Georges, Sofia e Inês. A bolsa, apesar de curta, e o alojamento da faculdade, apesar de fraco, permitiram ao primeiro concluir a licenciatura. A segunda desistiu, como tantos outros fazem ao fim do primeiro ano. A última ainda não pôde terminar o curso — em parte dado o cansaço de viajar largas horas para chegar à universidade. Governo promete mudança e melhorias e culpa o anterior executivo pela falta de mais camas no ensino superior
“O nome é belga, mas todos me chamam Jorge.” Georges Lamberto vive na zona da Alameda, em Lisboa, numa residência de estudantes da Universidade Nova. É natural de Évora.
George é só mais um dos 170.000 estudantes universitários deslocados em Portugal, e um dos mais de mais de 40.000 alunos carenciados nas universidades públicas portuguesas. É bolseiro há quatro anos, quando iniciou a licenciatura em História na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), tendo este ano ingressado no mestrado em Curadoria e Humanidades Digitais. Tem 22 anos. Se não tivesse uma bolsa, e sendo hoje o preço médio por quarto de quase 400 euros no mercado privado, garante que abdicaria de estudar. “Esta questão do alojamento, de ter ou não, é que define o meu futuro. É assim desde que vim”, lamenta.
Mas apesar do lamento, considera-se um privilegiado. “Sei que fui um privilegiado. Mas é um privilégio que vem com grande mágoa, porque mais gente como eu deveria ter direito a estudar, a não ter de abdicar dos estudos.”
Os números mais recentes da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (relativos a 282 estabelecimentos de ensino superior e mais de 6.000 cursos) indicam-nos que cerca de 11% dos estudantes desistem do ensino superior ao fim do primeiro ano de curso. Uma taxa de desistência que vem subindo e que é confirmada à CNN Portugal por diversas federações académicas e associações de estudantes, sobretudo na grande Lisboa e grande Porto, e que relatam a chegada de inúmeros, e repetidos, ano após anos, pedidos de auxílio “desesperados” por parte de estudantes.
O presidente da associação de estudantes da FCSH, a faculdade de Georges, descreve o desespero e o motivo: finanças. “Não conseguimos dar resposta aos pedidos mais desesperados, por falta de meios. Mas estamos na linha da frente do combate, exigindo mais dos governos, tentando redirecionar pedidos para os serviços de ação social da faculdade, fazer a ponte. Mas falta uma resposta mais estrutural e central. O conjunto de custos é brutal para frequentar o ensino superior em Portugal. Brutal!”, garante Guilherme Vaz.
Por vezes, optei por não fazer o pagamento das propinas. Tive de optar entre comer ou pagar", Georges Lamberto, estudante
O problema está, sobretudo, no alojamento. Na falta de alojamento. No mercado privado de arrendamento — e se a média por quarto anda pelos 400 euros, numa pesquisa rápida encontramos uma grande quantidade de quatros (já com as despesas incluídas) perto e acima de 1.000 euros —, há 35.000 camas para 110.000 estudantes deslocados. E o Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior, ou seja, alojamento universitário do Estado, cobre hoje apenas 32% das necessidades.
Mas Guilherme Vaz não vê só este problema. “Outro problema é a ameaça do Governo em aumentar as propinas — não avançou, mas só pensarem nisso já revela o que revela — e ainda o aumento da refeição social [nas universidades] e diminuição da qualidade. A refeição social custava 2,79 euros e hoje está em 3,20. Para muitos dos alunos é a única refeição diária. Todos estes elementos somados forçam os estudantes a abandonar o barco. E os que não abandonam, andam a contar os tostões. Sabemos que 76% dos estudantes chegam ao fim do mês sem dinheiro para se alimentar decentemente, por exemplo”.
Voltamos à história de Georges. Também ele, e apesar de bolseiro, não viveu os últimos quatro anos desafogado financeiramente, longe disso. E o sonho de se licenciar quase terminou no primeiro ano. “Tive problemas familiares e tive medo de falhar. Tinha um exemplo, de um irmão, que abandonou o [Instituto Superior] Técnico por causa de problemas emocionais e não conseguiu voltar àquela universidade. Há sempre muita pressão, pressão acumulada de anos e anos, porque se falhamos, seja por que motivo for, perdemos a oportunidade.”, explica.
