Empresa fazia mudanças, ficava com os bens e exigia resgate aos clientes

14 out 2024, 07:00
Justiça

Inventaram uma empresa de mudanças, contrataram funcionários e enganaram dezenas de clientes até serem detidos. Ofereciam preços competitivos e, depois, exigiam muito mais dinheiro sob a ameaça de não devolverem os bens. Foram acusados, levados a julgamento e condenados, mas os dois arguidos principais fugiram e nem se sentaram no banco dos réus. Houve vítimas que perderam os seus bens para sempre e outras que os viram largados em estações de serviço

Um site na internet com informação falsa que lhe dava credibilidade, uma empresa de mudanças que nunca existiu e dezenas de pessoas enganadas pela MovExpert entre 2018 e 2019. A investigação da Polícia Judiciária (PJ) culminou com seis detidos, acusados de burla qualificada, extorsão agravada e abuso de confiança. Foram todos condenados a penas suspensas, mesmo os dois principais arguidos que desapareceram antes do julgamento. A CNN Portugal consultou, em exclusivo, o acórdão e conta-lhe como um esquema simples permitiu enganar tantas pessoas.

GM (homem) e GB (mulher) viviam em união de facto e juntos, antes de janeiro de 2018, “engendraram um plano para sob a aparência de uma firma de mudanças” negociarem “preços de serviços competitivos”. O que parecia uma atividade legítima acabou por revelar-se criminosa: “alegando os mais diversos motivos”, exigiam “o pagamento acrescido de valores infundados e muito mais elevados que os inicialmente contratados”, sob “a expressa cominação que não completariam o transporte e o cliente perderia os seus bens”. Estes foram factos dados como provados pelo coletivo de juízes do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, numa decisão conhecida em julho deste ano.

A investigação da PJ e do Ministério Público encontrou, pelo menos, 17 vítimas que apresentaram queixa contra a empresa MovExpert. No entanto, fonte que esteve ligada à investigação admite à CNN Portugal que podem ter sido muito mais e que estas, por vergonha, não tenham apresentado queixa.

A fórmula foi simples. Um site na internet, criado de raiz e com informações que lhe davam credibilidade. A MovExpert apresentava-se como uma “empresa de referência, com elevados padrões, profissionalismo, anos de experiência, instalações próprias para armazenagem de bens e frota própria”.

Mas, na verdade, GM e GB nem constituíram uma empresa coletiva. Apenas registaram o nome como uma marca e o domínio na internet. A morada da empresa correspondia a um centro de escritórios, tal como a morada do alegado armazém. Era neste segundo centro de escritórios que recebiam a correspondência. Servia apenas para isso. Nunca tiveram instalações e a frota era apenas uma carrinha, já que as restantes eram alugadas quando era preciso. Contrataram também quatro homens para fazerem as mudanças: JF, CC, DA e MS. Os quatro recebiam salário, mas não eram os únicos trabalhadores: o casal usou nomes falsos para fingir cargos e departamentos, de modo a que parecesse uma grande estrutura empresarial.

O tribunal nunca teve dúvidas de que o casal era o mentor do plano, com destaque para GM. Era “ele quem mandava”, “dava as ordens”, “exigia o dinheiro”, determinava os “se” e “quando” os bens eram devolvidos, assumiram os funcionários quando prestaram depoimento em tribunal. E, por isso, os juízes deram como provado que era GM que, “através de telefone, confirmava as exigências de pagamento adicionais e dizia aos ofendidos que ficariam sem os seus bens caso não pagassem”.

A extorsão começava logo no dia da mudança, depois de contratado o serviço. Apareciam no dia marcado e embalavam tudo ou quase tudo e guardavam nas carrinhas. Às vezes, abandonavam o local dizendo que iam levar a carga à nova morada. Mas não. Era nessa altura que GM – ou GB – ligavam ao cliente a exigir o pagamento acordado e “quantias adicionais várias vezes superiores” à inicial. Forneciam referências de Multibanco ou IBAN ligados a contas de GM ou da avó de GB.

