"Qualquer aluno de engenharia mecânica teria explicado que era preciso um sistema de travagem redundante" no "elevador mais perigoso do mundo" - o "elevador da Glória"

22 out, 00:58

O relatório intercalar do Gabinete de Prevenção de Acidentes Ferroviários sobre o acidente no Elevador da Glória revelou falhas técnicas graves, ausência de manutenção e a utilização de um cabo que nem sequer estava certificado para transportar pessoas. O relatório, demolidor para a Carris, está a gerar perplexidade e revolta

"É absolutamente incontornável a demissão do presidente da Carris"

Para Anselmo Crespo, não há como fugir à responsabilidade política.

“É absolutamente incontornável a demissão do presidente da Carris. Não percebo porque é que ele ainda não se demitiu ou porque é que Carlos Moedas ainda não o demitiu", afirmou na Arena CNN desta terça-feira. Entretanto soube-se que Carlos Moedas não vai reconduzir a atual administração.

O comentador da CNN Portugal sublinha que, mesmo que as falhas técnicas não sejam decisões do presidente da Câmara, a escolha do presidente da Carris é uma escolha política de Carlos Moedas.

“A escolha deste presidente é uma escolha de Carlos Moedas, mas a continuidade deste presidente também é uma opção de Carlos Moedas. Quanto mais tempo passa, mais Carlos Moedas está a colocar em causa o seu próprio lugar enquanto presidente da Câmara”, reforça.

Anselmo Crespo recorda ainda que o presidente da Carris apresentou a demissão logo na noite do acidente, mas Moedas recusou-a.

“Na altura até se percebeu: era cedo, não havia relatório. Mas agora, face à tragédia e às conclusões, é insustentável que se mantenha. Se Moedas arrastar isto, o foco deixará de estar na Carris e passará para ele. A Carris é muito mais do que o seu presidente e a Câmara é muito mais do que o seu presidente, mas alguém tem de responder. É uma questão de confiança nas instituições.”

"O elevador mais perigoso do mundo"

Já o jornalista Carlos Enes vê o cenário de forma diferente.

“É capaz de ser insustentável a demissão a prazo, pela pressão pública e mediática. Mas, em consciência, ele [atual presidente da Carris] não tem uma responsabilidade objetiva maior do que as administrações anteriores”, defende.

Segundo o jornalista, as falhas do Elevador da Glória vêm de longe — e o relatório confirma décadas de erros acumulados.

“O relatório aponta para responsabilidades históricas. São problemas antigos que ninguém resolveu. O que mais me espanta é que este elevador é o mais inseguro do mundo e em 100 anos não houve ninguém — dentro ou fora da Carris, nenhum engenheiro, nem na academia — capaz de reparar na fragilidade deste sistema.”

E há um detalhe no documento que o deixa "incrédulo":

“O cabo que rebentou foi comprado para o elevador de Santa Justa. Ninguém percebeu que estavam a usar um cabo destinado a um elevador vertical para um funicular. É um conjunto de absurdos.”

"O dr. Bogas é advogado. Pergunto se o importante para a Carris é ter um advogado como presidente do conselho de administração"

O engenheiro Carlos Gaivoto, membro do Conselho Superior de Obras Públicas, aponta o dedo à perda de conhecimento técnico dentro da Carris ao longo das últimas décadas. Para ele, o problema não é apenas o erro técnico, mas o desmantelamento progressivo da competência técnica da Carris.

“Durante os últimos 25 anos, o know-how acumulado foi sendo esvaziado. Houve uma corrida para reduzir pessoal e uma desqualificação na área da manutenção”, lamenta.

O engenheiro considera que a Carris tinha, no passado, um corpo de engenheiros e operários "altamente qualificados", capazes de construir motores e peças dentro das próprias oficinas de Santo Amaro, mas que "tudo isso desapareceu".

Afirma que, ao contrário de outras cidades europeias, Lisboa subcontrata serviços de manutenção sem garantir o rigor técnico necessário, o que compromete a qualidade e a segurança.

"Hoje, subcontrata-se muito. E quando a subcontratação não é feita com rigor técnico, perde-se qualidade e, com ela, a segurança.”

E deixa uma reflexão sobre o perfil das lideranças:

“O dr. Bogas é advogado. Pergunto se o importante para a Carris é ter um advogado como presidente do conselho de administração ou alguém que domine a linguagem da engenharia e da operação. Um operador de transportes exige sensibilidade técnica.”

Anselmo Crespo responde-lhe de imediato: “Tem de perceber que isso é um bocadinho difícil. Por essa lógica, só pessoas de um determinado setor poderiam ser presidentes. Não é por ser advogado que o torna pior gestor.”

Mas o engenheiro insiste: “Sabia que há mais de 30 anos que não há formação técnica dentro da Carris? Que o regulamento de carreiras profissionais não é cumprido? A comissão de trabalhadores denunciou isto várias vezes.”

“Não há supervisão externa e isso é chocante”

Para Manuel Cruz, ex-presidente da Sorefame e do Instituto de Soldadura e Qualidade, o relatório revela falhas graves de gestão e ausência total de supervisão externa.

“Há aspetos neste relatório que chocam. Desde logo, a aquisição de um cabo sem especificação adequada. E, depois, o mais grave: não há supervisão externa. Nenhuma entidade independente foi contratada para fiscalizar."

O engenheiro lembra que os sistemas de qualidade modernos assentam em três pilares: o cliente, a segurança e a gestão, e considera que a Carris falhou em todos.

“Hoje, qualquer projeto técnico tem uma análise de risco. Isto é básico. A ausência dessa avaliação é inaceitável." 

O engenheiro considera que “alguém tem de ser responsável” e que a Carris deve responder não apenas pelos erros técnicos, mas também pela falta de mecanismos de controlo e qualidade.

“A Carris é uma instituição que assegura transportes a milhares de pessoas, que abarca um universo imenso. Tem de assumir responsabilidades." 

“Se alguém tivesse perguntado, qualquer aluno de engenharia mecânica teria explicado que era preciso um sistema de travagem redundante. Há 100 anos que isto se ensina”, conclui.

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