"Bom, Vladimir, vou dizer-te isto muito sinceramente. Estou a contar muito contigo. Não cedas a provocações": a incrível conversa entre Macron e Putin (transcrição integral)

1 jul 2022, 22:21
Putin e Macron reunidos no Kremlin Foto: EPA

Um canal francês divulgou um telefonema entre os dois presidentes na véspera da invasão da Ucrânia. É um momento de acesso raro, muito raro - e um documento de grande importância para se entender como se faz a comunicação ao mais alto nível. E como essa comunicação nem sempre envolve a verdade

Ninguém pode dizer que não tentou. Apenas quatro dias antes do início da invasão russa à Ucrânia, Emmanuel Macron ainda se desdobrava em tentativas para garantir uma solução pacífica para o aumento das tensões na região do Donbass. No dia 20 de fevereiro, o realizador francês Guy Lagache captou uma intensa chamada telefónica entre o presidente francês e Vladimir Putin, numa altura em que os Estados Unidos alertavam o mundo para planos do presidente russo de invadir a Ucrânia.

O documentário, que se estreou no dia 30 de junho no canal France 2, mostra os nove minutos de conversa entre os dois presidentes, com repetidos apelos de Macron para tentar sentar o presidente russo na mesa de negociações para evitar uma guerra, bem como as mentiras de Putin, que garantia ao homólogo francês que os exercícios militares na fronteira estavam prestes a estar concluídos.

Leia aqui a transcrição da conversa entre os dois líderes:

Macron: "Desde a nossa última conversa, as tensões continuaram a aumentar. Tu conheces o meu compromisso para com o diálogo e minha determinação em continuá-lo. Primeiro, eu gostaria de conhecer a tua visão da situação e depois gostava que me dissesses diretamente como nós podemos resolver isto e quais são suas intenções. Eu quero ver se existem outras ações razoáveis ​​que possam ser tomadas e o que mais eu te posso oferecer".

Vladimir Putin: "Que mais posso dizer? Tu podes ver por ti mesmo o que está a acontecer. Tu e o chanceler [Olaf] Scholz disseram-me que [Volodymyr] Zelensky estava pronto para fazer um gesto, que tinha preparado um projeto de lei para a implementação dos acordos de Minsk, mas, na verdade, o nosso querido colega, o Sr. Zelensky, não faz nada. Ele está a mentir-te [...] Não sei se ouviste declaração dele ontem de que a Ucrânia deveria ter acesso a armas nucleares. Também ouvi os teus comentários numa entrevista coletiva em Kiev a 8 de fevereiro em que dizes que os acordos de Minsk deveriam ser revistos e, cito, 'para que possam ser aplicados'".

Macron: "Vladimir, em primeiro lugar, eu nunca disse que os acordos de Minsk deveriam ser revistos. Eu não disse isso em Berlim, Kiev ou Paris. Eu disse que eles deveriam ser aceites e suas disposições deveriam ser respeitadas. Tenho uma ideia completamente diferente sobre os eventos dos últimos dias".

Putin: "Ouve, Emmanuel, não entendo qual é o teu problema com os separatistas. Pelo menos eles fizeram tudo o que era necessário, por nossa insistência, para iniciar um diálogo construtivo com as autoridades ucranianas".

Macron: "Em relação ao que disseste, Vladimir, algumas observações. Em primeiro lugar, os Acordos de Minsk são um diálogo contigo e tu estás absolutamente correto em relação a isso. Nesse contexto, não se esperava que a base da discussão fosse um documento apresentado pelos separatistas. Quando o seu negociador tenta forçar os ucranianos a discutir o documento separatista, ele demonstra desrespeito pelos Acordos de Minsk. Não são os separatistas que farão propostas sobre [mudanças] nas leis ucranianas".

Putin: "É claro que temos uma visão muito diferente da situação. Durante nossa última conversa, lembrei e até li os artigos 9, 11 e 12 dos Acordos de Minsk".

Macron: "Eles estão diante dos meus olhos! Eles afirmam claramente que a proposta da Ucrânia deve ser acordada com representantes de certos distritos das regiões de Donetsk e Lugansk no âmbito de uma reunião trilateral. É exatamente isso que nos propomos fazer. Não sei onde é que teu advogado estudou Direito. Apenas olho estes textos e tento aplicá-los. E eu não sei que advogado te pode dizer que num Estado soberano as leis são redigidas por grupos separatistas e não por autoridades democraticamente eleitas".

Putin: "Este não é um governo democraticamente eleito. Eles chegaram ao poder como resultado de um golpe, pessoas foram queimadas vivas, foi um banho de sangue e Zelensky é um dos responsáveis ​​por isso. Ouve-me com atenção: o princípio do diálogo passa por ter em conta os interesses do outro lado. A proposta existe. Os separatistas, como tu lhes chamas, enviaram-na aos ucranianos mas não receberam uma resposta. Onde é está o diálogo aqui?".

