«Vim quebrar aquela imagem do futebol como um negócio de homens de meia-idade da Europa Ocidental»

26 mai 2023, 08:55
Fatma Samoura (Pressefoto Ulmer\via Getty Images

Entrevista com Fatma Samoura, a líder que aprendeu muito cedo a impor-se perante oito irmãos numa família muçulmana e chegou a número dois da FIFA

Fatma Samoura foi eleita pela Forbes a mulher mais poderosa do desporto internacional e foi considerada pela BBC uma das 100 mulheres mais inspiradoras do mundo. É uma pessoa cheia de poder, portanto, mas quando abre o sorriso estabelece de imediato uma enorme empatia. O Maisfutebol sentiu-o na quarta-feira, quando conversou com ela no Estádio Nacional.

Nascida no Senegal, filha de um militar e de uma professora, estudou em França e trabalhou oito anos para empresas de fertilizantes, até que entrou nas Nações Unidas. Foi diretora do Programa Mundial Alimentar, foi coordenadora humanitária da ONU e liderou várias intervenções de emergência em situações complexas como Angola, Guiné, Nigéria, Libéria, Serra Leoa, Camarões, Kosovo, Nicarágua ou Chade.

Em 2015 estava a liderar o processo eleitoral de transição em Madagascar, quando conheceu Gianni Infantino, que se tinha deslocado ao país para assistir a um jogo do início da fase de apuramento para o Mundial 2018. O suíço ficou impressionado com ela e quando foi eleito presidente da FIFA, em 2016, convidou-a para assumir o cargo de secretária-geral. Desde então é a número dois da organização

Nasceu numa família muçulmana, filha única entre mais oito irmãos. Como foi sua infância?

Muito difícil [risos]. Tive uma infância boa porque sempre fui apoiada pelo meu pai. Ele era militar e na maioria das vezes estava fora de casa, em missões militares, e o que me dizia é que, sendo eu uma mulher rodeada por oito irmãos, tinha de ser muito resiliente. Tinha de lutar todos os dias para me impor e para me fazer respeitar, porque eu era a segunda na linha.

Tinha apenas um irmão mais velho?

Sim, tinha um irmão mais velho e depois era eu. Portanto foi o meu pai quem me deu aquela força para defender sempre os meus direitos e para exigir que, como mulher, fosse respeitada. Infelizmente na minha altura não existia futebol feminino no Senegal, mas eu jogava com os meus irmãos no quintal.

Gostava de jogar futebol?

Gostava muito de jogar e teria gostado de jogar num clube, mas naquela época isso não era possível para uma menina. Hoje a situação é diferente e fico feliz por ver que a comunidade senegalesa em geral aceita que mais mulheres, de dentro de uma sociedade muito conservadora, queiram jogar futebol. Até para integrar a seleção na maior competição que existe, que é o Mundial de futebol feminino. O Senegal infelizmente foi eliminado pelo Haiti, mas fico feliz também pelo Haiti, porque é um país que merece esta vitória e merece estar no Mundial. Para mim também é um sinal de que o mundo aceita cada vez mais mulheres no jogo mais popular, o que é bom.

E porque é que você começou a resposta a dizer que sua infância foi muito difícil?

Foi muito difícil porque somos uma sociedade muito tradicional e conservadora. É um país com 95 por cento de muçulmanos, onde mulheres a jogar futebol não era algo natural.

Praticar qualquer desporto, aliás, não devia ser natural.

Não era, de facto. Mas o futebol, então, estava completamente fora de questão. Por isso, para mim, ter permissão para brincar no quintal com os meus irmãos já era uma grande conquista.

Li que o seu pai e a sua mãe não queriam que você fosse discriminada pelos seus irmãos.

Sim, é verdade. Eles insistiam muito comigo que tinha de ser forte, porque eu era a segunda da fila. Tinha de respeitar o meu irmão mais velho, mas os meus irmãos mais novos do que eu tinham de me respeitar a mim. Então tive de me impor e demonstrar sempre que estava lá, que era a irmã mais velha e que eles me deviam respeito.

Alguma vez se sentiu discriminada por eles?

Não, não, na minha família não. E isso aconteceu porque o meu pai esteve sempre ao meu lado.

Mas estava a explicar porque a sua infância foi muito difícil...

Sim, foi difícil também porque, sendo o Senegal uma sociedade tradicional, naquela altura pensava-se que o lugar da mulher não era no campo de futebol a jogar, mas sim em casa a cuidar dos filhos, a ser uma boa mãe, a ser uma boa esposa e a ser uma boa irmã. Por isso foi muito difícil para mim, como mulher, reivindicar o meu direito de praticar desporto. Qualquer desporto. Mas dentro dos desportos, claro, o futebol era ainda mais difícil. As pessoas preferiam enviar-me para a natação ou jogar basquetebol, mas o futebol não.

O seu pai e a sua mãe sempre quiseram que você estudasse, verdade?

Sim.

E foi fácil ter acesso aos estudos?