O coletivo de juízes deu ainda como provado que quando os clientes se insurgiam contra as exigências, tanto GM como GB usavam um tom de voz “agressivo, intimidatório e hostil”, garantindo que “se não pagassem perderiam os seus pertences”. Entre os bens que retinham encontravam-se bens de primeira necessidade como, por exemplo, “medicamentos, vestuário, alimentos, documentos pessoais”. Sempre que os clientes cediam às ameaças acabavam, a maioria das vezes, por entregar os bens no destino final acordado. Mas quando não pagavam, os pertences eram levados para parte incerta.

O esquema só acabou após a intervenção da Polícia Judiciária, que deteve os arguidos. GM e GB negaram todas as acusações, disseram que o negócio era lícito e apontaram o dedo aos clientes “que não pagavam”. Os seis acabaram por ser libertados, sujeitos à medida de coação menos gravosa: Termo de Identidade e Residência. Mas GM e GB desapareceram. Não voltaram a ser vistos, não receberam a acusação, nem estiveram presentes no decorrer do julgamento. Foram condenados à revelia.

Investigação encontrou 17 vítimas, mas admite que haja mais

Das 17 vítimas identificadas, apenas uma não esteve em tribunal. Tratou-se de uma cliente estrangeira a quem deram um orçamento de 930 euros. Fizeram a visita à casa em dezembro de 2018 e marcaram a mudança para fevereiro de 2019. No dia marcado recolherem tudo e ficou definida a entrega para o dia seguinte. Menos de 24 horas depois a ofendida recebeu um telefonema a informar que teria de pagar mais 3.968 euros para que dessem continuidade ao serviço, alegando o transporte de vários bens que não tinham sido contemplados no primeiro orçamento.

Esta cliente não pagou e só recuperou os pertences após a intervenção da polícia. Foi um dos casos que chocou as autoridades que participaram na investigação, uma vez que a vítima tinha uma doença oncológica e entre os bens retidos estaria medicação que ela necessitava.

Todos os clientes encontraram a empresa através de pesquisas na Internet. Uma página bem construída, onde GM e GB escreviam também os comentários elogiosos à empresa, fazendo-se passar por clientes satisfeitos, recorda à CNN Portugal fonte ligada à investigação. Nem todos os clientes foram extorquidos, apenas os que teriam verbas para satisfazer os pagamentos exigidos, mas a maior parte pagou os valores pedidos com medo de nunca mais recuperar a vida que tinha embalada em caixotes.

Houve um casal, por exemplo, a quem foi dado o orçamento de 938 euros + IVA. Quando os funcionários da MovExpert estavam a carregar o recheio da casa, os clientes foram informados por GM que teriam de pagar um adicional de 580 euros para o aluguer de uma box num armazém.

Fizeram o pagamento, mas pouco depois receberam uma exigência de mais 1.975 euros sob pena de suspenderem a mudança, justificando o valor com as horas extra e noturnas. Com medo de ficarem sem os bens, pagaram. Não satisfeito, GM pediu mais 1.200 euros, mas desta feita o casal recusou pagar. O trabalho não foi concluído e alguns bens ficaram na rua à porta do prédio e outros foram levados. Com uma filha de um ano e meio, foram privados de bens de primeira necessidade da menor.

Perante as exigências de pagamentos, algumas vítimas dirigiram-se à morada da empresa e do armazém, percebendo que naqueles locais nada havia relacionado com a mesma.

Os casos de extorsão acumularam-se entre dezembro de 2018 e dezembro de 2019. No final de 2018, um cliente pediu um orçamento que chegou por email e tinha o valor de 1.052 euros. Pagou 299€ de sinal. No final de janeiro de 2019, a empresa foi executar o serviço, mas um dia depois o ofendido recebeu um email com uma fatura de 4.229 euros. Com medo de perder as coisas, acabou por pagar. Mas os seus bens foram deixados numa estação de serviço da A16 e acabou por ter de contratar outra empresa para recolher as coisas. Este não foi caso único. Mais vítimas viram os bens deixados em estações de serviço.

