“Há um mundo distante dos resorts que clama por um novo Brasil”. No Caribe brasileiro, não há espreguiçadeira para Lula e Bolsonaro

11 set 2022, 22:00
Barra de Santo Antônio, Alagoas, Brasil

Há dois países no mesmo Brasil. O Brasil dos resorts e o Brasil da luta pela sobrevivência. Raras vezes se encontram. A um mês das eleições presidenciais, há quem estranhe quando se puxa o assunto da política. Bem-vindos a Barra de Santo Antônio, Estado de Alagoas, numa viagem em quatro ambientes

Capítulo 1: A Praia

Os calcanhares afundam na areia, em busca de sustento. O rosto virado para o mar, as costas viradas para a costa. A rede à volta da cintura. Kelvin Wesley, de 19 anos, puxa uma manhã de trabalho. Às quatro, deitou as cordas ao mar. Ainda não são oito, mas a cara já está queimada pelo sol. Dias e dias do mesmo. Todos os dias de segunda a sábado.

A pesca é o principal ganha-pão em Barra de Santo Antônio, no Estado de Alagoas. Kelvin chegou a trabalhar na construção do hotel que acaba de ser inaugurado. Acabou-se o cimento, recomeçou a areia. Quando se fala de eleições, como aquelas que outubro guarda, o rosto torce-se. É preciso repetir, dizer os nomes de Jair Bolsonaro e Lula da Silva. “É a segunda vez que vou votar. Fui e continuo sendo Bolsonaro. Sinto mais segurança.”

Mesmo que a cada dia não se saiba bem o que trazem as redes. Josué Balwin, 42 anos, está no passo seguinte. A poucos metros do colega. No chão espalha-se a dádiva do mar. O homem vai escolhendo e separando tudo com as mãos grossas e calejadas. Três caixas à frente do rosto - a azul para os caranguejos, a preta para o camarão, a vermelha para o peixe-espada.

Na Praia do Carro Quebrado, na jorna, não há o secretismo que os guias turísticos lhe atribuem. Aqui as águas recebem o que vem do rio que atravessa a pequena cidade de 16 mil habitantes. À rede vêm as folhagens, as canas, os plásticos. “Vem tudo, só não vem ouro.” Esse metal precioso, em forma de salário, que a tantos alimenta sonhos por estas bandas. E, a cada eleição, a promessa de o aumentar. Josué já não acredita. O boné azul ensombra-lhe o rosto. “Eu não sei se mude ou fique no meu. É sempre a mesma coisa na política.”

As redes trazem um pouco de tudo. Há que separar o que realmente alimenta

Na caminhada da manhã, enquanto o sol se veste de um calor tímido de inverno, os turistas passam por ele. Poucos, ainda. Mas a cada dia mais, com a abertura do resort com mais de 500 quartos que o colega ajudou a construir. Josué escuta-os, ajuda-o a passar o tempo de separação da pescaria. “Não falam de política. É normal, aqui não tem stress com nada.”

Na vegetação, os urubus, de plumagem negra, põem-se a postos. O que os humanos deixarem ficar no areal é para comer. Os peixes desfeitos também são alimento. Na natureza, tudo se transforma. Na democracia, essa mudança também pode acontecer. No pontão da praia, acredita-se que ela pode acontecer.

“O povo aí é mais Lula.” Izaque Santos, 23 anos, tem explicação simples: na cidade, vive-se com dificuldades. Sobrevive-se na dureza do trabalho. O Partido dos Trabalhadores parece, por isso, o melhor encaixe. “Mas o turista quando vem para um lugar desse quer é ficar à vontade, porque aqui é só alegria.”

Izaque traz na mão um coco verde, polido, distinto daqueles que jazem pela praia fora. É com ele que ganha a vida. “Faço fotomontagem.” Sem necessidade de computadores ou programas informáticos. Basta um telemóvel. Izaque enquadra os turistas na paisagem de formas criativas. A sair de um coco, em cima de uma lata de cerveja, suspensos no ar. Cada um lhe paga a criatividade com o que tem. Ou com o que pode.

