto. Apressou-se a pôr o veneno que trazia na sonda nasogástrica (tubo que vai da narina ao estômago) colocada no marido, para o alimentar, pois há alguns dias que a saúde dele andava a piorar. Passado dez minutos, a enfermeira, que já andava desconfiada, regressou e encontrou na mesa-de-cabeceira, para além do copo que continha a medicação e de um copo com água, um outro copo que tinha uma substância cor-de-rosa igual à que estava na sonda.

Alarmada, a profissional de saúde chamou uma colega que revistou a mala da mulher e descobriu um saco plástico que tinha resíduos com uma cor rosa avermelhada: não tardou até que se descobrisse que a mulher, de 57 anos, andava a tentar envenenar e matar o marido, de 85.

A história de Sofia e Carlos – chamemos-lhe assim - é relatada com detalhe num acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2015 em que se avalia um recurso sobre a pena aplicada de homicídio qualificado, na forma tentada.  Conheceram-se quando ela tinha 37 e ele 65, pois Carlos era amigo do pai de Sofia.  Na época, divorciada e mãe de duas crianças acabou por se envolver com Carlos, viúvo com dois filhos adultos. Mas a história acabou com ela a colocar veneno, raticida, na sopa e na sonda de alimentação do marido.

Também Rita montou um plano parecido: quando o marido estava internado no hospital, a recuperar de uma tentativa de assassinato orquestrada por ela, decidiu envenená-lo, mas com um pesticida. Deu-lhe uma dose de organofosforados, um inseticida orgânico que a “arguida conhecia porque o próprio padrasto tinha morrido na sequência de uma intoxicação pela substância”, relata um outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de setembro de 2021, onde se conta a história de Rita e de Vasco –nomes que não são reais, mas servem para contar a história deste casal.

Frieza e calculismo

“Sofia” e “Rita” são protagonistas de dois dos casos que, nos últimos anos chegaram aos tribunais portugueses, e que dão conta que o veneno ainda é hoje usado como arma de crime.

Segundo o advogado Pedro Barosa, os processo-crime por homicídio qualificado por meio de envenenamento tendem a ocorrer mais frequentemente no meio familiar por uma razão: “Como não se quer que seja atribuída a causa da morte, em vez de utilizarem armas, preferem um modo mais oculto e disfarçado para conseguirem matar a outra pessoa”.

Foi assim que agiu Sofia, que decidiu fazer Carlos “ingerir raticida e rodenticida em quantidades saúde e não a envenenamento”, relata o acórdão.  Por isso, por várias vezes Carlos teve de sair da Unidade de Cuidados Continuados para ser internado no hospital pois começava a “apresentar sintomas de graves distúrbios de coagulação do sangue, palidez acentuada, hemorragias, sangue na urina perdas hemáticas pela boca, conteúdo alimentar com vestígios de sangue vivo”, descrevem os juízes, acrescentado que ao mesmo tempo o doente passou a evidenciar “sinais de dor e sofrimento, incluindo palidez acentuada, suores frios, prostração e gemidos ligados a dores abdominais, mostrando-se especialmente reativo”.  Quando melhorava, Carlos regressava para a UCC e Sofia voltava a usar veneno.  

A frieza é uma das características deste tipo de ação criminosa, lembra  Pedro Barosa, explicando que há quase sempre o “cálculo de um plano, que tem de ser dissimulado, de forma oculta e fria”.

Foi este também o comportamento de Rita, segundo contam os juízes no acórdão do Supremo que há seis meses confirmou a sua pena de prisão de oito anos e meio. Como queria matar o marido, contratou uma pessoa para lhe dar um tiro.

No dia combinado, um individuo com um revolver de calibre 6.35 mm disparou três tiros sobre Vasco, na garagem do edifício onde o casal vivia. Mas ele sobreviveu e quando estava no hospital a recuperar, Rita aproveitou um momento a sós com o marido acamado e administrou-lhe o inseticida orgânico, tendo “Vasco” entrado em coma. Mas mais uma vez a equipa médica conseguiu tratá-lo a tempo suficiente. Como a segunda tentativa de homicídio falhou, “Rita” convenceu um amigo seu, médico, a ajudá-la a envenenar o marido. Segundo o acordão do Supremo Tribunal de Justiça, “Rita” disse-lhe que “Vasco” “era perigoso e que receava que o mesmo lhe fizesse mal se saísse do hospital”.

Assim, perto da data prevista para “Vasco” ter alta, ambos visitaram a vítima e o amigo de “Rita”, vestido com a bata de médico, injetou benzodiazepinas na barriga do internado que acabou por conseguir sobreviver novamente. Isto, “através de uma lavagem ao estômago e administração de carvão ativado, contudo devido à intoxicação permaneceu prostrado e sonolento durante vários dias”.

