As obras de Pedro Penim vão abrir mais janelas no D. Maria II, para a luz, para o futuro e por um Teatro Nacional "ainda mais plural, aberto e justo"

10 abr 2022, 18:00

ENTREVISTA Novo diretor quer o Teatro Nacional D. Maria II "com um pé no Gil Vicente e outro no futuro que está por inventar". Aos 46 anos, Pedro Penim, ator, dramaturgo, encenador e um dos fundadores do Teatro Praga, tem pela frente o desafio de, em 2023, apresentar toda a programação em itinerância, por causa das obras num teatro que, afinal, "já não mete tanto medo".

Os que não costumam ir ao teatro conhecem-no como o rapaz do "Art Attack", o programa da Disney que apresentou na televisão no início dos anos 2000. Ele ri-se. "É verdade, ainda me continuam a falar disso e é muito estranho, porque eu já não faço o Art Attack há anos e fico sempre a pensar: será que se eu chegar aos 80 ainda me vão dizer que sou o rapaz do Art Attack? Neste momento tenho 46 e devo dizer que não me maça nada, fico super-feliz, era um programa muito bem feito e não tenho vergonha nenhuma, tenho mesmo orgulho de o ter feito."

O "rapaz do Art Attack" é agora diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II. Aceitou o convite para substituir Tiago Rodrigues, que entretanto se mudou para o Festival de Avignon, e assumiu funções no teatro do Rossio de Lisboa a 2 de novembro. Ator, dramaturgo e encenador, conhecido sobretudo pelo seu trabalho com a companhia que fundou em 1995, o Teatro Praga, Pedro Penim construiu uma carreira diversa, desafiando tabus e classificações, recusando rótulos - revisitando a revista à portuguesa (em "Tropa Fandanga", 2014), trazendo a corredora Rosa Mota para o palco ("O Nome da Rosa", 2015), explorando o seu interesse (pessoal e cultural) por "Israel" (2011). No ano passado, por exemplo, chegou a ter dois espetáculos em cena ao mesmo tempo, "Pais e Filhos", a partir de Turgueniev, com os Praga, no São Luiz, e "Perfeitos Desconhecidos", comédia dramática adaptada de um texto de Paolo Genovese, no Maria Matos.

Subiu pela primeira vez a um palco na escola, em Sesimbra, onde cresceu. A professora de Português propôs-lhes fazer uma adaptação da história da Menina dos Rouxinóis, de "Viagens na Minha Terra", de Almeida Garrett, e Pedro interpretava Carlos, "o herói romântico". A experiência não foi especialmente marcante. Se tivesse de eleger os momentos definidores, onde o teatro se lhe infiltrou na pele, recordaria antes aqueles em que estava na plateia.

Foi como espectador, sentado ao lado dos pais na Comuna a ver "Ñaque ou Sobre Piolhos Atores", do Teatro Meridional, "uma peça extraordinária", que pela primeira vez pensou: "O que eu gostava era de estar ali também a fazer este espetáculo". Isto foi em 1994. Logo a seguir, recorda a emoção de ver "O Conto de Inverno", do Teatro da Cornucópia, "uma encenação do Luís Miguel Cintra, onde entravam a Beatriz Batarda e o Marco Delgado, havia muitos atores jovens, então aí ainda houve uma identificação maior, no sentido de 'isto é possível, é possível seres muito novo e estares num palco como este', acho que era no Teatro da Trindade". Entrou na Faculdade de Arquitetura, mas o teatro passou a ser um objetivo.

O "primeiro passo mais sério" aconteceu com um "cursinho" organizado em Lisboa pela companhia brasileira Os Satyros, que ainda hoje trabalha em São Paulo: "Esse foi o gesto mais consciente, no sentido de 'eu quero aprender, perceber como é que as coisas se fazem'", conta. "Foi nesse curso que conheci muitas das pessoas que passaram a fazer parte do Teatro Praga. O curso tinha uma apresentação final, uma coisa informal mas ainda assim com ar de espetáculo, e nós precisávamos de um nome para essa apresentação. Esse foi o primeiro momento do Teatro Praga". Entretanto, entrou para o curso de Teatro na Escola Superior de Teatro e Cinema: "As coisas começaram a andar muito rapidamente, tive de desistir de arquitetura, comecei a fazer teatro de forma mais constante. E o Teatro Praga nunca mais parou".

