Júlio sentiu que a falta de uma formação superior o fez perder “imensas oportunidades profissionais”, Ivo viu na pandemia uma forma de se reinventar e Miguel decidiu dar uma nova oportunidade aos estudos e até já está a completar outras formações. Todos os anos, são milhares os alunos que se inscrevem no Ensino Superior no regime para maiores de 23 anos e garantem que nunca é tarde demais para estudar - e Ana Paula, de 51 anos, é prova disso mesmo
Há quem queira progredir na carreira, há quem procure uma profissão totalmente nova ou simplesmente terminar aquilo que, por circunstâncias da vida, ficou por fazer ou não foi sequer possível tentar. Todos os anos, milhares de pessoas com mais de 23 anos aventuram-se pela primeira vez no Ensino Superior e quem o faz garante que “nunca é tarde demais”, até porque o bichinho tende a ficar e muitos admitem continuar a ser estudantes.
Júlio Martins, de 39 anos, decidiu entrar na universidade em 2019. “Já foi há algum tempo, porque sendo pai de três filhos não tenho muito tempo disponível e faço poucas cadeiras a cada semestre”, conta à CNN Portugal. A trabalhar “há 20 anos” como informático e sem nunca ter estudado no Ensino Superior, decidiu aos 34 anos aventurar-se e inscrever-se em Engenharia Informática na Universidade Aberta. “Sinto que deixei algo inacabado ao não ter completado os estudos e sei que perdi imensas oportunidades profissionais ao longo dos anos devido a isso”, admite.
Apesar de ainda não ter terminado o curso - “vai a meio, porque o estou a fazer devagarinho” - Júlio, residente em Paredes, tem uma certeza: “Sei que já foi valioso”. Com um “boa oportunidade profissional” em mãos, Júlio garante que só a conseguiu “agarrar” por estar a apostar na sua formação, que diz que já permitiu “aprofundar conhecimentos e compreender o porquê de fazer certas coisas de determinada forma”. “Abordo os problemas de forma diferente e ganhei hábitos de pesquisa, documentação e escrita que não tinha”, reconhece. Além disso, sublinha, “o saber não ocupa lugar, ficamos sempre mais completos, mais cultos”
O regime de acesso para maiores de 23 anos destina-se a quem não realizou os exames nacionais em Portugal e possui 23 anos completos até 31 de dezembro do ano que antecede a candidatura ao Ensino Superior. O ingresso requer a realização de um teste de uma das disciplinas associadas ao curso eleito e depois uma entrevista.
Segundo os dados facultados à CNN Portugal pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação, entre os anos letivos 2019/2020 e 2022/2023 foram colocados 20.166 alunos através deste modelo de acesso. Foi nos anos letivos do período de pandemia aqueles em que houve mais inscritos neste regime: 5.077 em 2020/2021, 5.339 em 2021/2022 e 5.087 em 2022/2023. O primeiro balanço do ano letivo 2023/2024 dá conta de 3.671 alunos com mais de 23 anos inscritos pela primeira vez nas instituições de Ensino Superior.
Os anos de pandemia acabam por ser, para muitos, um empurrão para mudanças profissionais. E Ivo Pereira é um exemplo disso: depois de terminar o Ensino Secundário apostou numa formação de cinco anos de Medicina Tradicional Chinesa e trabalhou sempre na área da acupuntura, sem parar ao longo de “14 anos”. Até que chegou a covida-19. “Parou mesmo tudo e isso assustou-me. Uma coisa é quando se é novo, mas quando se é mais velho e se vê a idade a andar para trás começa-se a pensar duas vezes”, conta.
Voltar a estudar não estava propriamente nos seus planos, mas “numa conversa casual com uma amiga” bastou ouvir uma frase, quase um cliché que até então lhe passava despercebido. “Nunca é tarde para estudar”, disse-lhe a amiga. “E fiquei com essa luzinha, candidatei-me e arrisquei porque sabia que teria capacidade para tal”, admite, orgulhoso. “Nunca é tarde para dar assim uma volta à vida”, garante, dando o exemplo de dois colegas de curso que acabaram por ser o seu “pilar”. “Apanhei uma turma espetacular, apanhei duas pessoas mais velhas do que eu, uma de 50 e tal anos e outra que voltou a estudar, e acabaram por ser dois pilares para mim”, lembra.
Ivo, de 42 anos, inscreveu-se em 2021 no curso de Administração Pública no Instituto Politécnico de Leiria, região onde reside. Até agora “correu tudo muito bem”, já fez um estágio e já só espera por setembro para dar o curso como concluído e dedicar-se à sua nova vida. “O ideal será dedicar-me a 100% à administração pública” pelo menos numa fase inicial, porque o amor pela acupuntura mantém-se. “Se conseguir conciliar aos fins de semana, irei fazê-lo”, diz.
Para Ivo, a escolha do curso de Administração Pública deveu-se sobretudo à procura de “estabilidade”, mas acabou por perceber que “tinha uma segunda vocação” que até agora desconhecia: “leis e direito”. “Percebi que adorava aquilo”, vinca, não deixando de parte continuar a estudar, quem sabe, “depois, tirar o mestrado”.
