O que Chernobyl nos ensina sobre a propaganda russa

CNN , Lev Golinkin
2 mai 2022, 07:30
A central nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, depois da explosão a 26 de abril de 1986. Foto: SHONE/Gamma-Rapho/Getty Images

OPINIÃO. Trinta e seis anos depois de Chernobyl, a Rússia ainda nos mantém no escuro. Durante quase 70 anos, o Kremlin fez com que gerações de cidadãos tolerassem o derramamento de sangue, encoberto por falsidade e propaganda. O mesmo está a acontecer hoje, na selvagem guerra de Moscovo na Ucrânia.

Marchando sob uma nuvem radioativa

Nota do editor: Lev Golinkin escreve sobre identidade de refugiados e imigrantes, bem como sobre Ucrânia, Rússia e extrema-direita. É o autor do livro de memórias “A Backpack, a Bear, and Eight Crates of Vodka”. As opiniões expressas neste comentário são suas. 

Os cartazes eram otimistas. Mas, afinal, isto era a União Soviética, onde os cartazes eram sempre otimistas. Gabavam-se do cumprimento das quotas industriais e de colheitas, de tratores e tanques produzidos antes do fim do prazo, de glória ao comunismo e a Vladimir Lenine, o fundador da Rússia soviética.

Eu tinha 6 anos e saíra com os meus pais para ver os cartazes e as bandeiras em Kharkov (que agora se chama Kharkiv), a segunda maior cidade da Ucrânia. Estávamos quase a regressar ao nosso bloco de apartamentos quando ouvi a minha avó gritar da varanda, dizendo à minha mãe para me levar para dentro. Tinha ouvido um boato de que houvera um acidente na central nuclear de Chernobyl, a menos de 500 quilómetros de Kharkiv.

Era o 1º de maio de 1986, um dos principais feriados do ano soviético – uma celebração dos trabalhadores e dos camponeses. E o Kremlin nunca perdeu uma oportunidade para fazer um desfile, mesmo no meio do pior desastre nuclear da história.

A explosão de Chernobyl aconteceu em 26 de abril de 1986 - cinco dias antes do desfile de 1º de maio. Mas Moscovo permaneceu em silêncio, recusando-se a admitir que alguma coisa tinha ocorrido, até que a nuvem radioativa de Chernobyl foi detetada na Escandinávia a 28 de abril, tornando impossível esconder durante mais tempo a catástrofe. Mesmo depois de o Kremlin ter sido forçado a reconhecer um incidente na sua central nuclear, minimizou grosseiramente o problema.

Agora, 36 anos depois, a Rússia ainda mantém os seus cidadãos na escuridão – desta vez, sobre a verdadeira fotografia da sua guerra na Ucrânia.

A 29 de abril, três dias depois do desastre de Chernobyl, Moscovo divulgou um anúncio conciso na televisão informando os cidadãos que um reator fora danificado e que estava a ser prestada ajuda àqueles que precisavam. O anúncio durava menos de 20 segundos. O Kremlin não cancelou os desfiles de 1º de Maio, realizados em inúmeras cidades da região. E assim saímos, com cartazes, faixas vermelhas, otimismo – e radiação.

Habitantes de Kiev fazem fila para preencher formulários, como parte das verificações de radiação em pessoas potencialmente expostas à precipitação radioativa de Chernobyl, em 9 de maio de 1986. Foto: Boris Yurchenko/AP

Os dias e semanas que se seguiram foram preenchidos com uma torrente de rumores e insinuações nas salas de estar em toda a URSS, enquanto Moscovo continuava a acumular secretismo e ofuscação sobre a explosão. O Politburo começou a aliviar as restrições à liberdade de expressão, mas a confusão permanecia. Ninguém sabia a verdade, mas todos sabiam que o Kremlin estava a mentir – e essa era a única certeza que existia.

As pessoas podem justificar quase tudo, especialmente quando vivem sob uma ditadura. Podia culpar os invernos maus pelas fomes, as agressões externas pelas guerras, a sabotagem dos capitalistas pelas dificuldades económicas, até mesmo a loucura paranóica de Joseph Estaline pelos antigas purgas soviéticas.

Mas não havia como racionalizar a radiação. A recusa de Moscovo em cancelar as festividades do 1º de Maio expôs o horror vazio da União Soviética – mesmo os mais fiéis crentes no comunismo perceberam que viviam num país que colocava milhões de pessoas em perigo apenas para poder realizar um desfile.