Usar este tipo de substâncias é, no entanto, hoje em dia uma pista fácil de detetar, garante à CNN Portugal, o investigador forense Ricardo Dinis. “Não é propriamente um método inteligente” usar este tipo de substâncias tóxicas comuns para assassinar alguém. Isto porque, acrescenta, nos últimos 100 anos a evolução tecnológica permitiu que hoje seja fácil encontrar vestígios destas substâncias no corpo de uma vítima. “Historicamente, as intoxicações homicidas eram provocadas por cianeto, pesticidas, ou arsénio colocados na alimentação da vítima. mas hoje, uma amostra de urina ou de sangue revela depressa a substância pela qual a pessoa foi intoxicada e isto não é um bom plano porque quando queremos matar alguém, o objetivo é não deixar prova”, afirma.

"Homicídio com veneno é mais comum em Portugal em áreas rurais"

O especialista explica como se realiza. “Fazemos pelo método de comparação entre aquilo que a vítima tem dentro de si e o padrão. Mas quando são utilizadas substâncias que o cidadão comum não tem acesso, estas substâncias escapam aos métodos que os laboratórios utilizam”, explica o investigador forense e professor universitário do Instituto de Ciências de Saúde e da Faculdade de Medicina do Porto.

Sofia usou um dos mais tradicionais: o raticida. Segundo Ricardo Diniz, historicamente, o homicídio com recurso ao veneno é mais comum em Portugal em áreas rurais, “porque são zonas onde as substâncias tóxicas - como os pesticidas, raticidas e o arsénio - são mais facilmente acessíveis”,

O especialista confirma que nestes casos “o efeito para a vítima não é imediato e que é necessária a contínua administração de substâncias tóxicas para, de facto, concretizar o homicídio”.  O que Sofia fez durante algum tempo. O investigador diz ainda que no caso concreto do uso de raticídios, estes “impedem a coagulação do sangue, provocam AVCs, choque e podem levar à morte”. Carlos revelou todos estes sintomas e o veneno piorou o seu estado de saúde, mas morreu resultado “de um estado de saúde bastante debilitado, nada tendo que ver com os factos praticados pela arguida”. Sofia foi condenada, em 2014, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga a seis anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada.

“O envenenamento não é um crime per si, antes integrados num diverso tipo de “comportamentos penalmente censoráveis”, explica o advogado Pedro Barosa, adiantando: “Hoje em dia esse comportamento foi consumido pelo crime de homicídio qualificado. Está expresso na alínea I do número 2 do artigo 132.º do Código Penal e é uma circunstância agravante do homicídio qualificado”.

Vários casamentos, filhos e idas à missa 

Foi esse o crime que levou à condenação de Sofia e Rita. Nenhuma tinha antecedentes criminais.  A última tivera uma infância mais conturbada tendo deixado a escola aos 16 anos para trabalha, passando a vida a mudar de emprego e funções. Teve um relacionamento ainda jovem do qual resultou uma filha, e aos 25 anos iniciou outra relação tendo tido outro filho, rapaz. Só depois conheceu Vasco com quem começou a viver e depois casou, tendo passado dois anos do matrimónio decidido matá-lo.

Já Sofia conheceu o marido -  que tentou matar - por ser amigo do pai, sendo muito mais velho do que ela. Apesar disso, pareciam viver em total harmonia, relata quem os conhecia. Mas quando em 2012 ele teve um enfarte do miocárdio tudo mudou: Carlos ficou mais frágil, com constantes problemas de saúde e a viver uma acentuada degradação e Sofia, que foi atingida por uma depressão, tinha de dar mais assistência ao marido, que passava os dias acamado. Mudou até de emprego para ficar mais perto de casa e todos os dias ia à missa. Mas quando Carlos piorou teve ser colocado numa UCC.

Nessa altura Sofia “solicitou aos filhos” do marido  “que preparassem tudo para o funeral do pai”, mas como eles “se recusaram a fazê-lo enquanto o pai estivesse vivo”, ela “identificou a campa de família e preparou o funeral” é descrito no acórdão. A partir do daí  montou um plano que rapidamente acabou descoberto.

Naquele dia, em que entrou no quarto do marido na UCC, já todos desconfiavam do que andava a fazer, pois os médicos tinham percebido que aqueles sintomas tinham de resultar de um veneno. Quando foi apanhada pela enfermeira ao ser confrontada, “Sofia” ainda afirmou que a substância que trazia era líquido de lavar a boca, mas ninguém acreditou. O lar fez uma denúncia à Polícia Judiciária de Braga que começou a investigar. A poucos dias do natal de 2013, os agentes descobriram dez embalagens de raticida e rodenticida numa gaveta do guarda-fatos e em duas malas de roupa do quarto de hóspedes da casa de “Sofia”. Das dez embalagens, seis estavam completamente vazias.

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