Os 30 são os novos 18
Dados do ano letivo 2022/2023, facultados à CNN Portugal pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação, revelam que quem adere a este regime de acesso ao Ensino Superior tem em média 33 anos, mas há cursos em que a média de idades é superior, como Escultura na Universidade de Lisboa, cuja média de idade dos dois inscritos foi de 62 anos, ou Design em Aveiro e Arqueologia no Porto, cuja idade média foi de 58 anos.
Ao todo, foram 18 os cursos cuja média de idade dos inscritos neste regime (um total de 23) era superior a 50 anos. Foram 149 os cursos que receberam alunos com idades entre os 40 e 49 anos e 962 os que tiveram inscritos alunos com uma média de idade entre os 30 e os 39 anos.
É na Universidade Aberta que mais alunos aderem a este regime. Ao todo foram 1.278, com destaque para Ciências Sociais (para quem pretende obter o nível de técnico superior nas áreas da administração central, regional e local, seja no público ou no privado), onde entraram 651 alunos com uma média de idades de 41 anos, seguindo-se Educação com 182 inscritos com uma média de idades de 39 anos, Estudos Europeus com 94 inscritos com uma média de idades de 40 anos. Na Universidade do Algarve destaca-se Gestão em regime noturno, com 40 alunos inscritos com uma idade média de 38 anos. O Instituto Português de Administração de Marketing do Porto teve 39 inscritos em Gestão de Marketing, com idade média de 36 anos. Na Universidade de Lisboa foram os cursos de Direito, em regime normal e pós-laboral, as principais escolhas, com idades médias de 35 e 37 anos.
No que toca ao curso mais procurado, são as mais variadas vertentes de Gestão, incluindo pública, imobiliária e de recursos humanos, as que mais captam a atenção.
Uma segunda oportunidade
Miguel inscreveu-se no curso de Engenharia Eletrónica e Telecomunicações e de Computadores no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa há 14 anos, quando tinha 25 anos. Na altura, foi uma espécie de desforra por tentativas não bem conseguidas de terminar a formação que pretendia. “Em 2007 fiz um ano sabático académico, depois voltei para estudar à noite, mas disseram que os módulos iam prescrever, fui para um outro curso e voltou a acontecer o mesmo. Não cheguei a acabar o secundário, entrei para a faculdade com o nono ano”, revela. E todo o processo de acesso, conta, foi simples. “Fiz o exame de entrada, depois uma entrevista, uma prova oral.” No seu caso teve de estudar Física e Matemática para a prova de acesso, da qual se lembra bem: “Tinha três partes, uma de física básica, uma de matemática num modelo semelhante ao do secundário, e a terceira era a parte escrita para justificar porque é que o consumismo está na origem do desenvolvimento económico.”
Olhando para trás, não tem dúvida de que voltar a estudar foi a melhor decisão. “Antes de acabar o curso já estava a trabalhar na área, no IT da Autoeuropa, fiz lá o estágio no segundo ano.” Aos poucos, foi-se apaixonando ainda mais por uma área que já era do seu interesse: “Fiquei mais interessado na parte de telecomunicações e fui para o NOC [Network Operations Center] da Vodafone e foi entrada imediata.” Atualmente, Miguel está a completar outras “duas formações”, financiadas pela empresa onde trabalha, na área da consultoria.
Ao contrário de Júlio, Ivo e Miguel, Ana Paula Cardoso decidiu terminar aquilo que, por circunstâncias da vida, ficou por fazer: uma licenciatura. E conseguiu-o este ano, aos 51 anos.
Ana Paula já se tinha inscrito num curso de Gestão há muitos anos, mas decidiu interromper os estudos por “causa da família” - “achei que o meu filho mais velho precisava de mim na adolescência”. Cancelou a licenciatura, começou a trabalhar mas sempre com o bichinho de que um dia iria voltar. E voltou, mas fez “tudo de novo”. “Comecei do zero, não pedi equivalência de nenhuma cadeira da outra faculdade.”
Agora, diz-se orgulhosamente licenciada em Gestão Pública pelo Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, em Barcelos, que permitiu que fizesse todo o curso à distância. “Só assim é que consegui”, diz, admitindo que, apesar de nunca ter deixado de lado a possibilidade de voltar a estudar, o regresso deu-se “de repente”. “Soube que havia esta licenciatura e haver aulas à distância era muito bom para mim.”
A trabalhar como funcionária pública na Autoridade Tributária, Ana Paula Cardoso viu nesta licenciatura uma forma de “progredir na carreira” e já se candidatou “a uma carreira especial da Autoridade Tributária”, na função de gestora tributária, estando agora à espera do estágio.
Mesmo tendo feito todo o curso à distância - à exceção da defesa da tese, que foi presencial -, Ana Paula Cardoso nunca sentiu um tratamento diferente pela sua idade, “pelo contrário”, apressa-se a dizer. “Acho que até têm uma atenção connosco, valorizam o termos deixado de estudar há muito tempo, sabem que a idade e capacidade de assimilação não são as mesmas e isso é tudo tido em conta.”