De “pequeno ditadorzinho” a amigo de “bandido”. Um debate “focado no passado” que confirma que "a degradação da democracia veio para ficar"

17 out 2022, 15:00
Debate entre Lula e Bolsonaro

Houve acusações, folhas, a mão de Jair Bolsonaro no ombro de Lula da Silva e um debate em que os candidatos pouco ou nada se olharam olhos nos olhos - o foco esteve, quase sempre, na objetiva da câmara e no passado de cada um deles.

“Mentiroso é você. Você mente todo dia”, acusou Lula. “Lula, não continue mentindo, pega mal para sua idade”, contrapôs Bolsonaro.

O debate que colocou frente a frente Lula da Silva e Jair Bolsonaro, a duas semanas da segunda volta para as eleições presidenciais, e num estilo bem menos formal do que o que estamos habituados a ver em Portugal, ficou marcado por acusações mútuas, uma mão de Bolsonaro no ombro de Lula e o ex-presidente a ser acusado, já depois do debate, de destratar o seu assessor, com um vídeo que rapidamente foi partilhado no Twitter, sobretudo por apoiantes de Bolsonaro.

O debate durou quase duas horas, e decorreu num formato em que os candidatos estiveram sozinhos no palco e aproveitaram para falar diretamente para a câmara. “Olhar nos olhos para criar a percepção lá em casa de que o candidato estaria a falar para a pessoa, mais no registo de comício do que de um debate com adversário”, considera Helena Ferro Gouveia, analista de Assuntos Internacionais e comentadora na CNN Portugal.

Apesar de os dois candidatos terem mantido um tom calmo, sem levantarem a voz uma única vez, tal como refere o jornal Folha de São Paulo, foi um debate repleto de acusações mútuas e nenhum ficou a salvo do título de mentiroso - Lula chegou mesmo a criticar a “cara de pau” de Bolsonaro para “contar inverdades”.

“Não me parece que seja uma forma de debater. O verniz civilizacional estalou todo. Foram agressivos, muito agressivos mesmo, tanto um como o outro, mas não foram assertivos naquilo que é a coisa política, nos planos para o país, nos projetos para o futuro. O debate foi muito focado no passado”, diz Helena Ferro Gouveia.

Jair Bolsonaro coloca a mão em Lula da Silva, um dos momentos mais partilhados nas redes sociais (Associated Press)

Durante o debate, Bolsonaro recorreu por várias vezes a folhas com anotações e ficou em silêncio em diversos momentos, mas acabou por fazer uma melhor gestão do tempo (teve cinco minutos inteiros para falar no final do debate e sete minutos durante o programa, segundo a Veja) e conseguiu deixar Lula sem resposta às acusações finais: de que Lula tem ligações a Daniel Ortega, da Nicarágua, e que, por isso, está envolvido no fecho de igrejas, e a Nicolás Maduro, da Venezuela, ligando-o ao autoritarismo e à miséria, diz a Folha de São Paulo.

“Foi um debate onde tivemos dois candidatos muito focados a falar para a sua bolha e a dirigir a mensagem para o seu próprio eleitorado”, continua Helena Ferro Gouveia, que considera que a má gestão do tempo por parte de Lula da Silva não foi um sinal de falta de preparação. “Pode ter sido excesso de confiança ou empolgação, como dizem os brasileiros, mas não é insegurança ou inexperiência”, explica.

Apesar de a pandemia, a corrupção e as fake news terem sido os temas mais quentes da noite, houve ainda espaço para Lula chamar Bolsonaro de “pequeno ditadorzinho” e de o atual presidente dizer que não quer que a ideologia de género seja ensinada às crianças ou que estas tenham de partilhar a mesma casa de banho.

“Quero um país livre, em que seja respeitada liberdade de expressão, que possa trabalhar e ter certeza que seu filho não vai ser ensinado a ideologia de género. Não quero que as crianças frequentem o mesmo banheiro, não queremos a liberalização das drogas. Somos cristãos. Não ao aborto, não ao MST [Movimento dos Sem Terra] invadindo terra. Pelo direito de legítima defesa. Esse é o país que nós queremos”, disse Bolsonaro.

“Quem defende a democracia e a liberdade sou eu, muito mais do que ele [Bolsonaro], que é um pequeno ditadorzinho que quer ocupar a Suprema Corte”, atacou Lula.

“Não era de esperar que houvesse uma grande ênfase nas políticas para os próximos anos, isso verificou-se. O debate foi essencialmente a discussão do passado de um e de outro, de críticas pessoais e políticas. E isso não é novo na campanha. Não falamos de dois candidatos novos, falamos de dois candidatos em que o passado fala por eles”, diz o investigador e especialista em Relações Internacionais Pedro Ponte e Sousa.

Lula acusou Bolsonaro (indiretamente) de pedofilia

Lula da Silva não hesitou em atacar aquilo que considera ser a má gestão da covid-19 no Brasil e que resultou na morte de milhares de pessoas - mais de 400 mil, entre as quais duas mil crianças, disse.

“O Brasil tem 3% da população mundial e teve 11% das mortes da pandemia no mundo”, atirou o antigo presidente.

Ainda sobre a covid-19, Lula disse que Bolsonaro “não cuidou, debochou, riu” com a pandemia. 