Em 1997, Jorge Silva Melo, então programador de teatro do Centro Cultural de Belém, convidou os belgas Stan para apresentar espetáculos em Lisboa e para orientar um workshop com atores portugueses. Pedro Penim participou nesse workshop e, no final, foi convidado, tal como os portugueses Tiago Rodrigues, Dinarte Branco e Cristina Bizzaro, para a nova produção da companhia. "Essa foi a minha segunda escola", rememora. "Andámos pela Europa a fazer uma adaptação do 'Platonov', do Tchekhov, que se chamava 'Point Blank', em inglês, e que foi para nós a primeira experiência internacional. E tínhamos 19, 20, 21 anos. Foi uma escola muito importante, como ator mas também por causa da ideia, que o Conservatório não me tinha dado, de ator-criador, de ator-encenador, ator responsável por aquilo que apresento em cena." Levou estes ensinamentos para o Praga. "Houve ali um momento de revelação em relação ao que é o que o teatro poderia ser, como exercício de liberdade incrível, que eu nunca tinha sentido. Percebi que gosto de ser ator mas gosto mais do que só ser um intérprete ou só ser alguém que está a fazer vingar as ideias do encenador, e essa ideia do ator-encenador, que depois toma conta de todos os aspectos do espetáculo e depois pensa o espetáculo de uma forma mais global, foi mesmo uma revelação."

Haveria de aprofundar ainda mais essa ideia, mais tarde, fazendo um mestrado em Gestão Cultural no ISCTE: "Achei que precisava, porque dirigia uma companhia, dessas ferramentas necessárias quando constróis uma companhia, para lidares com processos de candidaturas, com políticas culturais, com o direito da cultura. Quando penso nisso, não há assim uma aplicação muito direta desses ensinamentos naquilo que tu fazes, mas sei que nalgum sítio do meu entendimento as coisas que se discutiram nesses mestrado acabaram por ser importantes". 

Como foi o convite para a direção do Teatro Nacional D. Maria II?
Inesperado. É o tipo de convite que não se espera, porque não se concorre, portanto há ali um lado de designação que não depende de ti. Constróis um caminho ao longo de algumas experiências que vais fazendo, mas nunca com a intenção de chegar a esta posição. Portanto, há esse lado completamente inesperado de um telefonema, um convite, algum tempo para pensar, porque estas coisas não se aceitam de um dia para o outro e é preciso consultar algumas pessoas, não só de um círculo íntimo mais restrito mas também de um círculo profissional, que, na verdade, no meu caso é o mesmo. Passado uma semana acabei por aceitar o convite, que foi feito diretamente pela ministra da Cultura [a agora ex-ministra Graça Fonseca].

O que o fez aceitar?
A ideia de que, embora não tenha dirigido nenhum teatro desta envergadura, todas as experiências que fui colecionando - e que são experiências obviamente artísticas mas também de programação e de gestão de uma companhia, de gestão de equipas, de ligação à comunicação e à edição -, me permitiam olhar para esse puzzle e perceber que, se calhar, dentro daquilo que são as competências de um diretor artístico de um teatro nacional e conhecendo o percurso de outros diretores - e até falando com alguns deles, como o Diogo Infante, o João Mota, o António Lagarto, o Tiago Rodrigues -, perceber que estava num momento não só da minha vida pessoal mas também da minha vida profissional que me permitia dar esse salto de confiança. Ou seja, de achar que poderia não só ser eventualmente a pessoa certa (até porque esse conceito é bastante elástico, não existe de forma absoluta), mas de pensar que, com estas experiências, conseguiria ter essa capacidade. Se me enganei ou não, não sei ainda. Mas pelo menos essa vontade de arriscar vinha dessa consciência de que poderia ter as ferramentas certas para o lugar.

Entretanto, o Governo mudou e temos um novo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva. Já falou com ele?
Sim, mandei-lhe uma mensagem de parabéns e combinámos falar. Nós já nos conhecíamos por causa das comemorações dos 50 anos do 25 de abril. Acho que vai correr muito bem. Foi inesperado também [a escolha de Pedro Adão e Silva], para muitas pessoas e para mim também, mas acho que faz todo o sentido. Já me dava muito bem com a ex-ministra e agora tenho toda a confiança que será igual.

