ENTREVISTA | Nic Robertson, o experiente editor diplomático internacional da CNN, diz não saber até quando vai um cessar-fogo perdurar em Gaza, vê como provável que alguma das partes o venha a romper, mas o que mais o “impressiona” nestes recentes 440 dias de conflito é “a incapacidade da nação mais poderosa do mundo de persuadir um dos seus aliados mais próximos a alcançar um acordo de paz antes de mais mortes”. Donald Trump irá fazer um percurso neste conflito — e tem “créditos a reivindicar”. Mas antes, com Biden, como no futuro, com Trump, Nic Robertson esperava que os EUA “fossem capazes de pressionar Israel, como já fizeram no passado”
O acordo de cessar-fogo foi anunciado esta quarta-feira. E desde lá, muito já correu.
Correu sangue, com os ataques israelitas em Gaza a matarem 116 pessoas, entre as quais 30 crianças, e ferirem mais de duas centenas. E correu discórdia também. Em Israel. O gabinete de segurança aprovou o acordo de cessar-fogo e libertação de reféns, esperando "que o Governo o faça também em breve”, e o Presidente de Israel, Isaac Herzog, declarou a aprovação “um passo vital”. Mas nem todos estão de acordo. Como é o caso do influente ministro da Segurança Nacional Itamar Ben Gvir, que de tudo tentou — e ainda tenta —, para fazer cair o acordo, pois, diz Gvir, “os terroristas vão tentar fazer mal outra vez, matar outra vez”.
Segundo uma televisão israelita, a Channel 12, Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro, só conseguiu a aprovação no gabinete de segurança porque “mentiu”. Assim, terá dito àqueles membros que o exército vai em breve regressar aos combates, logo após a primeira fase do cessar-fogo. Uma primeira fase que começa domingo, com a liberação pelo Hamas de três mulheres civis.
Ao todo, e durante as primeiras seis semanas, o Hamas libertará 33 reféns, incluindo todas as mulheres, civis ou militares, crianças e homens com idade superior a 50 anos. O lado israelita, por seu turno, comprometeu-se a libertar 30 palestinianos por cada civil israelita libertado e 50 palestinianos por cada soldado israelita libertado. No total, Israel deverá libertar entre 990 e 1650 detidos palestinianos.
O editor diplomático internacional da CNN diz que o cessar-fogo é “importante" por inúmeras razões, mas sobretudo por “proporcionar um momento para outras iniciativas e esforços de paz ganharem força”. No entanto, refere Nic Robertson, o acordo é também “extremamente frágil”. “Se não houver um acordo para as fases dois e três até lá, o acordo expira, e esse é um risco muito real.”
Um acordo de cessar-fogo, por si só, não resolve um conflito como este, mas quão importante pode ser o acordo, ou princípio de acordo, no curto prazo?
É importante porque vai permitir que a ajuda humanitária chegue a Gaza, o que é urgentemente necessário. É importante porque as pessoas em Gaza têm estado sob bombardeamento desde 8 de outubro de 2023, por mais de 440 dias, estão desesperadas por uma pausa.
É importante para as famílias de todos os reféns israelitas, que têm aguardado com tanto desespero pelos seus entes queridos, temendo constantemente que possam morrer a qualquer momento.
E é importante porque uma pausa na guerra, por si só, proporciona um momento para outras iniciativas e esforços de paz ganharem força. É muito difícil criar tração quando o bombardeamento e os combates continuam.
E quanto tempo pode durar esta pausa? Ou, colocando a pergunta de outra forma, o que poderia levar ao colapso do cessar-fogo?
Uma das coisas que poderia levar ao colapso é a pressão sobre o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu por parte de membros mais à direita da sua coligação governativa, como Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, que juntos contam com 15 deputados que apoiam o governo atual. Se decidirem que não estão satisfeitos com o rumo do acordo, podem retirar o apoio ao governo, criando incerteza.
Além disso, mesmo quando o processo de cessar-fogo estiver em curso, há uma forte possibilidade de que a qualquer momento em que, aos olhos de Israel, o Hamas viole os termos do acordo, Benjamin Netanyahu retome a guerra. Netanyahu já indicou que acredita ter o apoio tanto do Presidente Biden quanto do Presidente eleito Donald Trump para retomar a guerra contra o Hamas. Isso é um risco real.
Há também a possibilidade de algo correr mal durante as trocas. Uma das partes pode sentir que a outra está a falhar. Se do lado palestiniano, o Hamas achar que os prisioneiros certos não estão a ser libertados, ou que o número acordado não está a ser cumprido, podem desistir do acordo, o que provavelmente levaria à suspensão da libertação de mais reféns.
Portanto, é extremamente frágil. E claro, após o 16.º dia do cessar-fogo, quando a segunda e terceira fases – os passos rumo à paz permanente – deveriam ser negociadas, o relógio começa a contar para o 42.º dia. Se não houver um acordo para as fases dois e três até lá, o acordo expira, e esse é um risco muito real.