A bolsa de Georges era, e é, de 160 euros. “Cerca de 70 eram para alojamento, outra parte era propina.” Sobravam-lhe 40 euros para comer. Era insuficiente. “Infelizmente, por vezes, optei por não fazer o pagamento das propinas. Tive de optar entre comer ou pagar. Sentia-me mal, em falta. Sentia culpa, sentia remorso. Por vezes pensei: ‘O que é que estou a fazer? Tenho de deixar isto e ir é trabalhar, ajudar a minha família!’ Há momentos em que não tens vontade de continuar”, recorda.
Continuou, suportado nos “rostos familiares”. “Os amigos que fazes, os colegas nas residências, a associação de estudantes: foi através do contacto com eles que entendi que não era o único, que não estava sozinho, que infelizmente há muita gente como eu.” Atualmente, estudante de mestrado, o que já antes seria complicado, adensou-se. “Ainda recebo 160 euros, mas as propinas de mestrado são ainda mais altas. É preciso fazer uma grande ‘ginástica’, às vezes fazer uns biscates, sobretudo em cafés, já pensei também em dar explicações. É complicado. Porque se trabalhar, mesmo recebendo o salário mínimo, perderia a residência e seria difícil — ou impossível — viver e estudar em Lisboa.”
Georges Lamberto começou por viver em Campolide. Agora é na Alameda que vive. A residência de Campolide, de apenas 180 camas, entre quatros individuais e partilhados, entraria em remodelação no fim do ano passado, em resultado do Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior. A propósito deste plano, iniciado em 2018 e financiado por dinheiros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), quase tudo está por fazer. O Governo da altura prometeu mais alojamento, um total de 18.000 camas até 2026, mas a verdade é que somente 12 projetos (num total de 1.124 novas camas) estão concluídos. Em curso estão 40 empreitadas — entre construções novas, adaptação de edifícios, aquisição de imóveis e renovação, como é o caso de Campolide, de residências já existentes —, que resultarão em mais 5.000. Ainda assim, bem longe das 18.000 prometidas.
A vida nas residências mais envelhecidas nunca foi a ideal. “A experiência na residência é bastante positiva, pela experiência em si, convivência, apoio, troca de experiência. Mas há outro lado: as condições. Era difícil. Havia problemas. Faltava água quente, a internet — para trabalhar, para estudar — não era boa ou falhava, fornos e fogões também não tinham condições para funcionar por falta de manutenção, os elevadores não funcionavam. Eu tinha um colega com mobilidade reduzida que simplesmente não acedia à lavandaria nem acedia à cozinha, aquecia comida pré-feita no quarto”, recorda Georges.
Ele, Georges, que já disse ser um “privilegiado” — por ter uma residência —, diz-se agora “sortudo” — por entre obras ter conseguido novamente ter um quarto onde dormir. As remodelações, e a demora, aumentaram a escassez. “A atribuição, que é com base nos rendimentos familiares — e venho de uma família numerosa e que tem rendimentos baixos —, é automática, ou costuma ser. E ao fim de algumas semanas, já mais perto do começo das aulas, recebes o quarto. Mas isso era antes. Este ano não tive da faculdade garantia nenhuma — porque não há quartos. Havia uma opção, que era incomportável, que era a de ir para o mercado privado de arrendamento. Havia a opção de ir para a Alameda — mas fui avisado de que havia poucas vagas. E havia a opção de partilhar uma habitação com um idoso — é uma iniciativa que existe —, mas para aí também não podia ir, porque o valor da bolsa não era suficiente para as despesas. Portanto, candidatei-me à Alameda e esperei. Ao fim de algumas semanas tive resposta positiva. Acho que tive sorte.”
Sorte ou não, Georges é, ainda assim, um crítico das burocracias nas atribuições. “Agora, na residência da Alameda — e já estou em aulas há cinco semanas — continuam quartos vazios na residência. Questiono-me porquê, se há alunos a necessitar.”