Sim, sim. Foi muito fácil. Desde o dia em que entrei no jardim de infância até terminar o ensino secundário no Senegal, a minha mãe sempre insistiu para que eu chegasse a horas à escola e tirasse as melhores notas. Se no final do semestre eu não tivesse boas notas, ui, ui, isso significava que viriam aí tempos muito maus para mim com minha mãe.

Ela era muito rígida?

A minha mãe era também professora, portanto era muito severa e muito rígida connosco todos os dias em relação aos estudos. Terminávamos a escola, voltávamos para casa às cinco da tarde e tínhamos de estudar antes do jantar. Se não conseguíssemos recitar a lição adequadamente, depois do jantar voltávamos a estudar até conseguirmos recitar todas as lições, de geografia, de história, de matemática. Caso contrário, não íamos para a cama. E todas as manhãs, às 7 horas, ela vinha e batia à nossa porta. Se não fossemos abrir, ela entrava, puxava o cobertor para trás e dizia: Já para o autocarro e para a escola. Ela apoiou-me muito, porque o meu pai, como já disse, passava muito tempo fora de casa. Era mãe de nove filhos, imagine cuidar de nove crianças e garantir que cada um deles tenha boas notas na escola. Não foi uma tarefa fácil para ela. Por isso, gostaria de lhe prestar homenagem, porque sem a sua tenacidade e a sua austeridade, eu não estaria hoje nesta posição.

Como é que estudar em França influenciou o seu futuro?

Posso dizer que devo muito da minha carreira à França. Foi onde recebi os melhores estudos durante cinco anos. Fiz a minha licenciatura em Grenoble, que é uma região de esqui, nos Alpes franceses, mas que tem uma universidade muito boa, uma das melhores da França. Durante três anos estudei línguas estrangeiras, variante inglês e espanhol. Mais tarde fui para Estrasburgo e tirei o mestrado em relações internacionais e direito internacional. Também porque o ensino era gratuito em França, pude com a bolsa do governo senegalês estudar com as melhores condições possíveis.

Mais tarde, em 1995, entrou nas Nações Unidas. Como é que isso aconteceu?

Bom, foi uma coincidência muito feliz, tal como aconteceu quando cheguei à FIFA. Estava em missão para a empresa privada em que trabalhava, tentando recuperar algum dinheiro do governo angolano, em plena Guerra Civil de Angola, nos anos 90.

Portanto já estava a habituar-se a cenários difíceis de guerra...

Sim, é verdade. E foi nessa altura, em Angola, que conheci um senhor chamado Abel Becker. Já faleceu, infelizmente. Ele perguntou-me se gostava de participar do programa alimentar mundial das Nações Unidas, em Roma. Começámos a falar e a discussão transformou-se numa entrevista de trabalho. Um mês depois ofereceram-me o cargo de oficial de logística, do programa em Roma. Então comecei minha carreira lá em 95, depois de ter passado oito anos no setor privado de fertilizantes à volta do mundo.

Mais tarde impressionou Gianni Infantino quando o conheceu durante um jogo em Madagascar. O que acha que exatamente o marcou?

Não sei. Acho que ele procurou algumas informações sobre o meu passado e que ficou a saber que consegui organizar as eleições mais pacíficas, inclusivas, democráticas e justas no país, que passava por uma transição política muito difícil. Provavelmente também descobriu que sou muito apaixonada por futebol e que sou casada há 20 anos com um ex-jogador de futebol. Acho que talvez também tenha percebido que eu era um bom valor porque traria a minha visão e a minha experiência humana: que defenderia ferozmente os direitos das mulheres onde quer que fosse, que defenderia o direito das minorias e que lutaria contra todo o tipo de preconceito, discriminação de género ou racismo.

Ele procurava isso?

Sem dúvida. Esse é um tema que lhe está muito próximo do coração: ele quer ter certeza de que o futebol seja um fator de união em todo o mundo. Foi isso que realmente me impressionou nele: a visão muito própria sobre o futuro do jogo. Quando entrei na FIFA, reconheci de imediato o forte compromisso que ele tem com o futebol feminino, por exemplo. Ele é pai de quatro meninas e acho que é uma luta pessoal para ele garantir que o futebol feminino seja levado para um novo nível e que todas as mulheres que queiram jogar, por diversão ou profissionalmente, tenham oportunidade para o fazer.

Quando vê uma menina a jogar, o que é que pensa para si mesma?

Eu penso como ela é sortuda por poder tão jovem praticar futebol. Dá-me na verdade um grande arrepio na pele quando vejo meninas pequenas a correr felizes atrás de uma bola num campo de futebol, só por diversão, porque é algo que eu adorava ter feito quando era mais jovem e não tive permissão para isso. Fico feliz que minha filha também tenha a possibilidade de jogar futebol, sem ser questionada sobre os princípios culturais ou religiosos.

Mas não acha que há muito para fazer para mudar a mentalidade das pessoas em relação ao futebol feminino?

Acho que muitas coisas já mudaram. Portugal até é um país bastante conservador se compararmos com os países nórdicos, por exemplo, mas ter hoje para a exibição do troféu do Mundial feminino tantas pessoas importantes aqui presentes, significa que a mentalidade mudou tremendamente. Mantemos em aberto os debates sobre igualdade salarial, sobre direitos de transmissão do futebol feminino ou sobre os prémios das jogadoras significa que já está a acontecer uma mudança de mentalidade, o que é uma coisa normal.