Que ideia tinha deste teatro, antes de vir?
Há vários pontos da minha vida que se ligam ao Teatro Nacional e pontos estratégicos até. O primeiro espetáculo que eu vi na vida, era ainda criança, foi aqui: com o Virgílio Castelo, uma peça sobre o Vincent van Gogh, no Salão Nobre. Depois, quando acabei o Conservatório vim estagiar para o Teatro Nacional como ator e fiz um espetáculo do Almeida Garrett que se chamava "Falar a Verdade a Mentir", onde entrava em cena com uma camisa cor de rosa, cheia de folhos, fazia o protagonista da peça. E aí encontrei um Teatro Nacional onde ainda havia o elenco completo, com os grandes atores desta casa, tive um contacto muito próximo com essas pessoas. E depois experiências pontuais enquanto criador convidado e sempre com óptima relação com as equipas. mas olhando para o Teatro Nacional como muitos atores e encenadores portugueses olham, como uma casa-mãe do teatro, um sítio onde é preciso ir, estar, mas também é preciso cuidar, onde há todo um lado simbólico relacionado com a sua importância.

Entrar aqui como diretor artístico já é toda uma outra história. Estou nessa fase de me apaixonar por estes corredores. Cada vez mais confiante, mais confortável, neste espaço, naquilo que é necessário fazer. O teatro não é só o edifício, estou muito consciente desse facto. O edifício é muito importante mas a missão pública não se resume de todo a este edifício. Aliás, em 2023 vamos estar fora, portanto torna-se ainda mais importante pensar na missão do Teatro Nacional como uma missão mais nacional, que não é só de Lisboa - nunca foi mas nesse ano vai ser ainda mais óbvio. É todo um processo de habituação, de conhecer as pessoas, de conhecer os projetos, os dossiers, é uma estrutura muito complexa, muito pesada - no seu simbolismo mas também na quantidade de projetos que por aqui passam e que são necessários. Foram cinco meses de grande aprendizagem. Havia muita informação que eu não tinha.

Ainda se perde nos corredores?
Menos, mas de vez em quando ainda encontro uma porta fechada e penso onde irá dar. É um edificio bastante labiríntico e encontrar-me ainda demora o seu tempo.

Quando aceitou ser diretor artístico impôs-se um objetivo? Tem uma visão para este teatro?
Eu gostava que o Teatro Nacional pudesse ser ainda mais plural, mais aberto e mais justo na forma como funciona, como as escolhas são feitas, que espetáculos são apresentados, da representatividade de quem aqui está. Não é um trabalho que comece comigo nem que começa agora, começou muito antes. Acho que há ainda muitas portas por abrir, muita coisa por fazer também do ponto de vista da estrutura, que é sempre mais complexa, porque se trata de um organismo do Estado, e por isso tem toda uma complexidade na forma como funciona.

Mas julgo que podemos caminhar nesse sentido, de acompanhar a grande vitalidade da criação portuguesa - e há muita gente que não tem consciência de como o teatro português é vital e diverso esteticamente, em termos de gerações. O Teatro Nacional deveria ser espelho de tudo isso, não é só um teatro para jovens, não é só um teatro para históricos do teatro, é um teatro para que todas essas pessoas possam conviver, colaborar e apresentar coisas que possam fazer sentido. Também toda a sua carga histórica fascinante e importantíssima, cheia de narrativas maravilhosas, que às vezes as pessoas não conhecem, sem esquecer que estamos em 2022 e estamos a fazer teatro para as pessoas que estão vivas neste momento e portanto há toda uma sensibilidade contemporânea que é preciso respeitar e fazer vingar.

E depois essa ideia da abertura destas portas. A casa arquitetonicamente é bastante brutal, é muito virada para dentro, tem poucas janelas, entra aqui pouca luz, vamos tentar que isso mude com as obras que vamos fazer em 2023. Existe esse lado arquitetónico e depois um lado conceptual de abertura para esta cidade, para esta envolvente, para o país, e que é um trabalho muito necessário e que já está em andamento. Isso deixa-me muito contente. 