“A verdade é que o senhor debochou, o senhor gozou das pessoas e deixou as pessoas morrerem afogadas por falta de oxigênio em Manaus. Apareceu na TV imitando pessoas sem ar”, disse Lula.

Tal como destaca a BBC, Bolsonaro contra-argumentou dizendo, primeiro, que tem “um vídeo de Lula dando graças a Deus que a natureza criou a covid” e, depois, que o Brasil foi o primeiro país a iniciar a vacinação contra a covid-19, mas, diz o Lupa (equipa de fact check do Folha de São Paulo) diz que é mentira e que, pelo menos, 50 outras nações já tinham iniciado a vacinação antes do Brasil. 

Ainda antes do debate, Lula da Silva aproveitou a declaração polémica de Jair Bolsonaro sobre o “clima” que surgiu com “menininhas de 14 e 15 anos na Venezula”, associando o atual presidente à pedofilia, mas, conta a imprensa brasileira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) impediu Lula de continuar a fazer tal associação.

Jair Bolsonaro comentou a polémica também antes do debate dizendo que passou “as piores 24 horas” da sua vida depois de ter sido “acusado de praticar a pedofilia”.

Já no debate, o antigo presidente conseguiu indiretamente trazer o tema a palco, usando uma pregadeira da campanha Faça Bonito, de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, que rapidamente saltou à vista e foi partilhada nas redes sociais.

 

Bolsonaro contra ataca com o argumento de sempre: a corrupção

O tema corrupção foi a ‘arma’ de Bolsonaro, tal como tem sido desde o começo da campanha eleitoral. No debate desta madrugada, em que Sérgio Moro esteve na primeira fila, o atual presidente acusou Lula de ter uma “amizade com bandido”, referindo-se a uma teoria que tem vindo a defender nos últimos dias e que dá conta de que Lula terá feito um acordo com criminosos no Rio de Janeiro. Aqui, Lula rejeitou a acusação e argumentou: “Eu sou o único candidato a presidente da República que tem coragem de entrar numa favela sem colete de segurança”.

“A grande verdade: o senhor não fez nada pelo Brasil, a não ser transpor dinheiro público para o seu bolso e o dos seus amigos”, atirou Bolsonaro, ainda com a corrupção e a ida de Lula para a cadeia como mote da argumentação.

Bolsonaro acusou também Lula de propagar fake news, sobretudo pelo que terá acontecido na Venezuela, mas o antigo presidente contra atacou e chamou mesmo Bolsonaro de “Rei das Fake News e Rei da Estupidez”, sobretudo pelas suas declarações e decisões polémicas nestes mais de dois anos de pandemia.

Num primeiro momento, o atual presidente pediu aos espectadores para “dar um Google aí” sobre o crescimento económico do Brasil e, depois, sobre “o desmantelamento Lula e desmantelamento Bolsonaro”, relativamente à Amazónia. E a verdade é que os dois temas ficaram tendência de pesquisa no motor de busca, diz o site O Globo.

 

Quem ganhou?

Segundo a revista Veja, o facto de os dois candidatos terem discutido mais a pandemia do que a corrupção no primeiro bloco, que é quando o eleitor está mais atento, dá logo uma vantagem a Lula da Silva. Mas Helena Ferro Gouveia destaca que o final dos debates é também um momento importante e esse ficou a cargo do atual presidente Jair Bolsonaro.

Tanto Helena Ferro Gouveia como Pedro Ponte e Sousa não veem vencedores. O investigador diz mesmo que “o vencedor certamente não foi o eleitor brasileiro”, até porque, adianta, “a degradação da democracia, quer Lula vença ou não, veio para ficar, o movimento de Bolsonaro veio para ficar, seja na presidência ou noutros ramos da política”.

Já Helena Ferro Gouveia olha para o resultado final como um empate, em que Lula poderá sair “beneficiado” por estar “à frente nas sondagens”. “Ambos os candidatos ficaram empatados, vimos o Lula mais forte nas questões sobre a pandemia ou falta de vacina.  Mas também vimos no final a questão da corrupção e Bolsonaro aí estava bem na forma como atacou o PT”.

“Quando ambas as partes têm uma noção tão diferente do que é a realidade e a verdade, não há uma base por onde se possa discutir. O vencedor certamente não foi o eleitor brasileiro, não me parece que tenha sido especialmente esclarecido sobre qual a grande estratégia e projetos para o futuro. Acho que não há um vencedor a proclamar neste debate, não me parece que o formato tenha ajudado, foi um reiterar de posições de cada uma das partes”, considera Pedro Ponte e Sousa.

Os especialistas entrevistados pela CNN Portugal destacam o facto de os dois candidatos terem falado diretamente para o próprio eleitorado, o que poderá não resultar em mudanças significativas nas urnas. “Se o intuito era conquistar novo eleitorado, parece que não foi atingido”, reconhece Helena Ferro Gouveia. “Não me parece que vá haver consequência deste debate nas votações”, conclui Pedro Ponte e Sousa.

Segundo os mais recentes dados do Datafolha, revelados na passada sexta-feira, Lula da Silva mantém-se à frente na corrida à presidência, com 49% dos votos totais, face aos 44% de Bolsonaro.

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