Geraldes: «Nem gosto de usar a palavra intelectual, não me sinto confortável»

6 out 2022, 23:05

Médio do Estoril em entrevista ao Maisfutebol: o rótulo desconfortável que saiu da paixão pelos livros, o futuro como treinador e a importância da saúde mental.

A viver a «melhor fase desde a mudança para o Estoril», na opinião do próprio, Francisco Geraldes dá uma entrevista ao Maisfutebol.

O médio fala das boas exibições que tem assinado, com destaque para o jogo com o FC Porto, mas também sobre a forma como tem amadurecido o seu futebol, para além de temas paralelos ao terreno de jogo, como os recentes incidentes nas bancadas da Liga, ou a importância da saúde mental.

Uma conversa descontraída mas reflexiva, de um jogador que gosta de pensar o jogo e pensar sobre o jogo, mas que não gosta de ser rotulado como intelectual.

No excerto abaixo apresentado, Francisco Geraldes assume que a paixão pelos livros trouxe um rótulo que o deixa desconfortável, e destaca também a importância de se falar em saúde mental no desporto.

«Eu não sou a minha profissão», dizia o Francisco numa entrevista recente, a propósito do lançamento do seu livro. Muito se falou, a dada altura, dos hábitos de escritura e leitura do Francisco, o que até foi canalizado para um lado didático e lúdico, de promoção do Plano Nacional de Leitura. Mas para o Francisco futebolista tudo isso foi positivo, negativo ou indiferente?

Como tudo, teve coisas boas e más. Ajudou a criar algum preconceito, a colocar-me num patamar que eu não queria, nunca fiz por isso. Qualquer jogador tem a sua vida fora do futebol, faz o que entende. Apenas é uma coisa diferente, mas que não muda a minha forma de estar no jogo e no treino. Quem me conhece sabe que sou altamente competitivo. Odeio perder. O [Tiago] Gouveia ainda agora disse, no canal 11, que eu sou chato para ele. E sou, é verdade! Colocarem-me num patamar de intelectual - embora eu não goste do termo -, é algo que não gosto, não me sinto confortável. Há um distanciamento muito grande e uma tendência para associar isso ao mal, quando algo não corre bem. A associar isso a algum desfoque da minha parte, que não é, de todo, verdade. Como disso sou muito competitivo, sou um jogador chato. Gosto de crescer, gosto de ganhar.

Sentiu que, exteriormente, estavam a desviar o foco do Francisco do futebol?

Não sei se era o foco, mas quando jogava menos, ou quando as coisas não corriam bem, como no momento da descida do Rio Ave…quando o preconceito é criado, é difícil ser contrariado. É uma ideia pré-concebida, que se manifesta de forma muito exponencial quando as coisas não correm bem. A ideia central é desconstruir essa ideia através do jogo, da forma como me proponho a jogar, como treino. Para que essa ideia não prolifere, e que as pessoas vejam que isso não faz sentido.

O que mudou no dia-a-dia do Francisco, nos últimos anos? Tanto nas rotinas, como nos cuidados que tem?

Por acaso sou uma pessoa muito curiosa, gosto de interessar-me pela forma como posso melhorar o meu rendimento. No início da carreira não tinha tanto conhecimento, não tinha privado com tanta experiências e pessoas diferentes do meio. Isto também vem com a maturidade, o perceber o que é melhor para mim. Perceber que não basta o treino do clube, embora sempre tenha trabalhado com preparadores físicos. Levei uma pessoa para trabalhar comigo na Alemanha, e essa pessoa também foi para a Grécia. No Sporting já nos passavam muito essa ideia de que o treino no clube não chegava. Fui sedimentando essa noção, e aprimorando cada vez mais a forma de me alimentar, de descansar…

A alimentação também mudou muito?

Sim, sim. Eu peso sempre a quantidade de hidratos ou proteína. Isso era impensável aos 20 anos, e hoje acontece, por exemplo.

O Francisco também já falou da vontade de ser treinador, no futuro, e de trabalhar com jovens, pelo menos numa fase inicial. Li uma entrevista sua em que falava do papel de formador, e da necessidade de promover a criatividade dos jovens. Penso que o Francisco falava disto tanto no plano da personalidade, da formação da pessoa. Mas pegando no lado desportivo, a criatividade não tem sido inibida, amarrada?