Até aqui era sobretudo um criador, com uma carreira própria, autonomia. Agora é diretor do Teatro Nacional. É um salto enorme. Como é que o criador se adaptou a esta nova função?
É preciso ter essa consciência de que ser um artista não chega. Ao estar nesta posição, há essa expectativa de que continue a criar alguns espetáculos, dentro do Teatro Praga já fazia algumas coisas em número próprio, havia já alguma afirmação do que era o meu trabalho em nome individual, e isso continua a fazer sentido aqui como diretor do teatro, e eu quero fazê-lo. Artisticamente e criativamente, continuo a ter ideias, há coisas que quero explorar, pessoas com quem quero colaborar e por isso quero continuar a criar mas já com este novo enquadramento.

Mas, depois, há toda uma ideia de missão pública que é muito politizada, mas também é muito organizativa, que precisa dessa estrutura de pensamento estratégico que ultrapassa muito as questões do meu gosto pessoal. Já me sentei nestas salas a ver espetáculos que se calhar não estão dentro do meu gosto pessoal, mas percebo a importância de estarem aqui e de serem apresentados. Não é de todo a coutada de uma geração específica com uma estética específica. Eu sou o diretor e tenho esse background, não o vou recusar mas não o vou usar como uma arma, porque sei que isto é muito maior do que a minha presença e do que eu próprio. Mas sem me anular também. Não quero transformar-me num tecnocrata. Não foi para isso que me chamaram. Continuo a ter a minha biblioteca pessoal, o meu passado, os meus interesses, eles seguem-me. Mas agora há uma macrovisão sobre a importância deste espaço, sobre o que deve estar aqui dentro, sobre o que deve ser mostrado, sobre a sua dinâmica. Estou nesta posição, que é obviamente uma posição fulcral para o que acontece aqui, mas em que importa menos o meu gosto e importa mais a visão geral da classe, do setor e do país, nesse sentido do nacional, de um teatro  que não é de Lisboa, é de Portugal.

O que podemos esperar da sua programação? Criações? Acolhimentos?
Este é um teatro de criação. Essa é, eventualmente, a vertente mais importante. É um teatro que cria repertório, que cria espetáculos e que nesse sentido pode fazer propostas a vários criadores, pode aceitar propostas de co-criação, de criação com várias gerações de artistas e várias estéticas, mas é uma casa de criação e que, por isso, de alguma forma define o que é o teatro português em 2022 a partir dessa programação que vai propondo temporada após temporada. Mas é muito plural, até nas estratégias que usa, que pode ser comissariar por interposta pessoa, fazendo um convite direto, pode ser uma proposta que chega por um ator ou encenador, temos também um elenco residente e a casa faz uso dos seus próprios atores para criar o seu repertório; e depois tem uma biblioteca e um arquivo extensíssimo, que deve sempre usar para revisitar o repertório clássico e o mais contemporâneo.  Mas sempre com a ideia de ser uma casa de futuro. Estamos a programar - e programar é geralmente um exercício de futurologia, porque nunca sabemos exatamente se o papel vai corresponder àquilo que depois se concretiza em cena.

Vamos continuar a ter aqui os clássicos?
O Teatro Nacional devia ser o teatro onde as pessoas podem ir ver sempre um clássico, sou muito dessa opinião. Mas depois também a ideia de projetar um futuro, não só nacional mas internacionalmente, o teatro faz parte de várias redes internacionais e tem muitas parcerias com projetos internacionais e que dão conta dessa vitalidade de pensamento e de ação. O Teatro Nacional deve estar com um pé nesse passado mais distante, no tempo da Amélia Rey Colaço, no tempo do Gil Vicente, no tempo do Almeida Garrett, mas também com um outro pé naquilo que ainda não se conhece, ainda não se sabe, num formato que ainda não se inventou, numa maneira de pensar o teatro que ainda ninguém conseguiu verbalizar. Essa tensão entre as duas coisas é fascinante.

