Vistos Gold: querem investir em Portugal, mas acabam enganados

23 abr 2022, 08:00
Lisboa

Investiu quase um milhão de euros em dois imóveis. Queria viver com a família em Portugal e aceder a um Visto Gold, mas viu-se envolvida num processo sem fim. Uma das casas tinha uma hipoteca e perdeu o direito à autorização de residência. O processo vai agora a tribunal. E não é o único caso no País: há muitos investidores afundados em problemas

Kuljeet Prithipal Chadda Singh, natural do Quénia, queria investir, viver com a família em Portugal e candidatar-se à atribuição de um Visto Gold. Para isso comprou dois imóveis em 2018, um no Algarve e outro em Lisboa. Este último tinha uma hipoteca que o vendedor lhe ocultou e que ao fazer a escritura assumiu automaticamente. Devido a esta dívida perdeu o direito ao Visto Gold e pode mesmo perder a casa. Tem três processos a correr na justiça e um deles tem julgamento marcado para esta última semana de abril.

Este não é, porém, um caso isolado e há vários investidores estrangeiros, que desejam requerer Vistos Gold, que acabam "enganados".

João Massano é advogado e Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados. Alguns dos seus clientes são requerentes de Vistos Gold e a história de Kuljeet Prithipal Chadda Singh, infelizmente, não é a única, garante. Em alguns casos é o próprio Estado que falha nas expetativas criadas, noutros são empresas que abusam da falta de conhecimento do mercado destas pessoas.

Apesar de, agora, a situação estar mais calma, ainda há muitos problemas por resolver nas Autorização de Residência para Investimento – ARI (Vistos Gold). À CNN Portugal João Massano defende que no caso dos Vistos Gold, o Estado não age de boa fé: "Isto não é boa fé. Diz às pessoas, invistam cá, mas depois não lhes dá os meios para eles terem acesso ao que lhes promete. Não lhes dá resposta, nem cumpre as expetativas que criou e que deu às pessoas".

"Havia pessoas que eram quase profissionais de agendamentos"

Neste momento, o Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, tem vários clientes em situações complicadas. "Nem sequer conseguem pedir um agendamento porque ninguém os atende no SEF. Neste momento, conheço situações em que as pessoas ou precisam de renovar os Vistos Gold, ou querem requerer o Visto Gold depois de já terem feito os investimentos e não conseguem, pura e simplesmente, obter marcações no SEF". Há quem esteja à espera de marcação há mais de um ano.

E para quem já está no país ou vem muitas vezes a Portugal, isto torna-se um problema devido ao visto caducado:

"Podem sair, mas para reentrar têm dificuldades". Foi prometida uma alteração, "com agendamentos cronológicos", que lhe parece a melhor fórmula, mas este "ainda não estão a ser feitos". "Vi pessoas com familiares doentes e que queriam ir ao pais de origem visitá-los mas tinha medo e não iam."

Mesmo assim, garante que já foi pior: "O sistema que existia propiciava manobras menos claras. Era do género, abria-se umas vagas, entretanto, havia alguém que era mais rápido ou tinha melhores conhecimentos e fazia uma serie de agendamentos que, muitas vezes, nem tinha pessoas para isso. Eu sabia que havia pessoas que faziam agendamentos para garantir vagas e depois as iam vender. Pessoas que eram quase profissionais de agendamentos. Teriam algum contacto no SEF e depois iam vender as vagas a quem tivesse interesse nisso. Estas eram as histórias que me relatavam."

“Todos queremos ganhar dinheiro, mas não é preciso enganar os outros”

Casos parecidos com o de Kuljeet Prithipal Chadda Singh não são estranhos para este advogado: "Todos ouvimos falar de agências que procuravam as casas e depois mostravam as casas e cobravam por isso. Mesmo agências fora do país, que tinham parcerias com agências portuguesas ou que tinham cá estabelecimentos secundários".

Muitos investidores também adquiriram casas sem as ver, ou só com visitas pelas internet, e isso terá potenciado muitos enganos. E os valores cobrados a quem pretendia obter um Visto Gold era muitas vezes superior. "Tive vários clientes que descobriram, já depois de comprar, que os vizinhos tinham pago valores bastante inferiores. Alguns até queriam voltar atrás, mas tendo o contrato assinado, já não havia nada a fazer", conta João Massano à CNN Portugal.

"Houve empreendimentos que foram vendidos a valores verdadeiramente aberrantes, que não valiam sequer dois terços do valor pago. Havia, inclusivamente, situações em que juntamente com o preço do imóvel, se incluía o tratar do Golden Visa junto do SEF e e tudo mais", explica.

