Com o poder local, regional e nacional, o Governo passa a ter responsabilidade acrescida, enquanto ao PS cabe aceitar um desafio para tentar reaparecer como partido ganhador. Já o Chega pode baralhar as contas autárquicas, o que coloca em causa a eficácia das linhas vermelhas
Luís Montenegro tem em mãos uma “oportunidade única” para reformar o país, agora que é líder do “maior partido português” a nível local, regional e nacional, como o próprio proclamou no final da noite eleitoral das autárquicas. “A questão que se coloca é: é desta que vamos reformar?”, questiona o politólogo José Filipe Pinto, em declarações à CNN Portugal.
Para o investigador e professor catedrático na Universidade Lusófona, “o Governo tem o dever nacional de ganhar espírito reformista”. “E não basta dizer que tem espírito, é preciso executar, pôr em prática essas reformas”, defende José Filipe Pinto, que leciona Teoria do Estado e que se baseia nesses conhecimentos teóricos para contrariar a ideia de uma reforma do Estado, que deu nome a uma pasta governativa, tutelada por Gonçalo Saraiva Matias. “Uma má pasta” atribuída a “um bom ministro”, resume o especialista em ciência política.
É que, segundo o politólogo, “o Estado não se reforma, (...) o que é reformável é a função administrativa do Estado”. Ou seja, complementa, “precisamos de uma reforma administrativa” nos vários setores da sociedade, da Educação à Saúde, sem esquecer a reforma laboral. “A única ministra que apresentou um espírito reformista foi a ministra do Trabalho”, argumenta José Filipe Pinto, referindo-se a Maria do Rosário Palma Ramalho, cujas medidas de alteração à lei laboral foram muito criticadas, designadamente as matérias ligadas à parentalidade.
“Já sabemos que o Governo vai encontrar muitos anticorpos” nesta contenda das reformas, admite José Filipe Pinto. Todavia, acrescenta o politólogo Bruno Ferreira Costa, a “vitória histórica” proclamada pelo líder do PSD “dá-lhe margem para o ímpeto reformista” que Luís Montenegro tem vindo a prometer, escudando-se no apoio popular renovado. “Luís Montenegro não pode desperdiçar a oportunidade única de fazer as reformas de que o país carece, porque ganhou agora legitimidade e reforço a autoridade”, defende José Filipe Pinto.
“E é urgente que o faça, para que Portugal não venha a sofrer, a curto prazo, uma situação semelhante àquela que se está a viver, por exemplo, em França e na Alemanha”, adverte o politólogo, referindo-se ao impacto da fragmentação política naqueles dois países, que culminou numa crise política e financeira.
O politólogo João Pacheco acredita que não foi por acaso que o Governo apresentou uma proposta de Orçamento do Estado “mais tímida, de continuidade” e “sem grandes reformas”. “Precisamente para não influenciar negativamente aquele que seria o resultado do PSD nas autárquicas”, teoriza o especialista, que alarga esta teoria aos restantes partidos.
“Os partidos com assento parlamentar estiveram à espera para, a partir dos resultados nas autárquicas, construírem as suas narrativas e tomarem as suas posições”, desde logo na discussão e votação da proposta de Orçamento do Estado para 2026, teoriza o especialista em ciência política. “Isto não impede que, quer na generalidade, quer na especialidade, o Governo, mas também os partidos da oposição, não possam avançar mais do que aquilo que o Governo já avançou”, acrescenta João Pacheco, que espera reformas em breve.
"As linhas vermelhas [com o Chega] poderão começar a ser menos evidentes"
Se os resultados do PSD nestas autárquicas são incontestáveis, o mesmo não se pode dizer em relação ao Chega. "Estas eleições foram um desastre para o Chega", descreve o politólogo João Pacheco. O partido de André Ventura conquistou três Câmaras Municipais, muito aquém das 30 que chegaram a ser aventadas pelo próprio, e até abaixo de CDS e CDU, o que foi dito que seria "impensável". No final da noite eleitoral, com o mapa autárquico já preenchido com as cores rosa e laranja, aclamou-se o bipartidarismo, com José Luís Carneiro a declarar que “o PS está de volta”. Mas talvez não seja bem assim.
Para o politólogo Bruno Ferreira Costa, o Chega alcançou “um resultado muito significativo”, aumentando o número de vereadores de 19 para mais de 130 e mais do que triplicando o número de votos em relação às eleições autárquicas anteriores. No entender de José Filipe Pinto, André Ventura "não fez boas escolhas" nos candidatos às autarquias, um pormenor que pode sair caro numas eleições autárquicas, "muito marcadas pela personalização dos candidatos”.