Macron: "Mas isso é porque, como eu disse, não estamos interessados ​​nas propostas dos separatistas. Pedimos que eles respondam às propostas dos ucranianos - e tudo deve ser feito dessa maneira, porque esta é a lei! O que acabaste de dizer levanta dúvidas sobre o quão pronto estás para aderir aos Acordos de Minsk se, na tua opinião, tens de lidar com o poder ilegítimo dos terroristas".

Putin (num tom irritado): "Ouve-me com atenção. Estás a ouvir-me? Vou dizer de novo. Os separatistas, como tu lhes chamas, reagiram às propostas das autoridades ucranianas. Eles responderam mas as mesmas autoridades não seguiram o exemplo deles".

Macron: "Então, tudo bem. Com base na tua resposta às propostas da Ucrânia, sugiro que se exija que todas as partes realizem uma reunião no âmbito do grupo de trabalho - e continuem a progredir. Amanhã podemos pedir que este trabalho seja feito e exigir que todas as partes interessadas abandonem a política de 'cadeira vazia'. No entanto, nos últimos dois dias os separatistas não manifestaram o desejo de entrar nesta discussão. Vou exigir isso de Zelensky imediatamente. Temos um acordo? Se sim, vou começar e exigir uma reunião amanhã".

Putin: "Vamos concordar - assim que terminarmos a nossa conversa, estudarei essas propostas. Mas desde o início foi necessário pressionar os ucranianos mas ninguém queria fazê-lo".

Macron: "Bem, não, eu estou a fazer o meu melhor para pressioná-los, sabes muito bem disso".

Putin: "Eu sei, mas, infelizmente, é ineficaz".

Macron: "Preciso que me ajudes um pouco. A situação na linha de contacto [das partes em conflito no Donbass] é muito tensa. Eu realmente liguei para Zelensky ontem e pedi-lhe para se acalmar. Vou dizer-lhe novamente que todo o mundo precisa de se acalmar: acalme [as pessoas] nas redes sociais, acalme o exército da Ucrânia. Mas o que ainda vejo é que tu podes chamar tuas tropas, que estão quase em posição, para se acalmarem. Houve muitos bombardeamento ontem. O que é que tu dizes - como é que se vão desenvolver os exercícios militares [russos]?".

Putin: "Os exercícios estão a decorrer de acordo com o planeado".

Macron: "Então eles vão acabar hoje à noite, certo?".

Putin: "Sim, provavelmente hoje, mas definitivamente deixaremos tropas na fronteira até que a situação no Donbass seja resolvida. A decisão será tomada após discussão com os ministérios da Defesa e dos Negócios Estrangeiros".

Macron: "Bom, Vladimir, vou dizer-te isto muito sinceramente. Para mim, a principal tarefa é devolver a discussão ao caminho certo e reduzir o nível de tensão. E é importante para mim - e estou realmente a pedir-te que faças isso - que mantenhamos a situação sob controle. Isto é o mais importante neste momento. E estou a contar muito contigo. Não cedas a provocações, sejam elas quais forem, nas próximas horas e dias".

Macron: "Eu queria fazer duas sugestões muito específicas. A primeira é organizar uma reunião entre ti e o presidente [Joe] Biden em Genebra nos próximos dias. Falei com ele na sexta à noite e perguntei-lhe se lhe poderia fazer esta oferta. Ele pediu-me para te dizer que está pronto. O presidente Biden também está a considerar maneiras adequadas de diminuir a escalada da situação, a fim de levar em conta as suas necessidades e abordar claramente a questão da NATO e da Ucrânia. Diz uma data que funcione para ti".

Putin: "Muito obrigado, Emmanuel. É sempre um grande prazer e uma grande honra para mim conversar com os colegas europeus, assim como com os Estados Unidos. E estou sempre muito feliz em conversar contigo porque nós temos uma relação de confiança. Então, Emmanuel, proponho repetir tudo. Precisamos de preparar esta reunião com antecedência. Só depois disso poderemos conversar - caso contrário, se viermos para conversar sobre tudo e sobre nada, todos vão acabar por nos condenar".

Macron: "Mas podemos dizer hoje, com base no resultado dessas discussões, que geralmente concordamos? Gostaria de obter uma resposta clara da tua parte. Entendo a tua relutância em apontar uma data, mas estás pronto para te antecipares e dizeres ‘quero realizar uma reunião bilateral com os americanos e depois uma reunião ampliada com os europeus’. Ou não?”.

Putin: "Esta é uma proposta que merece atenção - e se queres que a formulemos bem, então sugiro instruir os nossos conselheiros a falarem para chegar a um acordo [...] Mas no geral eu concordo".

Macron: “Muito bem, tu confirmaste que concordas em geral. Sugiro que nossos funcionários [...] tentem preparar uma declaração conjunta, algo como um comunicado à imprensa sobre os resultados desta conversa".

Putin: “Para ser honesto, eu ia jogar hóquei. Estou a falar contigo do ginásio, antes do treino. Mas primeiro vou chamar os meus conselheiros”.

Macron: "De qualquer forma, obrigado, Vladimir. Manteremos contato. Assim que algo acontecer, liga-me".

Putin (em francês): "Obrigado, Sr. Presidente".

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