João Massano acredita que com mais fiscalização se pode evitar muitos problemas e penalizar os maus profissionais. Apesar de reconhecer que a maioria dos mediadores é honesta alerta: "Os mediadores imobiliários têm de perceber que todos queremos ganhar dinheiro, obviamente, mas não podemos enganar as pessoas". 

A maioria dos requerentes, da sua experiência, pretende apenas investir em Portugal, mas há quem queira viver no país. A localização, o tempo, as pessoas e até a educação convenciam muitos a ficar: "Aqui há acesso a uma educação europeia. Tenho clientes que residem cá, com separação do casal, para que os miúdos estudem em Portugal".

"Aconteceu tanta coisa que não me imagino a viver em Portugal"

Oriunda do Quénia, Kuljeet Chadda Singh trabalha na área da banca, em investimentos. Depois de ter sido diagnosticada a doença de Alzheimer à mãe, procurou um lugar onde pudessem ficar e garantir-lhe o melhor tratamento médico possível. O irmão já tinha investido em Portugal e parecia um local seguro. Atualmente vive no Qatar, mas já passou por outros países. Residiu e estudou no Reino Unido durante muito tempo, mas essa não era uma opção, porque não gosta do clima. Ficar no Quénia também não estava nos seus planos. Kuljeet Chadda Singh contou à CNN Portugal a sua história.

Procurou uma empresa estrangeira que a pudesse ajudar a encontrar o que desejava em Portugal. Era uma empresa especializada em serviços profissionais diversificados e gestão de investimentos. O parceiro desta empresa em Portugal fez visita guiada a duas casas a Kuljeet Chadda Singh: "Mostrou-me duas casas, gostei delas, e decidi comprá-las". As primeiras peripécias começam ali e foram muitas. Era o ano de 2018. Em tom de desabafo, hoje diz: "Aconteceu tanta coisa que não me imagino a viver em Portugal". E também não tem dúvidas em apontar o dedo ao Governo e à justiça.

Por este serviço, procura e visita de casas, pagou 2% do valor das mesmas. Mas havia mais custos. "O agente que me mostrou as casas também me exigiu dinheiro, dez mil euros pelo serviço. Liguei à outra companhia e perguntei como era possível ter-lhes pago e estarem a exigir mais dinheiro. Eles responderam que tinham acordado com o agente o pagamento de dois mil euros e foi o que dei. A situação foi ridícula", diz.

Em agosto de 2018 acabou, finalmente, por comprar um imóvel no Algarve por 280 mil euros. Como os Vistos Gold obrigam a um investimento mínimo de 500 mil euros livres de ónus e encargos, também adquiriu um apartamento em Lisboa. Por esse imóvel deu 10 mil euros de sinal, seguidos por mais 120 mil euros no Contrato de Promessa de Compra e Venda. Ficaram por pagar 520 mil euros, que seriam entregues no dia da escritura. Ao todo eram 650 mil euros.

Ausente do país, Kuljeet Chadda Singh, estava representada por um advogado na escritura do imóvel de Lisboa, que foi assinada a 12 de dezembro de 2018. No ato, o advogado entregou o cheque ao vendedor do apartamento, proprietário de uma imobiliária. Tudo decorreu em frente a uma notária, mas sem a presença de um representante de uma instituição bancária. Era uma quarta-feira.

Após a escritura, e já com o documento na sua posse, o advogado terá ido para casa. Pouco tempo depois, no mesmo dia, a notária ter-lhe-á ligado a dizer que, apesar de a escritura ter sido realizada livre de ónus e encargos, o imóvel tinha uma hipoteca e que o vendedor não tinha entregue os cheques ao banco.

Mas só dois dias depois, o advogado, que pertencia a um escritório com vários associados, avisou a cliente: "Ligou-me numa sexta-feira à noite e pediu-me para tentar impedir o pagamento do cheque, porque o imóvel tinha uma hipoteca. Como se eu o pudesse fazer numa sexta à noite. E só me ligou dois dias depois", recorda.

"Eles cometeram um erro e não assumiram"

Kuljeet Chadda Singh não tem dúvidas que o vendedor não tinha intenção de pagar a hipoteca e, por isso, ocultou a sua existência, mas também aponta o dedo aos advogados: "Ele não tinha intenção de pagar a hipoteca e depois houve incompetência dos outros envolvidos".