Do sonho à exaustão, da vergonha à volta. “Senti-me frustrada, triste, até injustiçada"
Se a história anterior é de superação, de quem contra as probabilidades se manteve no ensino superior, histórias há que são de desistência. Histórias envergonhadas. Que engrossam estatísticas, mas que raramente têm rosto. Como a de “Sofia”. O nome é fictício.
Há um ano entraria na licenciatura de Comunicação Empresarial no ISCAP, o Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto. “Sofia” é de Braga, tinha 20 anos. A família atravessa, então, um momento delicado financeiramente. Ainda assim, não abdicaram de ter a primeira licenciada da família. “Sofia” não obteve uma bolsa. Optou por se inscrever num regime pós-laboral, trabalhando, de dia, no Starbucks. “E estudava à noite, até às onze-e-tal. Sem trabalhar não conseguia ficar no Porto. Fazer todos os dias Braga-Porto e Porto-Braga também não me era possível, porque saía bastante tarde. Como barista recebia 400 euros, mais ou menos. Procurei e encontrei um quarto por 400 euros já com as despesas — mas sem recibo, claro, porque com recibo era mais caro. Portanto, o dinheiro chegava-me para isso, mas não chegava para mais nada. Gastava mais ou menos 80 euros em alimentação, poupava ao máximo, mais 70 em propinas e mais os 100 da inscrição na faculdade. A família ajudava-me com o pouco que ainda conseguia.”
Até não conseguir mais, “era impossível”. “Sofia” desistiu dos estudos no final do primeiro semestre, “algures no final de janeiro”.
A saúde mental da estudante deteriorara-se. “Estava cansada, exausta! Só pensava em como iria conseguir pagar a renda e comer e pagar propinas. Estava constantemente, constantemente, constantemente a pensar nisto. Obviamente que o meu aproveitamento na faculdade e no trabalho eram muito maus, esquecia-me que tinha exames, chumbava, no trabalho ameaçaram despedir-me porque tinha a cabeça noutro lado — e tinham razão, claro. A ansiedade era imensa, imensa. Uma miúda com 20 anos, acabada de sair do secundário, não devia ter de enfrentar o que enfrentei, amadureci demasiado rápido, tinha ataques de ansiedade, estava completamente perdida”, recorda. Ansiosa, perdida, “Sofia” nunca pediu ajuda. “Tinha vergonha de pedir, de contar a alguém. Não contei aos meus colegas. Simplesmente congelei a matrícula e não voltei à faculdade. Aguentei muito tempo calada, não contava a ninguém, não contava à família — porque a minha família já tinha as suas dificuldades financeiras e não quis ser mais um fardo. Até que chegou uma altura em que tive de deixar o meu sonho para trás, abdicar, parar. E regressei a Braga e a casa.” Os pais, diz, ficaram “tristes, frustrados”, mas a verdade é que “não tinham mesmo como me ajudar mais”.
“Sofia” abandonou a faculdade, mas a faculdade não a abandonaria. “Depois, em casa, via-os [colegas] nas redes socais, a partilharem fotografias de convívios e pensava ‘porque é que isto me aconteceu, porquê eu?' Senti-me frustrada, triste, até injustiçada. Quando alguns colegas, mais tarde, souberam da razão da minha desistência, quiseram ajudar, ofereceram-me a casa de família, ofereceram-me comida, tudo. Mas não podia aceitar isso. Tinha-me isolado”, conta agora.
Isolou-se durante um ano. Em setembro de 2024 tenta regressar àquele curso, àquele instituto.
A família ainda vive algumas dificuldades, morar no Porto “é impossível”, então, “e como o passe agora é gratuito”, “Sofia” viaja diariamente entre Braga e Porto, “de dia, vou e volto no mesmo dia”, e encontrou um emprego, “muito menos exigente”, como promotora que lhe permitirá “pagar despesas pequenas”. “Continua a não ser propriamente fácil, é extenuante, mas não quero nem vou desistir deste meu sonho”, assegura, lamentando a falta de apoio do Estado: “Os governos, todos eles, deviam fiscalizar mais os preços dos quartos, que são exorbitantes, deviam fiscalizar quem se aproveita do desespero dos estudantes, devia ele mesmo [Estado] disponibilizar alojamentos mais acessíveis, mais camas, devia baixar próprias e devia subsidiar a alimentação de quem, como eu, não consegue viver, assim, sozinha. Porque se nada se alterar, cada vez mais e mais estudantes vão desistir. O ensino superior só vai estar ao alcance de uns poucos”.