O Teatro Nacional D. Maria II tem um orçamento superior a muitos dos outros teatros. Isso dá-lhe uma maior responsabilidade?
Há teatros nacionais e também municipais com orçamentos iguais ou maiores do que o Teatro Nacional, nem sequer estamos no topo, mas, sim, essa ideia de que é um teatro com muitas condições financeiras é muito importante nessa responsabilidade, não só do apoio à criação dos artistas, da produção, mas também para que seja uma casa sólida do ponto de vista das leis do trabalho e nisso deve ser exemplar. Há sempre muita preocupação de saber se se está a ser justo do ponto de vista laboral e de como isso permite que a criação seja ela própria mais justa. Há muita atenção àquilo que se faz aqui, mesmo em termos de acessibilidades, estamos sempre a tentar estar muito à frente do que se faz noutros teatros porque sendo teatro nacional temos de dar o exemplo.

E o orçamento é suficiente?
Tendo nós um novo ministro, eu deixaria já aqui um apelo de conseguirmos rever o financiamento ao teatro nacional e aos teatros nacionais em geral, porque nunca é suficiente, como sabemos. Nós temos sempre muitos projetos, projetos de educação, projetos correntes, projetos de criação de texto, projetos com escolas - agora em 2023 vamos estar em mais de 80 municípios, há todo um lado inédito e histórico de alavancar esta energia que o teatro português precisa e de contar com os teatros municipais para que isso aconteça. Há todo um trabalho de missão pública que tem de ser apoiado em consequência com aquilo que estamos a propor, correndo o risco de ficarmos estagnados ou afogados nas nossas próprias ideias. Mas são ideias absolutamente necessárias e vitais para que o teatro português se possa afirmar.

O que vão ser, afinal, estas obras que vão implicar o encerramento do teatro durante um ano?
São obras estruturais de requalificação da caixa de palco - isso não será muito visível para os espetadores -, depois alguma requalificação da fachada, mas sobretudo na sala-estúdio e na sala de cenografia (que é o sotão) e que vai ser transformada em zona de escritórios.

O teatro reabriu em 1978, era uma realidade muito diferente, uma equipa também muito diferente em termos de números, não há espaços para as pessoas estarem a trabalhar em boas condições. Isso quer dizer que vamos ter finalmente bons espaços de trabalho para as equipas do teatro nacional, cerca de 90 pessoas. Vão passar a estar mais concentradas, vamos ter um jardim de inverno que nos vai permitir ter luz natural a entrar no teatro. São obras complexas mas muito necessárias.

Em 2023, a programação será toda apresentada fora deste teatro. Como é que se está a preparar essa operação?
No início, fiquei um bocadinho assustado, porque nunca tendo sido diretor e este presente inicial é bastante complexo, é uma operação complicada. Mas agora não trocava isto por coisa nenhuma, porque é uma oportunidade histórica. Sendo um teatro histórico e tendo uma oportunidade histórica, é de aproveitar cada segundo.

Vamos ter espetáculos de criação própria, do teatro nacional, que estrearão fora deste teatro e fora de Lisboa. Seria fácil ter parcerias aqui na cidade de Lisboa, mas quisemos fazer esse esforço de fazer as estreias fora da capital, co-produções, produções locais, espetáculos infanto-juvenis, espetáculos de repertório, espetáculos contemporâneos, sempre com essa certeza de estarmos a fazer esse serviço público no sentido de as estreias acontecerem fora e só depois, em 2024, quando o teatro reabrir, virem para lisboa - o que é uma inversão da lógica habitual. 

Tem sido incrível, temos estado a fazer um mapeamento, uma relação com o território como eu nunca tinha tido, ir aos teatros, ver as condições técnicas, conhecer os programadores, conhecer os autarcas, ver as realidades muito diversas, por exemplo, entre litoral e interior - é uma linha muito clara que divide o país ao meio -, perceber as estruturas de criação que existem fora de Lisboa e que na verdade são às vezes tão ou mais interessantes  do que os projetos que acontecem em Lisboa. Por isso é que eu digo que este retrato é muito esperançoso. E essa coincidência histórica de o Teatro Nacional fechar pela primeira vez em 180 anos, tirando os anos entre o incêndio e a reabertura, e de colocar toda a sua programação fora do edifício, fora de Lisboa, e espalhá-la por tantos municípios, é um momento único. Há uma responsabilidade muito partilhada entre artistas, decisores, tutela, municípios, público, no sentido de uma mudança muito esperançosa.

