Febre, dor no peito ou uma fratura: afinal, o que justifica ir às urgências dos hospitais? (guia para não saturar os serviços)

29 dez 2021, 19:00
Hospital São José

O problema já vem de há muito tempo, mas volta a ganhar nova vida numa altura em que a Linha SNS24 está saturada. Saiba distinguir quando deve ou não ir às urgências - e porque saber como fazê-lo é tão importante

Mais de 500 doentes nas urgências. Esta tem sido a realidade dos últimos três dias no Hospital de São João, no Porto, que na segunda-feira chegou mesmo a receber cerca de 600 episódios naquele serviço. Esta terça-feira foram mais de 500, um número semelhante ao desta quarta-feira.

A par desses números, e de acordo com o diretor do serviço de Urgência e Medicina Intensiva, 40% são doentes “não urgentes”, o que coloca em causa o funcionamento regular dos serviços e o atendimento a doentes verdadeiramente urgentes.

“Estamos com um nível de afluência demasiado grande para que continuemos, de forma sustentável, ao longo dos dias e das semanas, a dar a melhor resposta aos doentes efetivamente urgentes. E isto verifica-se numa circunstância em que cerca de 40% dos doentes continuam a ser doentes não urgentes", alerta Nélson Pereira em declarações à CNN Portugal.

O alerta surge também da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, que indica que os serviços de urgência têm registado “procuras recorde”, em grande parte dos casos de situações não urgentes.

Mas, afinal, que episódios podem ou não ser considerados urgência?

Por definição, um doente urgente é aquele cujo episódio deve ser resolvido em “tempo útil” para evitar sequelas futuras. Mais grave ainda é uma situação de emergência - na qual pode haver risco de vida ou de perda das funções essenciais.

“A emergência e urgência médica são entendidas como a situação clínica de instalação súbita na qual, respetivamente, se verifica que há risco de compromisso ou falência de uma ou mais funções vitais”, pode ler-se no Relatório Grupo de Trabalho – Serviços de Urgências, elaborado em 2019.

O presidente do Colégio da Competência em Emergência Médica da Ordem dos Médicos (CCEM) faz uma distinção entre as duas situações, mas lembra que ambas são passíveis de uma ida às urgências.

De acordo com Vitor Almeida, uma urgência pode ser um episódio traumático, como é o caso de uma fratura ou uma dor muito forte em qualquer parte do corpo. Por exemplo, uma dor no peito é um “motivo válido para ir à urgência”, até porque pode indicar um princípio de episódio cardiovascular. “Outra situação [passível de ir à urgência] é um doente que arrasta a voz, que tem desequilíbrio, fraqueza muscular ou outros sinais de AVC”, acrescenta o médico, em conversa com a CNN Portugal.

É isso mesmo que diz a presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Urgência e Emergência (SPMUE), que alerta que qualquer situação de “risco de perda de vida ou de perda de funcionalidades motiva uma emergência”. “Quando há um evento que ocorre que não era previsível, a pessoa precisa de ser observada num curto espaço de tempo. Também é urgente pelo tempo em que se instala”, sublinha Adelina Pereira. Nessas situações, que podem consistir numa gripe ou numa tosse mais persistente, a também médica lembra que existe a possibilidade de tentar uma marcação numa Unidade de Saúde Familiar (serviço que substituiu os Centros de Saúde) nas 24 ou 48 horas seguintes a uma chamada para aquele serviço. “Podem esperar algumas horas para serem atendidos, mas não há necessidade de ir a uma urgência de um hospital”, refere.

Qualquer tipo de trauma (como uma lesão na cabeça), fratura ou um acidente de viação também motivam uma ida à urgência, local onde vai ser aferida a gravidade da situação. Pode até ser que, em alguns destes casos, o episódio não seja verdadeiramente grave, mas existe a necessidade de avaliar a situação ao pormenor.

Em sentido contrário, Vitor Almeida refere que uma febre de 37,5 graus com 4/5 horas ou uma dor no joelho que se arrasta ou um problema de pele com algum tempo não são episódios urgentes. “Há pessoas que vão à urgência porque ficam com a ideia de que vão resolver um problema em tempo útil e de imediato. O que não deve ser visto é uma diarreia que começou há três horas”, aponta, dando o exemplo de pais que levam as crianças em casos semelhantes.

Na prática, todos os episódios que recebem abaixo de uma pulseira amarela (seja verde, azul ou branca) são considerados não urgentes, tendência que já se começa a verificar novamente em 2021.

Uma questão cultural

Para os presidentes do CCEM e da SPMUE, a questão vem de trás e consiste num “problema cultural”. Portugal é, apontam ambos, o país da Europa com mais episódios que não se justificam em contexto de urgência. Isso mesmo é corroborado pelo mais recente relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). “Os portugueses são dos principais consumidores de episódios de urgência a nível europeu”, afirma Vitor Almeida.

Comparativamente com a situação de há dez anos, há um aumento considerável no acesso às urgências que é considerado desnecessário. De acordo com um relatório publicado pela OCDE, 31% dos episódios de urgência em 2011 em Portugal eram desadequados. De resto, e segundo a mesma publicação, Portugal era o país com maior número de episódios de urgência, com 70 idas ao serviço de urgência por cada 100 habitantes.

“Sabemos que muitos dos meios dos serviços de urgências continuam a ser inadequadamente utilizados no atendimento de doentes não urgentes”, alerta o Relatório do Grupo de Trabalho – Serviços de Urgência, que avisa que isso pode desviar doentes verdadeiramente urgentes dos serviços hospitalares, aumentando também a carga profissional.