O presidente da Federação Académica do Porto, Francisco Fernandes, alinha pelo mesmo discurso: assiste-se hoje à “elitização” do ensino superior. “Esta situação preocupa-nos, enquanto federação e enquanto cidadãos. O problema do alojamento, em concreto, é o principal entrave ao funcionamento do elevador social que a educação é ou devia ser. O alojamento tornou-se produtor de desigualdades. É verdade que em cada 10 jovens, cinco frequentam o ensino superior. Mas se forem oriundos de famílias pobres, só um em cada 10 é que na realidade frequenta. Se um quarto custa hoje em média 400 euros, os estudantes carenciados, com ou sem bolsa, nunca poderão conseguir pagar. O ensino superior é elitista e não devia ser”, crítica.
A Federação Académica do Porto, “sem fundos do Estado”, consegue disponibilizar anualmente 40 camas aos estudantes mais carenciados. “O Governo prometeu-nos em 2018 mais 18.000 camas — e estão somente cerca de 1.000 concluídas. Portanto, não bastam boas intenções.” Francisco Fernandes pede também mais fiscalização e menos Alojamentos Locais. “Em agosto tínhamos cerca de 750 camas [no Porto] no mercado privado de alojamento. Mas se olharmos para a cidade [do Porto], há 10 mil fogos para Alojamento Local. A pressão turística retirou quartos do mercado, isso é evidente e inegável. Depois temos um problema gravíssimo que é o do mercado paralelo. Mais de 50% dos estudantes alugam quartos e não lhes é passado recibo. Isto é chico-espertismo, é aproveitarem-se da necessidade dos estudantes”, acusa.
Via os meus colegas nas redes socais, a partilharem fotografias de convívios, e pensava ‘porque é que isto me aconteceu a mim, porquê eu?'" "Sofia", estudante
Ouvido pela CNN Portugal, o Ministério da Educação passa culpas aos anteriores governantes, nomeadamente pelos grandes atrasos nas obras do Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior. Segundo o Ministério liderado por Fernando Alexandre, “com a reduzida execução de projetos pelo anterior Governo”, até junho de 2024 “estavam disponíveis apenas 15.939 camas” [em 2021 eram 15.000; a ambição é de 26.000 até 2026] na rede pública de residências de estudantes para alojamento no ensino superior. “O Governo tem acompanhado de perto a execução de cada residência e tem vindo a realocar a novas residências as verbas de vários projetos que se verificou ser impossível concretizar dentro dos prazos. No âmbito dessa realocação, aprovou 18 novos projetos, correspondentes a 2.211 camas adicionais”, explica o Ministério da Educação, afirmando ainda que as instituições de ensino superior "devem ter planos de médio e longo prazo para garantir uma oferta de alojamento aos alunos deslocados, contribuindo assim para a sua melhor integração e sucesso académico”.
A priorização do alojamento é um discurso já ouvido ao primeiro-ministro. Logo no começo da legislatura, Luís Montenegro considerou “repugnante” que alguém “batalhe 12 anos” para se inscrever na licenciatura “e não o consiga concretizar” por não ter alojamento. “Isto é frustrar o esforço das pessoas, é cortar a sua capacidade de desenvolver o seu talento. É injusto e não podemos permitir que isto aconteça”, afirmou o primeiro-ministro então, prometendo “soluções mais imediatas”, nomeadamente mais 709 camas (envolvendo 25 instituições de ensino superior) em diversas Pousadas da Juventude e unidades do INATEL.
Além disso, afirmou, então, Montenegro e confirmou, agora, o Ministério, o Governo procedeu à revisão do Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo a Estudantes do Ensino Superior, alargando o pagamento de apoio a alojamento para estudantes deslocados da sua residência a alunos não bolseiros, prevendo-se que a medida chega a 13.000 alunos. No entanto, os estudantes deslocados não bolseiros receberão apenas 50% do complemento de alojamento pago atualmente a estudantes bolseiros, ou seja, até perto de 80 euros, podendo ser ligeiramente mais, pois o Governo pretende “aumentar os limites dos complementos de alojamento em linha com a evolução do indexante de apoios sociais”.