Que papel desempenharam os países vizinhos neste acordo? E porque é que o Qatar — principal país mediador —, desta vez, parece ter alcançado resultados onde outros falharam no passado?
O Qatar resistiu à tentação de abandonar as negociações, mesmo quando foi fortemente criticado por Benjamin Netanyahu ou por outros políticos israelitas. Eles mantiveram-se fiéis à missão que assumiram – serem interlocutores e negociadores.
O mesmo pode ser dito dos oficiais egípcios, mas parece que o grosso do trabalho foi realizado pelos qataris. Não se trata tanto de o que mudou para os negociadores, mas sim do facto de terem perseverado.
Ao mesmo tempo, a capacidade do Hamas como força de combate está profundamente reduzida. Os palestinianos que vivem em Gaza estão, em grande parte, emocional e psicologicamente devastados. Estão com falta de comida, combustível, abrigo e, francamente, de esperança.
O que mudou também foi o panorama político internacional em torno do Qatar e do Egito, assim como as dinâmicas nos Estados Unidos, que agora influenciam este contexto.
Falemos dos Estados Unidos. O Presidente Biden pareceu desconfortável com algum do crédito que Donald Trump reivindicou por este cessar-fogo. Qual deles teve realmente um papel maior agora? E o que se prevê no conflito quando Donald Trump regressar à Casa Branca?
Acho que ainda é cedo para dizer quem teve um papel maior. A história irá esclarecer isso, para ser perfeitamente honesto.
As ações de Donald Trump quando assumir o cargo dirão muito. Nesse sentido, é evidente que os Estados Unidos, sob o governo do Presidente Biden, não conseguiram levar o governo israelita a uma posição de compromisso. No entanto, quando o Presidente eleito Donald Trump declarou que, se não houver paz em Gaza até ele tomar posse, "haverá consequências graves", isso parece ter tido um efeito dissuasor para ambas as partes.
O Hamas parece ter compreendido que Trump poderia dar carta branca a Israel para continuar a atacá-los. E para o primeiro-ministro israelita também há muito em jogo na relação com o próximo presidente dos EUA, tanto em termos políticos como pessoais. Netanyahu precisa de manter essa relação forte, especialmente porque enfrenta processos judiciais que podem colocá-lo em risco de prisão.
Além disso, Netanyahu deseja que Trump o ajude a concretizar a normalização das relações com a Arábia Saudita, a destruir a capacidade do Irão de ameaçar a região e os seus aliados, e a interromper o programa nuclear iraniano. Ele acredita que, ao manter-se do lado de Trump, estará mais próximo de alcançar esses objetivos.
Portanto, Trump tem, de facto, algum crédito a reivindicar. Contudo, muito do trabalho prévio foi feito pela administração Biden. Diplomatas, chefes de inteligência e o secretário de Estado [Antony Blinken] estiveram envolvidos numa diplomacia intensa, criando os termos gerais do cessar-fogo e das trocas de reféns que vemos hoje.
A longo prazo, o que Trump faz durante a sua administração será determinante para avaliar a extensão do seu impacto.
Em Oslo, na Noruega, delegados de mais de 80 países participaram por estes dias numa reunião da Aliança Global para a Implementação da Solução de Dois Estados. A paz permanecerá uma utopia sem essa solução – um Estado para os judeus e outro para os árabes?
Essa é a opinião dominante na região e no mundo. A Casa Branca tem insistido com Netanyahu que, sem uma solução de dois Estados, não haverá paz duradoura.
Os líderes israelitas frequentemente dizem que não querem repetir erros do passado, como dar qualquer oportunidade política ao Hamas, pois temem novos ataques. Contudo, há um consenso global de que, ao negar aos palestinianos um Estado, Israel perpetua os mesmos erros e os mesmos ciclos de violência.
Na região, a pressão para alcançar a solução de dois Estados é enorme. Por exemplo, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita, declarou que não haverá normalização com Israel sem um Estado palestiniano.
O papel de Donald Trump nesse cenário será relevante, mas parece inevitável que a estabilidade regional dependa da realização desse objetivo de longo prazo.
Hoje, e enquanto editor diplomático internacional da CNN, o Nic cobre este longo conflito e muitos outros. Como jornalista, o que o impressiona mais em Gaza?
O que mais me impressiona é a incapacidade da nação mais poderosa do mundo [EUA], que representa os valores democráticos, de persuadir um dos seus aliados mais próximos a alcançar um acordo de paz antes de mais mortes.
Nunca teria imaginado, há um ano e meio, que este cenário seria possível. Esperava que os Estados Unidos fossem capazes de pressionar Israel, como já fizeram no passado, para evitar a escala de derramamento de sangue que vimos em Gaza.
Embora o ataque do Hamas tenha sido terrível, com mais de 1200 israelitas mortos e mais de 250 feitos reféns, a incapacidade dos EUA de moderar a resposta de Israel e evitar a morte de mais de 46 mil palestinianos é surpreendente.