Daquilo que já se apercebeu, quais são os maiores problemas que gostaria de resolver aqui no teatro?
É uma linha de pensamento que não é minha, é um pensamento que se faz de dentro para dentro, ou seja, as pessoas que trabalham aqui já identificaram os problemas e já estão a trabalhar sobre eles. Sendo um organismo público, há obviamente uma hierarquização e uma burocratização grandes, e estamos sempre a lutar contra ela e a tentar tornar a relação humana mais simples. E depois também essa ideia do peso que o teatro tem com os seus dourados, com os seus veludos vermelhos, e de como tantas vezes funcionam como uma barreira, primeiro arquitetónica mas que pode também ser conceptual, no sentido de afastar a população de entrar no teatro. Esse é um processo, que tem também a ver com a história do próprio teatro, de ultrapassar essas várias barreiras. Mas, como digo, não estou a trazer para aqui nada de novo nem a apontar o dedo a nada, porque esta é uma reflexão que se vai fazendo naturalmente.

É um teatro menos elitista do que era há uns anos?
É cada vez mais aberto, cada vez há mais propostas nesse sentido - propostas artísticas mas também de organização. E esse é também um trabalho de comunicação, como é que se dá a mostrar, muitas vezes o sentido de humor é chave para desbloquear essa ideia do peso institucional. Essa imagem tem-se alterado bastante e o Teatro Nacional D. Maria II já não mete tanto medo.

A direção artística desta casa é também uma missão política. Sabe o que é que o Governo espera do Teatro Nacional?
Há uma grande expetativa de que o Teatro Nacional possa ser esse elemento transformador na cultura portuguesa em geral e no teatro em particular, fazendo essa ponte entre a inovação e a tradição, pensando sempre nessa ideia de depósito da memória - e essa estratégia é política, parecendo que não, mas é. De guardar não só os nomes mas as obras e de o teatro nacional ser o depósito dessa memória. Mas depois também da vitalidade estar relacionada com aquilo que se cria, com as comunidades e com as populações, no sentido de chegar cada vez a mais pessoas e ser mais aberto. Nesse sentido, essa experiência de 2023, que é politizada mas isso não tem de ser um óbice, servirá para o teatro afirmar-se como arma de difusão e de fixação da cultura, na relação com a língua, com as novas escritas, de criação de novo repertório, de identidades (sempre no plural) portuguesas, e nesse sentido pode ser um braço armado nessa luta por abertura a mais identidades e dessa percepção do que é a nossa história e do que poderá ser o nosso futuro enquanto país. O teatro sempre acompanhou a história de Portugal e agora acho que o faz com um sentido crítico mais apurado, e por isso pode ser ainda mais importante e mais relevante.

Uma missão partihada com os outros teatros nacionais, nomeadamente o São João, no Porto?
Claro, temos muita proximidade com o Teatro Nacional de São João e com o Teatro Nacional de São Carlos. Essa ideia de trabalhar em rede é uma inevitabilidade, neste momento nem seria possível fugir a uma lógica que já está tão estabelecida. Vamos justamente fazer a abertura oficial e simbólica da nossa programação de 2023 no Teatro Nacional de São João, num gesto colaborativo entre teatros nacionais.

A próxima temporada já é programação de Pedro Penim?
Sim, ainda com algumas coisas programadas pelo Tiago Rodrigues, sobretudo no que diz respeito à temporada cruzada Portugal-França. Mas a temporada abrirá com um espetáculo meu, uma nova criação, dando resposta também a essa vontade de continuar a criar já dentro deste novo contexto.

Será uma afirmação do novo diretor, uma maneira de mostrar ao que vem?
Qualquer coisa que eu faça será sempre simbólico, portanto mais vale aceitar, admitir e jogar com isso, pensando que a atenção vai estar centrada nesse gesto inaugural de uma temporada com a minha assinatura e que é um espetáculo do diretor do Teatro Nacional D. Maria II que abre a temporada, e por isso tem todo esse lado iniciático e simbólico de uma nova era. 

Será, como muitos dos espetáculos que faço, um espetáculo reativo àquilo que eu sou, ao que estou a viver, às minhas impressões sobre o mundo, sobre a história, sobre a cultura. Obviamente, estando nesta posição, há uma mudança radical na maneira de olhar para o mundo a partir deste lugar. Portanto, esse espetáculo faz sentido enquanto espetáculo de abertura do nacional, é contextual.