Mas isso é algo que não passa pelo cidadão comum.

Vivemos numa sociedade em que a prática de um desporto não deve ser um obstáculo para ninguém, principalmente quando se trata de futebol. Gostava que muito mais países no mundo abrissem o acesso ao desporto para as mulheres e aceitassem que o futebol feminino é algo que só pode crescer, porque tudo isto não tem volta atrás.

Deixe-me dar-lhe um exemplo: em Portugal ainda existem pais de meninas que acham que elas devem praticar desporto e colocam-nas no voleibol, no basquetebol, na natação, na dança, mas no futebol não, porque é um jogo de rapazes. O que diria a esses pais?

Dir-lhes-ia que o que estão a fazer é um preconceito de género. Não existe isso de jogo de rapazes e jogo de meninas. Hoje as mulheres são árbitras, são assistentes de VAR, são jogadoras e são respeitadas. Veja o que acontece nos Estados Unidos quando falamos de futebol feminino, a influência que ele exerce no desporto em jovens em idade escolar. Precisamos de ter consciência sobre os benefícios que o futebol traz para a sociedade. O futebol tem uma linguagem universal: todos o entendem, todos podem jogá-lo e em fraternidade. Pessoas como Alexia, por exemplo, são ícones e podem falar em nome das mulheres para qualquer grupo do mundo, porque representam um modelo. Por isso vamos incentivar as raparigas a abraçar o futebol como o jogo mais bonito do mundo.

Acha que é, você mesma, um sinal das mudanças que a FIFA quer para o futebol?

Claro, sou um sinal, mas não sou um caso isolado. A verdade é que agora temos cada vez mais mulheres sentadas nas direções, inclusivamente aqui, na Federação Portuguesa de Futebol, com a presença da Mónica Jorge. Também temos mulheres a arbitrar jogos do Mundial, temos agora quatro presidentes mulheres em Federações europeias, enfim. Represento muitas mulheres porque sou a figura mais proeminente da FIFA depois do presidente Infantino, mas desde a minha nomeação muitas coisas boas aconteceram para trazer todos os que amam o futebol, não importa o género, a embarcar nesta grande jornada.

Sendo a primeira mulher, africana e muçulmana, num cargo tão importante, como foi recebida na FIFA?

Fui bem recebida. O presidente quis trazer diversidade e ultrapassar preconceitos, abrindo a bolha que era o jogo bonito. Eu tinha um histórico de boa gestão e o que vim fazer foi lidar com os problemas de gestão, não com a questão das competições. Ele quer orgulhar-se de ter mais mulheres no barco e de alguma forma vê em mim o símbolo da diversidade e da inclusão, trazendo novos conhecimentos, que antes se calhar não eram assim tão importantes. As mulheres fazem parte deste ecossistema.  Era necessário fazer esta reforma e quebrar aquela imagem do futebol como um negócio de homens de meia-idade da Europa Ocidental. Todos têm uma palavra a dizer e todos podem fazer parte disto.

Já agora, e depois dos direitos das mulheres futebolistas, a próxima luta da FIFA é contra o assédio sexual?

Todos os casos de assédio que foram reportados à FIFA foram totalmente investigados e os culpados afastados para a vida inteira. A nossa política é de tolerância zero quando se trata de qualquer tipo de discriminação ou qualquer tipo de violência de género. Quando você, que é pai, envia o seu filho ou a sua filha praticar futebol, o mínimo que espera é que ninguém afete a integridade física dele ou dela. O futebol tem de ser um porto seguro para todos e por isso temos hoje uma nova plataforma de denuncia, vamos lançar uma campanha especial dedicada apenas a combater a violência contra as mulheres, assinámos um memorando com a ONU Mulheres e estamos quase a finalizar a criação da Entidade Desporto Seguro, que vai envolver os sistemas de justiça em todo o mundo, para que não apenas possamos impor sanções desportivas, mas que estas sejam acompanhadas de sanções penais. Muitas entidades estão envolvidas com o presidente Infantino nesta luta e esperamos que em breve paremos de ouvir falar sobre esse tipo de comportamento desumano, para podermos trazer paz e serenidade ao futebol.

Para terminar, o futebol feminino é principal prioridade da FIFA neste momento?

É a principal prioridade desde o primeiro dia. Imediatamente depois de ter sido eleito em 2016, o presidente criou uma divisão totalmente nova dedicada ao futebol feminino, liderada pelo homem que já estava na task-force encarregada de reformular o futebol após o escândalo de 2015. Logo durante a campanha, ele manifestou que o futebol feminino seria uma prioridade e depois materializou-o imediatamente: levou o mundial feminino para outro nível, deu mais dinheiro para os programas de desenvolvimento, criou mais instalações, mais cursos. O comboio do futebol feminino já saiu da estação e as pessoas têm de embarcar agora. Ele não vai voltar atrás.

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