Adelina Pereira refere que essa é mesmo “a nossa cultura” e diz que a solução passa por um trabalho a ser feito em conjunto, algo a que Vitor Almeida chama “literacia em Saúde”. A presidente do SPMUE diz que a iniciativa deve partir dos médicos e do Serviço Nacional de Saúde, que devem disponibilizar o material necessário aos doentes, explicando-lhes as diferentes formas que têm de recorrer aos cuidados de saúde, sem que para isso seja necessário ir ao hospital sem motivo. “Para isso deve haver da parte dos médicos atitudes proativas, resposta nos centros de saúde”, nota.

Mas esse trabalho também pode ser feito do lado da população, que deve perceber melhor como e quando utilizar os serviços de urgência: “Queremos tudo na hora, estamos habituados a resolver a coisa no momento”, frisa Adelina Pereira, que compara a situação com um centro comercial - que está quase sempre aberto e à porta de casa.

Uma das soluções apontadas por Adelina Pereira é um sistema parecido com o que se faz na Suécia ou na Noruega, onde todos os pacientes que não sofram de uma condição verdadeiramente urgente devem passar sempre pelo médico de família antes de poderem ser admitidos num hospital.

A situação antes da covid - e como estamos a voltar lá

De acordo com os dados mais recentes de um "ano normal" - 2020 e 2021 foram “atípicos” -, 43% dos episódios registados em urgência não eram justificados. Foi o que aconteceu em 2019, ano em que foram compilados no Relatório Grupo de Trabalho – Serviços de Urgências os dados mais recentes que "podemos contabilizar", de acordo com Adelina Pereira, que ajudou na elaboração do documento.

Nesse ano foram registados mais de 500 mil episódios de urgência por mês. Atendendo à percentagem, perto de 215 mil desses casos não eram passíveis de uma ida ao hospital. Este foi o cenário que Adelina Pereira encontrou em todas as Administrações Regionais de Saúde, com as quais se reuniu ao longo de 2019 para elaborar o relatório.

Vitor Almeida refere que “a ida à urgência se tornou algo banal”, algo a que os portugueses recorrem com facilidade mas também por falta de capacidade económica ou de marcação de consultas atempadas. Do lado financeiro, veja-se a questão dos seguros de saúde: nem todos os portugueses têm dinheiro para pagar uma mensalidade dessas, o que os deixa fora da possibilidade de irem a um hospital privado para uma consulta. Ficam reduzidos às Unidades de Saúde Familiares e às urgências, uma vez que as consultas no Serviço Nacional de Saúde estão a demorar vários meses. “A falta de médicos de família acaba por ter impacto. Os doentes procuram solução e nem todos têm capacidade económica”, justifica.

A questão foi agravada pela pandemia de covid-19, mas, curiosamente, o número de episódios que não justificavam urgência até aumentou em percentagem. Ainda que contando 2021 como um ano "atípico", os dados do portal do SNS marcam uma tendência. O ano começou com cerca de 300 mil idas à urgência em janeiro, desceu para 200 mil em fevereiro (meses em que se refletiu a terceira vaga) e, de acordo com os últimos dados disponíveis, de outubro, já está novamente em 500 mil, um nível pré-pandémico.

Episódios de urgências por mês em 2019 e 2021:

Destes episódios, e numa conta feita aos primeiros dez meses, 46% dos episódios não justificavam uma urgência, de acordo com a SPMUE.

Um problema chamado covid-19

A pandemia causada pela covid-19 veio, como em quase tudo, baralhar as contas. Muitas pessoas viram os seus médicos de família serem realocados para outros serviços, ficando assim sem possibilidade de aceder às consultas nas Unidades de Saúde Familiares. Isso originou episódios de urgência que não se justificavam, de pessoas que não conseguiam uma consulta quando pretendiam e que preferiam, dessa forma, ir esperar num hospital por um atendimento mais rápido.

Em sentido inverso, o receio da covid-19, que se intensificou nos picos mais fortes das diferentes vagas, criou um outro problema. “Muitas pessoas tiveram medo e receio de ir ao hospital. Houve situações colaterais, doentes que tinham situações urgentes, de AVC, enfarte, e que acabaram por adiar a ida [às urgências], muitas vezes com um desfecho fatal”, explica Vitor Almeida. Esta foi uma situação que se verificou particularmente nos primeiros meses de 2021, altura em que Portugal enfrentou a pior vaga da pandemia, tendo dias com mais de 300 mortes causadas pela covid-19.

De resto, de acordo com os dados recolhidos pela presidente da SPMUE, os episódios de urgência desceram para cerca de metade do habitual em fevereiro deste ano, como se viu acima. Atualmente, o que os médicos temem são os efeitos da variante Ómicron, certamente mais transmissível mas da qual se desconhece o efeito sobre as vacinas e doença grave.

Vitor Almeida não tem dúvidas: “A pressão sobre os serviços de urgência vai subir outra vez com a Ómicron”. Além de esperar uma subida nos internamentos causados pela variante, o médico lembra que existem outras doenças e que a covid-19 pode, mais uma vez, relegar para segundo plano doentes de outras patologias. “O sistema está claramente vulnerável. Vamos ser confrontados com uma nova vaga e a situação é muito preocupante”, aponta. Um problema que agora se volta a verificar, a julgar pelo que acontece no Hospital de São João.

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