Ainda em resposta às perguntas da CNN Portugal, o Ministério da Educação garante que o atual sistema de ação social irá ter uma revisão profunda. “Neste sentido, a Direção-Geral do Ensino Superior, por orientação do Governo, lançou um procedimento para aquisição de um estudo sobre ‘Ação Social no Ensino Superior'. O estudo tem por objetivo principal avaliar critérios, já existentes e identificados ou a identificar como novos, que promovam a equidade, a transparência, a rapidez e a simplificação do processo de atribuição de bolsas de estudo, contribuindo para promover a igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior e a respetiva frequência com sucesso por parte de todas as pessoas”, refere o Ministério.
O presidente da Federação Académica do Porto diz que de nada vale rever as bolsas se não há alojamento. “As bolsas, sendo uma ajuda preciosa, são totalmente insuficientes. Porque simplesmente não temos alojamentos. Fala-se muito do PRR, do dinheiro do PRR utilizado em alojamento: a verdade é que há instituições de ensino superior que simplesmente desistiram de começar empreitadas porque têm medo de não as acabar a tempo e terem, assim, de pagar as multas. É vergonhoso o aproveitamento, ou não aproveitamento, dos fundos. Os governos são responsáveis, as instituições são responsáveis. É preciso maior celeridade. Há dinheiro, há projetos, mas também há burocracia e inércia”, crítica.
Francisco Fernandes diz ser igualmente necessário “repensar um tema complexo, bastante complexo”: os critérios de avaliação dos bolseiros, que considera “bastante apertados”. "Os relatos mais comuns são de estudantes carenciados que são bolseiros e que perdem as bolsas por falta de aproveitamento, por exemplo. Fala-se pouco disto e é importante explicarmos isto. É normal a qualquer estudante universitário, que por um problema em casa ou por não adaptação à faculdade, não conseguir ter logo um grande aproveitamento escolar — no caso, entende-se por ‘aproveitamento’ de um bolseiro completar 60% dos créditos. É muito comum não conseguirem. E isso não significa que chumbaram ou não acabaram o curso em três anos. O problema, e importa explicar, é que os critérios de aproveitamento nas faculdades para alunos com bolsas são demasiado apertados. Não queremos uma visão facilitista, em que o Estado ‘financia a preguiça’, não se trata disso; mas é preciso mais perceção social, maior compreensão”, apela.
De Azeitão a Lisboa são quatro (ou mais) horas de distância. “Faltei às aulas por desmotivação”
Faltam camas. As bolsas de hoje não cobrem despesas crescentes, das propinas à alimentação. E surge assim um terceiro tipo de estudante: os que se desdobram em viagens de transportes para não terem de desistir.
Viagens que lhes ocupam largas horas. Inês Palma, de 21 anos, estudante de Sistemas e Tecnologias de Informação na NOVA Information Management School, em Campolide, já faz há quatro anos quatro horas, “e às vezes mais”, diárias para vir de Azeitão para Lisboa. “Devia ter feito o curso em três anos, mas devido à distância, ao cansaço, foi impossível.” Azeitão, em Setúbal, pode só estar a 40 quilómetros de distância. “Mas nos transportes são duas horas para lá e duas horas para cá, quatro ao todo — isto num ‘dia bom’, sem hora de ponta, sem trânsito, em que não há greves, em que há comboios e autocarros. Se alguma coisa falhar, posso demorar cinco, até mais. E falha algumas vezes”, conta.
Apesar da “exigência”, da “dureza”, Inês nunca pôde considerar uma mudança de cidade. “Porque viver em Lisboa é impossível. Os meus pais até me podiam ajudar com o alojamento, um quarto perto da faculdade anda pelos 500 euros — embora tenha encontrado alguns a mil! —, mas tudo o resto, propinas e alimentação, é impossível para eles.”