Um retrato de Vladimir Lenine em cima de um camião durante as comemorações do 1º de maio na Praça Vermelha, em Moscovo, em 1986. Imagens de Karl Marx e Friedrich Engels, fundadores do comunismo moderno, podem ser vistas na multidão. Foto: AFP/Getty Images
O então líder soviético, Mikhail Gorbachov, acena do alto do Mausoléu de Lenine na Praça Vermelha, em Moscovo, durante as celebrações do Dia de Maio de 1986. O desfile não pareceu afetado pelas notícias de um incidente em Chernobyl. Foto: Boris Yurchenko/AP

O próprio Presidente soviético, Mikhail Gorbachev, admitiria que Chernobyl – que corroeu a fé no sistema soviético, envenenou vastas extensões de terra e custou milhões a limpar – contribuiu para o colapso da URSS mais do que qualquer outro fator. Décadas de secretismo de Moscovo em torno do desastre tornam impossível chegar a uma estimativa precisa das vítimas e, até hoje, os especialistas continuam a adivinhar e a reavaliar o verdadeiro impacto de Chernobyl.

A decisão do Politburo de avançar com o desfile encaixa-se firmemente na história de uma ditadura fundada em mentiras. Lenine subiu ao poder prometendo às pessoas “paz, terra e pão” e, em vez disso, inaugurou um regime totalitário que assassinou milhões, muitas vezes à fome.

Cavalos mortos e moribundos perto de uma quinta Belgorod durante o Holodomor (Grande Fome) na Ucrânia em 1934. Foto: Daily Express/Hulton Archive/Getty Images

 

O então líder soviético, Joseph Estaline (segundo à direita) e o oficial da polícia secreta Nikolai Yezhov (à direita) posam no Canal de Moscovo em 1937. Foto: RIA-Novosti/AFP/Getty Images
Yezhov supervisionou a Grande Purga de Estaline. Mas depois de cair em desgraça, foi denunciado, executado e removido desta imagem. Foto: RIA-Novosti/AFP/Getty Images

Então veio Estaline, que ficou conhecido por ter inimigos apagados de fotografias (outros regimes comunistas fizeram o mesmo). Em 1932 e 1933, quando Estaline matou 3,9 milhões de ucranianos de fome, orquestrou um cuidadoso engano do Ocidente, ocultando as verdadeiras estatísticas de mortes e banindo a maioria dos jornalistas estrangeiros.

Durante quase 70 anos, os soviéticos no Kremlin fizeram com que gerações de cidadãos tolerassem o derramamento de sangue, encoberto por falsidade e propaganda. O mesmo está a acontecer hoje, na selvagem guerra de Moscovo na Ucrânia. Os formatos de comunicação podem ser um pouco diferentes, mas as mentiras continuam.

Um trabalhador com equipamento de proteção fotografado com caixas de alimentos deitadas fora, no aterro de Berlim-Wannsee em 9 de maio de 1986. As autoridades de Berlim proibiram a venda de vegetais contaminados depois de Chernobyl. Foto: Rainer Klostermeier/AP

O Politburo não cancelou o desfile do 1º de Maio de 1986 pela mais simples das razões – porque não podia. Cancelar o desfile significaria reconhecer que a União Soviética tinha tido um grave acidente nuclear. Mas a narrativa da União Soviética – uma terra que adorava a indústria, glorificava a energia nuclear e exultava com a visão de mísseis balísticos intercontinentais trovejando pela Praça Vermelha – não permitia acidentes nucleares e, portanto, o desfile não podia ser cancelado.

O mesmo é válido para o regime do Presidente russo Vladimir Putin. O ditador do Kremlin baseou o seu reinado, em grande parte, na restauração do prestígio russo, que é uma maneira educada de dizer a restauração do império russo. Estabeleceu-se como o protetor do mítico mundo eslavo, o mundo da Igreja Ortodoxa Russa. O mundo em que a Mãe Rússia protege e socorre a Belarússia, o nome russo da Bielorrússia; a “Pequena Rússia”, como Putin e outros revanchistas russos chamam à Ucrânia; e todas as outras pequenas Rússias subservientes da Europa de leste.

Durante a ocupação de Chernobyl, as forças russas cavaram trincheiras na radioativa Floresta Vermelha adjacente à central nuclear, retratada em 16 de abril. Os soldados revolveram o solo altamente contaminado do local do acidente de 1986. Foto: Efrem Lukatsky/AP

No mês passado, a CNN divulgou um relatório impressionante detalhando o comportamento dos soldados russos que tomaram o controlo de Chernobyl, espalharam poeira radioativa pela área e imprudentemente forçaram o pessoal da central a trabalhar em turnos exaustivos de 12 horas. Foi um movimento espantosamente perigoso, especialmente por ser por tropas russas falsamente retratadas como de “manutenção da paz” que trariam ordem à Ucrânia.