Acabou por entrar em discordância com o escritório. "Eles cometeram um erro e não assumiram", explica. Recusou fazer o último pagamento e viu as chaves da sua casa retidas. "Ele não meu deu as chaves do apartamento, porque eu não quis pagar". Sentiu-se "uma criminosa", na sua própria casa, partindo um vidro para entrar e conseguir trocar a fechadura.

No mesmo dia da sua escritura, estava marcada uma segunda venda, pertencente à mesma pessoa, para um outro imóvel no mesmo prédio. A representante do banco, para com quem o vendedor teria as dívidas, só marcou presença nesta segunda escritura.

No final e já sem os compradores presentes nas instalações, o vendedor terá recusado entregar os cheques, recebidos em ambas as escrituras, à representante do banco e também saiu do cartório. Perante esta atitude, a representante pediu à notária os distrates de volta. Ou seja, os documentos que dariam as hipotecas como pagas não foram anexados às escrituras.

Requerer o Visto Gold é, agora, impossível

Kuljeet Prithipal Chadda Singh pensava que estava a adquirir um imóvel livre de ónus e encargos, mas na prática, sem a entrega dos distrates, a cancelar a hipoteca, ela não só pagou 650 mil euros pela casa, como "assumiu" uma dívida de 520 mil euros a uma instituição bancária. Em pouco tempo o sonho, tornou-se num pesadelo. 

Ao ficar com a dívida, mesmo sem qualquer responsabilidade, deixou de estar habilitada a requerer um Visto Gold e este também era um desejo de Kuljeet Chadda Singh. Para se requerer o Golden Visa, além do investimento de pelo menos 500 mil euros, não podem existir dívidas.

Optou por não pagar a hipoteca, que não era sua, e sabe que corre o risco de perder a casa. Tal como o outro comprador do segundo apartamento no mesmo prédio. Desde 2018 que esta queniana tenta resolver a situação, mas ainda não conseguiu. A justiça demasiado lenta tem-lhe travado o caminho e, na verdade, a única coisa que desejava, depois de se sentir “enganada”, era vender o imóvel e esquecer o assunto. Mas ninguém quer comprar. Já passaram mais de três anos e está cansada: "Estou exausta com este problema. Não é saudável e está a afetar-me. Sinto-me frustrada com a velocidade das coisas em Portugal".

E, por isso, não poupa críticas: "O sistema judicial também é responsável pelo tempo que temos perdido. É muito lento. Quem engana os outros conta com isto e espera que as pessoas desistam ou não tenham dinheiro para aguentar".

Mas vai mais longe: "O Governo também é culpado, porque quando convidam investidores para irem para Portugal, têm de garantir que o sistema judicial os apoia. Uma coisa é quando alguém nos faz mal, outra é quando o sistema nos falha de todas as maneiras."

Atualmente, correm três processos na justiça e o processo crime tem a primeira audiência marcada para este mês de abril de 2022. "É como estar num universo alternativo, em que tudo é o oposto do que devia ser", confessa. "Eu não posso esquecer este dinheiro. Eu trabalho para ter dinheiro", acrescenta.

Profissionalmente está ligada à banca e a investimentos e diz que o sistema bancário em Portugal "a deixa tonta".  "No Reino Unido teriam me ajudado a resolver este assunto, porque sabem que divida não é minha. A coisa mais ética a fazer seria colaborar comigo para a judar a resolver a situação".

Vistos gold já valeram mais de seis mil milhões a Portugal

Chamam-se Autorização de Residência para Investimento – ARI, mas são conhecidos por Vistos Gold. O programa foi lançado em novembro 2012 e visava captar investimento estrangeiro. Segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), do final de 2021, em nove anos foram captados pelo país mais de seis mil milhões de euros - 6.057.663.503,19 euros, ao certo.

A China, o Brasil, a Turquia, a África do Sul e a Rússia são as nacionalidades que lideram o top 5 em termos de investimento captado através do programa Vistos Gold. Sozinhas garantiram nos últimos anos mais de quatro mil milhões de euros.

Dos mais de seis mil milhões, a maioria corresponde à compra de bens imóveis, com uma pequena parte destinada à reabilitação urbana 350.507.722,90 euros. Já o investimento resultante da transferência de capitais foi de 586.089.554,59 euros.

Desde que foi criado, este programa atribuiu 10.170 Vistos Gold. Destes, 9.514 foram atribuídos por via de compra de imóveis.

2012 2
2013 494
2014 1.526
2015 766
2016 1.414
2017 1.351
2018 1.409
2019 1.245
2020 1.182
2021 781


 

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