Dependências de Putin, sanções à Rússia (mas não todas) e dois projetos europeus. O decisivo debate entre Macron e Le Pen

20 abr 2022, 22:43
Debate entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen (Ludovic Marin/AP)

Entre acusações e ironias, também houve espaço para elogios. No entanto, e ao contrário do que diz a canção, é muito mais o que os separa do que aquilo que os une

Começou morno e foi aquecendo, mas sem nunca rebentar a escala do termómetro. Emmanuel Macron e Marine Le Pen encontraram-se esta quarta-feira no único debate entre os dois candidatos presidenciais que vão a votos em França no próximo domingo, 24 de Abril. O poder de compra e a guerra na Ucrânia (e todas as suas consequências) foram os temas dominantes, ocupando a primeira hora de uma longa transmissão.

O verniz só estalou quando os dois temas se começaram a cruzar. Ainda em 2021 França aprovou aquilo a que chamou um "escudo de preços" para regular a crise energética. Marine Le Pen disse que quer baixar o IVA dos produtos energéticos, afirmando que a atual estratégia do presidente falhou: "Sete em cada dez franceses acreditam que perderam poder de compra", apontou, ouvindo depois críticas de Emmanuel Macron por ter votado contra o tal "escudo".

"Olho para o seu programa e nem sequer vejo a palavra desemprego", atirou o ainda presidente, que depois se vangloriou por ter colocado o país perto do emprego pleno. Emmanuel Macron explicou depois que a proposta do IVA não seria tão justa, deixando depois um exemplo para apelar aos franceses: "Nós não precisamos de deixar de pagar IVA", disse, referindo-se a si próprio e à outra candidata, que têm mais posses que a generalidade dos franceses.

Marine Le Pen contrapõs, afirmando que não se opõe ao escudo, referindo que defende antes uma outra ideia: "Deixar o mercado de energia europeu." Na prática, a candidata de direita pretende que França passe a ter os seus próprios preços regulados, ficando assim menos dependente de fatores externos, nomeadamente da "vizinha Alemanha", que acusou de "erros" por causa da dependência em relação ao gás natural vindo da Rússia.

Le Pen dependente da Rússia e Macron europeu

Foi neste ponto que o debate mais se agudizou. Emmanuel Macron defendeu o que França tem feito pela Ucrânia, e Marine Le Pen até elogiou as ajudas dadas ao povo que foi alvo de uma invasão por parte da Rússia. Aí foi jogada uma cartada esperada, e que o atual presidente aplicou ferozmente: as ligações de Le Pen à Rússia e a Vladimir Putin, chegando à mesa um empréstimo feito pelo partido da candidata em 2015 junto de um banco russo.

"Foi uma das primeiras eurodeputadas a reconhecer a anexação da Crimeia [em 2014]. Fê-lo, e digo isto com grande seriedade, [porque] depende do poder russo e do senhor Putin, depois de ter pedido um empréstimo a um banco russo em 2015. Tem de tomar decisões de coragem”, vociferou Macron, acrescentando que a posição de Le Pen no debate "não corresponde" à do partido que representa no Parlamento Europeu.

Le Pen não se atrapalhou e, reconhecendo o empréstimo, que esclareceu estar a ser pago (e que afirmou ser a sua única dependência), explicou que só o fez na Rússia porque nenhuma instituição bancária lho concedeu, antes de classificar as declarações do oponente de "falsas e desonestas". Só que Macron não recuou e acusou Le Pen de assumir uma "posição ambígua", voltando a falar em "interesses ligados à Rússia".

Mas o ponto de maior divergência até então foi o que ambos os candidatos entendem ser o projeto europeu. Le Pen foi taxativa: "Eu não quero deixar a União Europeia." Uma afirmação que Macron pareceu não acreditar, dizendo mesmo que o programa de Le Pen "há cinco anos só era aplicável se deixássemos o euro". "Hoje ainda quer sair mas já não o diz", insistiu.

União Europeia ou não, o que Le Pen defende é que França venha primeiro, mas sem esquecer uma "Aliança Europeia das Nações", um projeto que pode ser baseado no atual, mas que deve também basear-se numa maior independência dos Estados-membros, desde logo na energia (como visto acima).

"Fui deputada no Parlamento Europeu e vi os alemães a defenderem os interesses da Alemanha, mas nunca vi os franceses a defenderem os interesses franceses", disse, ouvindo depois uma rápida e irónica resposta de Macron: "Talvez não tenha lá estado muitas vezes."

Já Macron disse acreditar numa aliança que se baseie em França e Alemanha, uma "batalha" que diz ser francesa. O presidente deu o exemplo da covid-19, recordando os acordos europeus que permitiram a chegada de vacinas a todos: "Estou convencido que a nossa soberania é nacional e europeia. Precisamos de uma Europa mais forte e mais integrada."

Mas essa soberania europeia é algo que Le Pen diz não existir. "Não existe nenhuma soberania europeia porque não existe nenhum povo europeu. Acho que [Macron] quer substituir a soberania francesa pela europeia. Fê-lo simbolicamente ao trocar a bandeira francesa pela europeia no arco do triunfo", acusou.

O papel da França na guerra, incluindo as sanções (mas nem todas)

Marine Le Pen disse apoiar uma “Ucrânia livre”, independente dos Estados Unidos, da União Europeia e da Rússia. No entanto, de acordo com a candidata presidencial, existem limites, nomeadamente nas sanções a aplicar ao regime russo. É que Le Pen entende que banir as importações de gás natural e petróleo da Rússia não teria efeitos no regime de Vladimir Putin, mas sim no bolso e na vida dos franceses.

"Admito que os esforços feitos para tentar a paz, em nome da França, devem ser apoiados. Ajuda humanitária claro, ajuda financeira sim, material defensivo sim. A única sanção com que discordo é bloquear a importação de gás natural e petróleo russos. Não é o método certo, não vai magoar a Rússia e, acima de tudo, vai magoar muito a França", afirmou, reconhecendo aqui que a presidência de Emmanuel Macron tem tomado as decisões certas no apoio à Ucrânia, com quem Le Pen diz estar solidária.

Neste ponto Macron aproveitou para voltar a tentar vincar as diferenças: só com uma Europa unida se chega onde o candidato entende que se deve chegar: "Temos de fortalecer as sanções à Rússia. É por isso que a Europa é tão importante."

Já Le Pen vê a situação de outro prisma e lamentou que a Europa não esteja a fazer mais defensivamente, assumindo mesmo que teme que Rússia e China se tornem aliados, algo que diz poder acontecer caso a Europa corte todas as relações (incluindo as energéticas) com a Rússia. "Governar é prever, prever os perigos do amanhã. Temo que [Rússia e China] se tornem superpotências económicas e militares e que possam ser um perigo maior para França e Europa."

A decisão cabe agora aos franceses, sendo certo que todas as sondagens dão, ainda que por uma curta margem, vantagem a Emmanuel Macron. O presidente atual reúne, de resto, o apoio de quase todos os candidatos que ficaram pela primeira volta, incluindo o de Jean-Luc Mélenchon, que ficou muito perto de Marine Le Pen.

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