É uma discussão que dá para algum tempo… Temos de ver também como são as crianças de hoje. Eu já apanhei um estágio final disso, mas o futebol de rua deixou de existir. Eu falo disso com o Joãozinho, que tem um filho pequeno a jogar, e diz que a formação está muito virada para aspetos táticos, e isso destrói por completo a criatividade, que é um dos aspetos mais importantes do jogo, a meu ver. Não sei se alterava, mas pelo menos é um paradigma sobre o qual devíamos refletir. Fazer parte disso é entusiasmante. Trabalhar com crianças é sempre bom, pois são esponjas a absorver conhecimento, mas também tenho o objetivo de treinar patamares mais altos, juniores e seniores. É uma questão que vou pensar, ainda tenho tempo para o fazer, mas estou a trabalhar nesse sentido.

O que o alicia é esse xadrez, como o Francisco já referiu, esse lado estratégico, e passá-lo do treino para o jogo?

Sim. Tenho uma forma muito própria de ver o jogo. Tenho treinadores que passei a seguir de forma quase religiosa, como o Roberto de Zerbi, que está no Brighton. É um dos exemplos que sigo, que me entusiasma bastante.

Quer referir mais alguns nomes?

Sim, posso referir o treinador do Alanyaspor, o [Francesco] Farioli. O Pep [Guardiola], claro. O Sarri do Nápoles de 2017. Este agora da Lazio não tanto...

O Francisco já destacou várias vezes a importância que o futebol teve para conhecer outras realidades. Cresceu numa «bolha», onde nada faltava, e o futebol permitiu furar essa «bolha» e conhecer outras vivências. Pegando nesse exemplo, aquilo que temos visto recentemente em algumas bancadas, os casos de intolerância, não é precisamente o oposto do que o futebol devia mostrar?

O futebol não é mais do que um espelho do que se passa à nossa volta. Eu tive uma consciência de classes, fruto do futebol. Muito do meu pensamento mais ideológico vem do futebol, e estou grato por isso. Ajudou-me ter uma consciência que quase não existiria de outra forma, como vejo pelos meus amigos, pelo meu círculo de colégio. Eu percebo que não exista, é natural. Mas o futebol é um jogo de emoções, um escape para a maioria dos adeptos, de uma semana difícil, e há um exacerbar de comportamentos que devem ser erradicados, mas que são transversais à sociedade. Puxa o aspeto mais primário e animal das pessoas, e isso tem de ser combatido.

Porque corremos o risco de afastar as crianças do futebol, ou talvez deixarem de ser do clube A ou B, e passarem a ser apenas fãs deste ou daquele jogador. Do Cristiano, do Messi ou do Haaland…

O futebol de formação tem muito essa questão. Lembro-me que, nos meus jogos, os pais não ajudavam nada. Muitos são treinadores, fazem dos filhos aquilo que eles não são. Estes comportamentos, ao nível profissional, têm de ser combatidos na raiz, na formação, no comportamento dos pais com os filhos, pois isso depois extravasa para o futebol profissional.

O Francisco tem falado também muito da importância da saúde mental. Continua a ser um tabu, embora alguns desportistas já tenham vindo assumir que precisaram de ajuda. O Francisco procura passar também essa mensagem. Já recorreu a essa ajuda também?

Já recorri e ainda recorro. Acho que toda a gente o deveria fazer. Todos temos coisas difíceis com que lidar.

O Francisco, no início da entrevista, falava da tal questão de ir do céu ao inferno em poucos dias, no futebol…

Sim. Se um atleta não tiver ajuda, não tiver com quem falar, um profissional para orientar, então o caminho é muito mais difícil. Há exemplos de atletas de elite que falam sobre isso. É uma ajuda essencial, tão importante quanto um nutricionista ou um preparador físico. O corpo não joga sem saúde mental, ou joga de forma deficiente. É fulcral que essa ajuda exista e que se fale mais dela, no sentido de a normalizar. Um jogador dizer abertamente que tem esse tipo de ajuda, se calhar é visto como alguém que não tem força mental, e não se trata minimamente disso. Se há um treinador para o campo, deve existir um treinador para o lado psicológico. Os clubes também começam a ter essa abertura, pelo que cada vez mais está normalizado, e ainda bem.

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