O dia de Inês começa logo pelas 5h00. Da madrugada. Diariamente. “Acordo, arranjo-me, caminho uns 10 minutos até à paragem, de autocarro sigo para a margem sul, depois há comboio até Sete Rios e depois novamente autocarro até Campolide — e depois novamente um percurso a pé. É claro que cheguei atrasada diversas vezes, é claro que faltei a aulas por desmotivação, cansaço, e mesmo estudar nos transportes não é uma coisa fácil, porque estás constantemente a trocar e preocupada em como não perder aquele autocarro ou aquele comboio — porque se perdes, ficas mais uma hora à espera do seguinte. Às vezes aproveito a viagem até mais é para dormir! Porque é tempo que não dormi em casa.”
Inês ponderou desistir. O caso é habitual. A presidente da Federação Académica de Lisboa, Mariana Barbosa, recorda que no ano passado “23% dos estudantes disseram que ponderaram abandonar a faculdade”. A estatística resulta de um inquérito realizado pela Federação. E traz mais informações: “E se a saúde mental era o seu principal motivo, as questões financeiras vinham logo a seguir — e não são indissociáveis uma da outra. Hoje, somadas as despesas todas, custa 930 euros por mês estudar no ensino superior em Portugal. O ensino deveria ser para nós um elevador social e tornou-se, apesar de termos mais estudantes e mais licenciados, num fator de discriminação. Assistimos a uma elitização do ensino”.
No entanto, ressalva a presidente da Federação, os estudos já existentes referem-se somente a quem já desistiu ou pensa em desistir. “O sistema de ação social falhou e falha, por vezes, desde o primeiro dia. Estamos hoje a falar de estudantes que abandonam o curso, mas há mesmo muita gente que nem chega sequer a candidatar-se, porque o custo financeiro é incomportável, os pais não podem suportar, e trabalhar — mesmo em full time — não é suficiente para cobrir as despesas. Portanto, acabam logo de fora do sistema, sobretudo quando vêm de meios desfavorecidos. E mesmo quem pensar em pedir uma bolsa, há um desfasamento entre o ser-se colocado — e as aulas já terem começado — e o saberem se são ou não bolseiros. Há um desfasamento incompreensível”, acusa Mariana Barbosa.
Dei por mim várias vezes a chorar simplesmente porque perdia um autocarro e sabia que já não ia chegar a tempo às aulas ou a um exame", Inês Palma, estudante
Segundo a estudante e líder da Federação Académica de Lisboa, a ansiedade no ensino superior em virtude dos problemas económicos dos estudantes “é altíssima”. Mas os pedidos de ajuda, apesar de tudo, são poucos. “Não recebemos muitos porque sentem vergonha, a verdade é essa. Sabemos que há gente, bastante gente, nesta situação, mas resguardam-se, afastam-se, desaparecem ao fim de um ou dois semestres. Recebemos, sim, contactos de estudantes com dificuldade em encontrar alojamento, pedem-nos ajuda, e encaminhamos esses estudantes para senhorios que conhecemos, que são fiáveis. Depois, para combater o abandono, trabalhamos na prevenção, é importante haver estudantes mais velhos que auxiliem na integração dos que chegam. Se um estudante se afasta, se falha, não é um baldas, o que é preciso é sinalizá-lo e ajudar. A ansiedade causada por problemas económicos é real”, refere.
Inês Palma sentiu essa ansiedade. “Claro que senti, dei por mim várias vezes a chorar simplesmente porque perdia um autocarro e sabia que já não ia chegar a tempo às aulas ou a um exame.” Ainda assim, conseguiu, “com ajuda da psicóloga”, cuidar da saúde mental. Os colegas de faculdade foram também parte importante para se manter no curso. "Houve semanas, sobretudo em época de exames, em que dormi três, quatro vezes em casa de alguém, porque acabávamos de estudar tardíssimo e já não ia regressar a casa se tinha exame às 8h30. E é importante aceitarmos que existem, ainda assim, situações piores. Esta é a minha, não é fácil, mas há bem piores.”
Segundo os números da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, a taxa de desistência do ensino superior é a mais elevada em oito anos e aumenta há quatro anos consecutivos.