As bicicletas ficam estacionadas na praia enquanto dura a jornada de trabalho

Capítulo 2: O Hotel

Na pele negra, uma tatuagem-colar. Tribal, como as origens que defende na voz. A tinta permanente crava-se também nos braços, expostos pelas alças do leve vestido laranja. Bárbara Carine, 35 anos, está sentada no lobby do hotel Vila Galé Alagoas. É uma das convidadas para a inauguração. Para ela a política não é uma pulseira valiosa que se tire num momento informal, algo que se possa desligar num momento de férias. “A política não é um acessório. É a nossa vida. E temos duas opções: nos posicionar ou silenciar. Mas quando se silencia, se está alimentando o statuos quo.”

A professora universitária e escritora não precisa de dizer o nome de Lula da Silva para se adivinhar que o apoia. “O Brasil que encontramos hoje é um Brasil que se afastou do povo.” “Quatro anos de relações tensas”, polarizadas, capazes de separar as famílias que levem o assunto para a mesa. “Há uma espécie de Brasil oculto, onde não se discute futebol, religião e política. As pessoas procuram se afastar. Porque têm a ideia de que podem sair prejudicadas.”

Os olhos ganham-lhe força, o corpo empolga-se, numa postura de luta. Tudo pode ser uma arena política. É mais desafiante ainda quando a conjugação é inesperada, como num resort, onde tantos procuram um escape às preocupações do dia a dia. “Há um mundo distante dos resorts. E ele clama por um novo Brasil.”

Bárbara é fundadora de uma escola afro-brasileira, onde se aborda a herança africana na cultura do país

Na azáfama de inaugurar uma unidade hoteleira com mais de 500 quartos, José António Bastos oferece-se a uma pausa para conversar. São 14 anos de trabalho a desbravar a hotelaria no Brasil, naquele que se tornou o maior grupo de resorts no país, apesar da origem portuguesa. A voz já lhe traz a ginga do samba, as vogais mais abertas.

E a consciência de como umas eleições podem ou não mudar o negócio. “A curto prazo, não se sente o efeito.” Mas a polarização do Brasil, admite, deixa alguma apreensão para o futuro, para o plano de expansão, sempre ambicioso. “Sentimos que muitas das conversas dos hóspedes são acerca da política.” Mas reconhece-se que, quanto mais humildes as origens, quanto mais parca a formação, menor a tendência para ter Bolsonaro e Lula sentados à mesa do café da manhã.

Projeto do grupo português Vila Galé no estado de Alagoas é responsável pela criação de 300 postos de trabalho diretos

Num regime de “tudo incluído”, o dia vai-se levando entre banhos de sol e refeições. Hoje, para sobremesa, há música. O axê serve-se ao ritmo da percussão. Energia positiva. Os corpos sobem e descem. Misturam-se todos, alheios às histórias e preferências de cada um. Há um só Brasil. Ou assim parece.

Marinalva Silva, 55 anos, não se mistura. Está sentada a um canto, recatada. As mãos seguram nas agulhas. Vem para mostrar o talento que cultiva desde os dez anos, de bordadeira. A linha vermelha vai formando a parte de cima de um fato de banho. A de baixo está completa. “É um shortinho blogueirinha.” Fala-se-lhe de política. Não entende – ou faz não entender. Insiste-se. “Ah! Política! Eu não gosto de política, não. Eu gostei do Bolsonaro, mas aqui o partido do Lula é mais forte.” Marinalva não se mistura.

Este é o "shortinho de blogueirinha", pensado para fazer sucesso nas redes sociais

Capítulo 3: O Mar

No agosto brasileiro, o inverno prova a sua tropicalidade. Em Santo Antônio da Barra, numa rua chove, noutra não. As gotas são sempre temporárias. Mas deixam um rasto de horas, escurecendo as águas da praia. O “Caribe brasileiro”, como é classificado, não está hoje tão luminoso.

Mas Salésia Ramos, 55 anos, não desiste do passeio de barco. O banco está molhado. Ela sacode com a mão o que resta. Ainda assim, a túnica branca fica translúcida. O que lhe importa, mesmo tendo nascido no Estado de Alagoas, é aproveitar a vista. As falésias embrulhadas em palmeiras. O mar quente. Os corais escondidos. No Brasil destes dias, diz a jornalista, há brigas de família à custa da política. Irmãos que deixam de se falar quando descobrem que não colocam a cruz da democracia no mesmo sítio. “Já o turista só vem mesmo para ver essa paisagem maravilhosa.”