Isto apesar de candidatar figuras do partido como o líder da bancada parlamentar, Pedro Pinto, ou os deputados Rita Matias e Pedro Frazão.
“Pese embora a ausência de figuras muito relevantes ou conhecidas, o Chega consegue ser competitivo em vários cenários”, argumenta Bruno Ferreira da Costa, professor na Universidade da Beira Interior, que destaca a votação do Chega em Setúbal, onde esteve “muito perto de eleger três presidentes de câmara”, designadamente Montijo, Palmela e Sesimbra.
Neste xadrez político, “vai ser interessante ver quem é que vai dar a mão às autarquias que não tiveram maioria absoluta”, assume Bruno Ferreira Costa. “Há muitas câmaras no país que estão dependentes ou podem estar dependentes de vereadores, deputados ou de membros do Chega e, portanto, as linhas vermelhas poderão começar a ser menos evidentes a partir do jogo de negociação de políticas nas autarquias.”
Ao mesmo tempo, acrescenta Bruno Ferreira Costa, o Chega enfrenta agora um “desafio”. “É que, a partir deste momento, há exemplos concretos onde podemos ver um modelo de governação Chega, seja em autarquias, seja, por exemplo, em Juntas de Freguesia com alguma dimensão”, como é o caso da freguesia de Quinta do Conde, no concelho de Sesimbra, distrito de Setúbal - uma das 14 freguesias conquistadas pelo Chega. E isso vai “criar alguma pressão” sobre o partido, com eleitores e militantes de atenções voltadas para “as decisões que possam vir a tomar e os acordos de coligação que possam vir a fazer”.
Ou seja, mesmo com este “choque de realidade”, o Chega “ultrapassou o meio milhão de votos” nestas autárquicas (653.943 no total), o que corresponde a “menos de metade das legislativas, mas que, “ainda assim, é um valor significativo para um partido que não tinha implementação local”, argumenta José Filipe Pinto. Tendo em conta que o Chega é um partido recente, fundado em 2019, Bruno Ferreira Costa considerava “manifestamente exagerada a expectativa de termos o fim do bipartidarismo autárquico”, onde as idiossincrasias dos concelhos valem mais do que as lideranças a nível nacional.
"José Luís Carneiro ganhou um balão de oxigénio muito forte"
Apesar da dinâmica singular das eleições autárquicas, os partidos não se coibiram de extrapolar os resultados para a dimensão nacional. Se, por um lado, o presidente do PSD interpretou os resultados como uma vitória pessoal, equiparando-se a Cavaco Silva, José Luís Carneiro reivindicou o PS como “o grande partido de alternativa política ao Governo”.
Para isso, o secretário-geral do PS sustentou-se no facto de o partido ter ficado com metade das capitais de distrito - o PSD ganhou em seis -, nomeadamente Bragança, onde os socialistas acabaram com um império de 30 anos do PSD, ou Viseu, que nunca tinha tido uma liderança camarária à esquerda. É certo que o PS perdeu em Lisboa e no Porto, mas “estas capitais de distrito permitem suavizar aquela que foi uma derrota do PS”, argumenta José Filipe Pinto, que acredita que “José Luís Carneiro foi vítima de escolhas de Pedro Nuno Santos” nestas autárquicas.
“O melhor exemplo disso é a escolha de Alexandra Leitão para Lisboa e, pior do que isso, a coligação que ela aceitou fazer com partidos como o Bloco de Esquerda”, assume o politólogo, que descreve o partido de Mariana Mortágua como “um ativo tóxico para o PS em Lisboa”.
Mesmo assim, acrescenta José Filipe Pinto, “o PS ficou longe da hecatombe que muitas vozes, incluindo dentro do próprio PS, previam”, e José Luís Carneiro “viu a sua autoridade reforçada a nível interno”. O politólogo Bruno Ferreira Costa concorda que o resultado do PS “tranquiliza e valida a liderança de José Luís Carneiro”.
“É verdade que não conquista Lisboa nem o Porto, mas equipara-se à AD nas capitais de distrito. E isto, para alguém que está há pouco tempo [na liderança do PS], vai-lhe dar margem para construir o seu caminho, nomeadamente o caminho de um PS mais moderado, mais ao centro, a desbloquear algumas medidas do Governo, quando necessário.”
José Luís Carneiro continua a ser “um líder a prazo”, sublinha José Filipe Pinto. “Mas ganhou um balão de oxigénio muito forte” com estas eleições autárquicas, o suficiente para se afirmar como “o verdadeiro líder da oposição” do Governo da AD, completa o politólogo.