Não se consegue agradar a todos. Está preparado para isso?
Desde o início que estou preparado para isso, sei que aquilo que eu digo e faço nunca será consensual. Nunca foi, venho dessa experiência e sei muito bem o que é não ser consensual e estar sujeito a essa crítica, ela não me preocupa nada, mesmo em relação à comparação com o trabalho do meu antecessor, não é uma herança que eu ache problemática. A herança que me é deixada é maravilhosa, um teatro num estado de vitalidade muito grande, não tenho medo disso. Sei o peso que isso representa, não só essa herança mas também a atenção que está  sobre mim, e sei que não vai ser do agrado de toda a gente, que vou ter que dizer muitos nãos (já comecei a dizer muitos nãos...) e isso não cria propriamente simpatias, mas há um lado neste cargo que é preciso assumir desde muito cedo, que é a finitude daquilo que se pode fazer - dentro da ideia utópica e idealista que eu procuro para este teatro, confrontar-me todos os dias  com essa impossibilidade de fazer tudo o que eu quero e tudo o que os outros querem. É nessa tensão que tem de estar uma espécie de felicidade de aqui estar, porque quando não for feliz aqui então é porque está tudo a correr mal e devo ir-me embora. Mas há sempre essa esperança que esteja a fazer a coisa certa. 

Há sempre quem diga que o novo diretor vai trazer os seus amigos...
É uma não-questão. Não vou fingir que não tenho amigos, porque os tenho; não vou fingir que não gosto deles, porque gosto; não vou fingir que não admiro o trabalho de alguns e que portanto acho que faz sentido ter o trabalho deles aqui, e quero estar muito aberto em relação a isso. Não vou ter cá o Teatro Praga nos próximos tempos, porque há aí uma questão ética básica, mas não digo que não terei nunca porque acho que isso pode fazer sentido no futuro. Mas ao mesmo tempo conto ter inimigos também - não que os tenha -, mas conto ter pessoas com quem não tenho qualquer relação pessoal ou com quem, por questões de gosto e de estética, nunca trabalhei, mas como diretor do teatro sei que tenho obrigação de os ter. Agora, não vou apagar aquilo que eu sou.

Que marca gostaria de deixar neste teatro?
Não gosto de marcas. Muitas vezes, os diretores de organismos, os políticos, os diretores de teatros preocupam-se com a sua herança, no sentido das suas marcas visíveis, não só no edifício mas na ideia da missão do teatro. Eu gostava que ela se fosse transformando à medida dessa ideia da missão pública, e não necessariamente à imagem da minha presença ou da minha pessoa. Tenho imensa dificuldade em olhar para essa ideia de marca como uma boa ideia, porque me parece mais uma pegada violenta sobre alguma coisa, e eu não sou essa pessoa, e acho sempre que a ideia do trabalho diário é muito mais importante do que essa visão estratégica depois de de eu me ir embora, que sinceramente não me interessa.

Numa entrevista usou uma expressão muito bonita. Disse: é-se transitório mas é-se também a alma deste espaço enquanto se está cá. O que quer dizer com isso?
Li algures uma entrevista do Tiago Rodrigues em que ele dizia que tinha sempre as malas à porta. Há um lado muito real nessa imagem: porque este é um espaço de transitoriedade. Não quer dizer que os diretores artísticos não possam ficar muito tempo, até porque acho que há essa necessidade de poderem desenvolver o seu trabalho e o tempo é chave nisso, mas ao mesmo tempo sabemos que é um edifício público, as equipas continuarão mas os diretores artísticos necessariamente, e de forma muito saudável, serão substituídos por outros. Mas enquanto cá estás, enquanto estás nesta posição, aí sim, não podes fingir que estás passagem, porque estás com tudo, estás de alma e coração, estás a dar sangue, suor e lágrimas e todos os outros clichés de que nos lembrarmos. Esta posição de diretor artistico é a alma de encher de conteúdo aquilo que é um edifício e um projeto. Se estivermos sempre muito transitórios nada acontece, mas também não é boa ideia pensarmos que estamos aqui para a vida toda.

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