No inverno brasileiro, a chuva é uma constante, embora tenda a durar pouco

O catamarã Coco Loko abana devagar. A música é sempre a mesma ao longo da viagem. “Tô querendo te beijar de novo/O teu beijo me enlouqueceu.” A embarcação no namoro contido da maré. Para um lado, para o outro, tal como o país que se habituou à alternância política. Para quem trabalha no turismo, é outra a flutuação que realmente importa: a do real.

“Não temos sentido impacto das mudanças políticas. Já passámos por vários ciclos. Não há uma correspondência direta. Há sempre uma perturbação do ano eleitoral, mas não tem um impacto direto no fluxo. A maior incerteza está nas flutuações cambiais. A queda do real pode ter um efeito sobre o poder de compra, nomeadamente no transporte aéreo, que está indexado ao dólar”, explica Gonçalo de Almeida, administrador do grupo Vila Galé, presente no Brasil há mais de duas décadas.

Mesmo acontecendo, o impacto, fora de portas, é sempre reduzido: o Brasil depende sobretudo do turismo interno. Nove em cada dez hóspedes desta cadeia hoteleira passam as férias no próprio país. O negócio, no segundo trimestre, estava a crescer 5 a 8% abaixo do esperado. Jorge Rebelo de Almeida, presidente do grupo Vila Galé, reconhece que a insegurança e a instabilidade no país não ajudam nas contas. Mas deixa o compromisso: “Seja qual for o resultado das eleições, não vamos desistir. Estamos aqui de pedra e cal.” Com a mesma dureza dos corais, que a chuva rápida de inverno não deixa ver com nitidez.

Capítulo 4: A Cidade

Alfonso Dacal, 60 anos, não retira o chapéu ao entrar no carro. Pouco espaço resta entre a aba e o tejadilho. O carro desdobra-se em curvas e contracurvas cautelosas, para evitar as fendas abertas pela chuva no chão de terra batida. Os canaviais servem de berma. O guia intérprete segue do miradouro da Praia do Carro Quebrado para o centro da cidade.

Esta é a vista da Praia do Carro Quebrado. O acesso é difícil mas cerca de 500 turistas vêm aqui todos os dias 

Uma das primeiras paragens é a praça do Ó. Nos bancos de cimento, pintados de verde, repousam homens de meia-idade. O principal atrativo do largo está guardado por detrás de umas pequenas portas amarelas: a televisão comunitária. “O povo tem televisão na sala, no quarto, na cozinha, no banheiro. Mas vem para aqui à noite ver televisão. E porquê? É mais para paquerar.”

A cada rua, o mesmo cenário. A poeira, motos com penduras, cães que se demoram a desviar-se do carro. E, na soleira de muitas portas, gente sentada, de roupa fresca, a contemplar o tempo que passa. A um mês das eleições presidenciais, não há cartazes na Barra de Santo Antônio. “Está tudo muito calmo, muito calmo.”

Exceção feita na aproximação à paragem seguinte, o ponto onde o rio e o mar se encontram. Num jipe, mal-estacionado, um autocolante, “Alagoas com Bolsonaro”. Um cavalo toma banho nas águas, dois rapazes jogam futebol, uma margarida amarela perdida no chão.

No ponto em que o rio e o mar se encontram, praticamente não há gente. As canas trazidas pelo rio repousam na areia

Na outra margem da foz, sim, há gente. É a praia da Ilha da Croa, a mais próxima do município, onde só os supermercados e as farmácias se mantêm abertos ao domingo. A vida segue nas coisas simples, longe da política, longe da presidência, a dois mil quilómetros de Brasília. Alfonso estica o dedo para fora do carro, realçando o fumo que solta o assador de uma família. As espinhas retiram-se entre o axé e o funk. “Há lá coisa melhor que pôr uma música e ficar comendo um peixinho?”

*o jornalista viajou para Barra de Santo Antônio, no Brasil, a convite do grupo Vila Galé

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