Putin – que afirma que esta invasão é para “desnazificar” a Ucrânia – bombardeou vários locais judeus em Kharkiv, incluindo a sinagoga da cidade e o memorial do Holocausto em Drobitsky Yar, uma ravina onde os nazis massacraram pelo menos 15 mil judeus.

Ataques aéreos a Kiev atingiram lugares próximos do Memorial do Holocausto Babyn Yar, a 1 de março, aqui retratado no dia seguinte. O memorial está localizado perto da Torre de TV de Kiev, que também foi danificada. Foto: Laurent Van der Stockt/Le Monde/Getty Images
Um monumento em forma de menorá [candelabro de sete braços, um dos principais símbolos do Judaísmo] danificado na entrada do complexo memorial do Holocausto Drobytsky Yar em Kharkiv, a 27 de março. O monumento está no local de um assassinato em massa de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Foto: Sergey Bobok/AFP/Getty Images

As tropas russas cometem o que muitas organizações humanitárias internacionais estão a chamar de “crimes de guerra”, matando os mesmos falantes de russo da Ucrânia de leste que Putin insiste estar “a salvar”. Insensivelmente, o Kremlin descarta relatos inegáveis de atrocidades como os massacres em Bucha como sendo uma “provocação” e – o mais repugnante de tudo – operações encenadas por “atores de crises”. Na verdade, Putin até concedeu um título honorário à brigada acusada de perpetrar os massacres de Bucha, felicitando o “grande heroísmo e coragem” da unidade.

Jornalistas assistem a exumação de corpos de uma vala comum nos terrenos da Igreja de Todos os Santos de Santo André e Pyervozvannoho, na cidade ucraniana de Bucha, a noroeste de Kiev, a 13 de abril. Foto: Sergei Supinsky/AFP/Getty Images

A minha família e eu tínhamos fugido da União Soviética em 1989. Observar os horrores desenrolarem-se na Ucrânia a partir da América é surreal, em grande parte porque parece que as décadas entre a queda do comunismo e hoje se evaporaram.

As festividades de 1º de Maio na Rússia hoje em dia podem não ter a escala dos tempos soviéticos; após o colapso da URSS, o 1º de Maio perdeu o seu estatuto mítico de celebração do proletariado. Mas em breve, outro desfile – a comemoração de 9 de maio, da vitória da Segunda Guerra Mundial – passará por Moscovo.

A Central Nuclear de Chernobyl fotografada no 35º aniversário do desastre, em 26 de abril de 2021. Foto: Presidência ucraniana/Anadolu/Getty Images
Um prédio abandonado em Pripyat, perto da Central Nuclear de Chernobyl, fotografado a 26 de abril de 2021, durante um evento comemorativo do 35º aniversário do desastre. Foto: Genya Savilov/AFP/Getty Images

 

Os restos abandonados de um parque de diversões em Pripyat, a 12 de novembro de 2019. À medida que os níveis de radiação diminuíram, a área circundante foi oficialmente aberta aos turistas em 2010. (Bai Xueqi/Xinhua/Getty Images)

O enorme sacrifício necessário para derrotar a Alemanha nazi foi uma pedra angular da cultura soviética - é ainda mais crucial para a Rússia de Putin, que aproveitou a memória da Segunda Guerra Mundial como forma de unificar uma população díspar, sem muito sentido de identidade nacional.

Não é difícil prever a enxurrada de mentiras, meias-verdades e distorções sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia que estarão a girar no ar nesse dia. Provavelmente, haverá histórias de propaganda de soldados russos a serem recebidos por multidões chorosas de falantes de russo “resgatados”, relatos chocantes das monstruosidades de ucranianos raivosos, exortações para Putin continuar a salvar o mundo russo.

Esta é a narrativa sobre a qual a Rússia de Putin é construída. Ele substitui a realidade, que sofre o impacto das sanções e dos corpos de jovens soldados russos enviados para casa da Ucrânia. É a mentira que nenhuma verdade pode penetrar. É a razão pela qual, apesar da invasão ser um fracasso catastrófico, Moscovo não cancelará a guerra.

Os restos abandonados de um parque de diversões em Pripyat, a 2 de julho de 2019. À medida que os níveis de radiação diminuíram, a área circundante foi oficialmente aberta aos turistas em 2010. Foto: Brendan Hoffman/Getty Images
O voluntário Payton Robinson, dos Estados Unidos, prepara-se para levar o corpo de um soldado russo para uma câmara frigorífica em Bucha, nos arredores de Kiev, na Ucrânia, no dia 14 de abril. As autoridades ucranianas estimam que pelo menos 15 mil soldados russos morreram desde que a guerra começou, no final de fevereiro. Foto: Rodrigo Abd/AP


Escrito por Lev Golinkin e editado por Sheena McKenzie e Yaffa Fredrick.

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