Mas houve vítimas que pagaram e nunca recuperaram os pertences. Uma delas, que testemunhou em tribunal, contratualizou com a empresa uma mudança e armazenamento de bens por um ano. Pagou 1.541 euros, a que se juntavam 68 euros + IVA todos os meses de aluguer da box. Quando acabou o prazo, nunca encontrou os seus pertences, avaliados em cerca de 15 mil euros.

Mas a falsa empresa chegou a ter na sua posse recheios de casa de muitos mais milhares de euros. Uma das vítimas recebeu um telefonema com um pedido adicional de 6.419 euros para que o serviço, acertado por 1.043 euros, fosse completado. O valor estimado do recheio desta cliente na posse da empresa rondava os 35 mil euros. Houve outras situações em que os bens foram avaliados em cerca de 25 mil euros, 30 mil euros, 45 mil euros e até 100 mil euros.

Foi um verdadeiro pesadelo para as vítimas, e a maioria descreveu em tribunal o que sentiu perante a situação. Medo e vergonha foram talvez as palavras mais utilizadas. Uma das vítimas, doente oncológica, tentou por termo à vida. 

Principais arguidos já tinham cadastro

Apesar de terem chegado a tribunal acusados por burla qualificada, extorsão agravada e abuso de confiança, foram condenados apenas por extorsão agravada, deixando os juízes cair os restantes crimes. Na visão dos magistrados, a atuação dos arguidos nunca poderia consubstanciar, em simultâneo, uma burla qualificada pelo modo de vida, mas não tiveram dúvidas que a vantagem obtida era por meio de ameaça, sendo esse o melhor enquadramento jurídico.

Os arguidos acabaram condenados a penas suspensas. GM e GB, que desapareceram após serem detidos e não estiveram no julgamento, receberam as penas mais pesadas por serem considerados os mentores. Quanto aos funcionários contratados por GM e GB, os magistrados entenderam que a sua posição na hierarquia era mais frágil e que, mesmo quando assumiram perceber que alguma coisa não estava bem e que os clientes ficavam chateados com as exigências de GM, temeram sempre perder o emprego.

O tribunal determinou ainda que fosse feita recolha de ADN dos mentores da extorsão GM e GB (e ainda do funcionário JF) para ser incluída na base de dados das autoridades. E deu provimento parcial ao pedido de indemnização de, pelo menos, duas vítimas.

- GM foi condenado por 14 crimes de extorsão agravada e a uma pena de cinco anos (suspensa);
- GB foi condenada por seis crimes de extorsão agravada e a três anos e nove meses de pena (suspensa);
- JF foi condenado por 13 crimes de extorsão agravada e a três anos e três meses de pena (suspensa);
- CC foi condenado por seis crimes de extorsão agravada e a uma pena de dois anos (suspensa);
- DA foi condenado por seis crimes de extorsão agravada e a dois anos e três meses de pena (suspensa);
- MS foi condenado por dois crimes de extorsão agravada e a um ano e três meses de pena (suspensa).

Tanto GM como GB já tinham cadastro criminal. GM tinha sido condenado em 2014 a uma pena de um ano e oito meses pelo crime de deserção. Enquanto GB tinha sido considerada culpada de um crime de falsificação de documento, também em 2014, e condenada a um ano e três meses de pena suspensa. Quanto aos restantes arguidos, apenas DA tinha registo de uma pena de multa, em 2021, por condução de veículo sem habilitação.

Entretanto, dois arguidos – JF e DA - já apresentaram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Ficou claro para o coletivo de juízes que todos os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. A conduta dos arguidos colocou em causa a confiança que qualquer cidadão deve ter quando escolhe contratar um serviço e deixaram as vítimas em posições frágeis sem conhecimento do paradeiro dos recheios das suas casas.

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