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Psicóloga clínica e psicoterapeuta

No ensino, a identidade não pode estar colada ao desempenho

23 jun, 18:12

É preciso tornar as universidades espaços de escuta, de acolhimento e de empatia. É preciso tornar as universidades – e qualquer espaço de ensino – um lugar onde a identidade não esteja colada ao desempenho. “Eu sou pelo que sou e não pelo que faço, tenho ou consigo”. É preciso combater esta ideia de que Vulnerabilidade e Fraqueza são sinónimos

“Hoje, um em cada quatro estudantes universitários portugueses toma medicação psiquiátrica”, lê-se.

Falamos do uso de psicofármacos, prescritos para acalmar o que, lá fora, inquieta ou para ensurdecer os gritos internos.

“Mais de metade dos universitários está em burnout”, continua a ler-se.

A exaustão crónica — que muitos chamam de burnout académico, embora o termo pertença, com rigor, ao domínio laboral — instalou-se nos corredores das faculdades como um aluno invisível. Muitos jovens universitários referem um cansaço que não se resolve com sono; uma tristeza que não encontra explicações ou porquês; uma sensação de perda de controlo; uma falta de propósito, como se a vida tivesse deixado de fazer sentido, num momento em que mais devia prometer.

Os jovens chegam às faculdades carregando muito mais do que o peso dos livros. Trazem dúvidas, noites partidas, uma ansiedade fina que se foi entranhando, devagar. Promessas feitas a quem os ama, e sobretudo a si próprios: a de serem capazes, a de não falharem. O corpo está pronto, mas a alma tropeça no medo de não bastar.

Houve um tempo em que a universidade era o lugar da utopia, da inquietação criativa, do mundo que se sonhava mudar. Hoje, para muitos, é o lugar onde a utopia morre sufocada em médias inalcançáveis, estágios não remunerados, preocupações financeiras e dúvidas existenciais.

A medicação, ainda que necessária em alguns casos, tornou-se um escudo frágil contra um sistema que adoece.

Os serviços de apoio psicológico são escassos. Muitos estudantes esperam meses por uma consulta. Outros não esperam: recorrem à automedicação, aos estimulantes, aos escapes fáceis e perigosos. E quando, finalmente, falam, já não pedem ajuda. Pedem sobrevivência.

É preciso tornar as universidades espaços de escuta, de acolhimento e de empatia. É preciso tornar as universidades – e qualquer espaço de ensino – um lugar onde a identidade não esteja colada ao desempenho. “Eu sou pelo que sou e não pelo que faço, tenho ou consigo”.  É preciso combater esta ideia de que Vulnerabilidade e Fraqueza são sinónimos. Não são. A Vulnerabilidade faz parte da condição humana. É precisa. É necessária.   

O que falha? Falhamos em ouvir. Falhamos em escutar. Falhamos em ver.

Falhámos também no modelo de ensino. Um ensino que privilegia a competição e o isolamento em detrimento da cooperação e da criatividade. Um ensino que recompensa a velocidade e não a reflexão, a nota e não o processo, o resultado e não o caminho. Precisamos de um ensino mais colaborativo, mais estimulante, mais humano. Precisamos de um ensino onde se valorize a partilha, a escuta, o erro como parte do percurso e não como falha; Onde o conhecimento se construa em conjunto, onde o debate substitua o teste de escolha múltipla, onde o trabalho em grupo seja mais do que uma mera divisão de tarefas — seja encontro de ideias. Um ensino que estimule a curiosidade, que ensine a pensar e não apenas a responder; Que dê tempo para imaginar, para experimentar, para criar. Que forme profissionais, sim, mas também cidadãos plenos, conscientes e emocionalmente íntegros.

A minha experiência no consultório diz-me que tudo isto começa muito antes. As crianças chegam cada vez mais cedo com sintomas de ansiedade: medo de falhar, medo de estar só, medo de não ser suficiente. Carregam mochilas tão pesadas como as dos irmãos mais velhos, mas com menos palavras para lhes dar corpo. E o que não se nomeia, corrói em silêncio.

Recordo-me de, recentemente ter visto, um trabalho de uma criança de oito anos no segundo ano do ensino básico, corrigido a vermelho pela sua professora: "(Nome da criança), Num texto descritivo não há lugar a opinião".

Aquela frase ficou-me cravada. Porque era ali, logo ali, que se matava a centelha criativa. Como se houvesse um modelo único para dizer o mundo, como se a escola fosse lugar de silenciar o eu, e não de o descobrir. A criatividade não é acessório, é sustento. E quando reprimida tão cedo, o que sobra mais tarde é muitas vezes um pensamento cinzento, medo de errar e uma voz que se cala, mesmo quando quer dizer.

Porque crescer pode custar. Mas nunca devia adoecer.

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