O Livre faz oito anos, Rui Tavares vai ser deputado e Ana vai pintar o cabelo de verde. Cantam todos juntos por "uma terra sem amos"

31 jan 2022, 08:14

Não é a primeira vez que o partido elege um deputado mas, depois da saída de Joacine, há dois anos, Rui Tavares garante que desta vez "o Livre veio para ficar". O historiador de 49 anos vai para o Parlamento, mas ainda não se vê como um político profissional

O cabelo cor-de-rosa de Ana Bernardes não passa despercebido. É ela que dá as boas vindas aos apoiantes do Livre nesta noite eleitoral na Casa do Alentejo, em Lisboa, distribuindo flyers e simpatia, uma vez que já não tem pins nem máscaras com papoilas, os items mais requisitados durante a campanha. Ana tem 24 anos e um cabelo cor-de-rosa que em breve vai passar a ser verde. Toda a gente no partido sabe disso. “Foi uma promessa que fiz, que se o Rui fosse eleito eu pintava o cabelo de verde e na segunda-feira vou já tratar disso”, assegura Ana, que já teve o cabelo azul, roxo e cor-de-laranja e agora se prepara para ter a cabeça verde, como a cor do Livre, que é o verde Pantone 2297, esclarece Rui Tavares, na brincadeira, para que não haja enganos na ida ao cabeleireiro. 

A eleição do cabeça-de-lista do Livre por Lisboa foi confirmada às 23.37, pondo fim a mais de três horas de angústias e contas de somar. Pouco depois, o líder do partido aparece na sala para o discurso da vitória - porque "é uma vitória, é uma missão cumprida", garante, apesar de só eleger um deputado e não "um grupo parlamentar", que era um dos seus objetivos mais ambiciosos. "Nós sabíamos que isto poderia acontecer, mas estamos na fasquia do resultado esperado e este será o melhor resultado de sempre do Livre", diz Rui Tavares, que se irá estrear como deputado na Assembleia da República aos 49 anos, depois de ter estado quase a ser eleito em 2015 e de ter ficado à porta em 2019 - era número dois, mas o Livre só elegeu um deputado e foi Joacine Katar Moreira.

Desta vez o Livre consegue 1,28%, ou seja quase 69 mil votos, um aumento de 13 mil face a 2019. "A esquerda verde e europeísta chega à Assembleia da República e veio para ficar", diz Rui Tavares, como que garantindo que com ele o partido não corre o risco de repetir os erros de há dois anos, quando após várias divergências Joacine acabaria por sair do Livre e ficar no Parlamento como deputada não-inscrita. "As peripécias do Livre até chegar aqui são públicas e exigiram de nós algum estoicismo", dirá já no final da noite à CNN Portugal. 2019 acabou por ser uma oportunidade perdida. Mas agora é a sério. Esta é a oportunidade que Rui Tavares não pode desperdiçar e ele sabe disso.

Hoje o partido está duplamente de parabéns: pelo resultado de domingo e porque, esta segunda-feira, comemora o seu oitavo aniversário, recorda Rui Tavares à passagem da meia-noite. "Criámos o Livre no Porto, a 31 de janeiro, porque aí se fez a primeira revolta republicana no país", explica: foi uma forma de lembrar que "já houve uma altura em que lutar pela liberdade significava arriscar a vida". 

Um partido nascido da luta contra a austeridade para trazer um novo conceito de liberdade

A noite tinha começado morna nas rua das Portas de Santo Antão. A Casa do Alentejo tem aquele ar de palacete decadente, de paredes espelhadas e portas douradas, mas que ao mesmo tempo exibe fotografias de cantores alentejanos e tem um restaurante bastante cotado, onde se comem migas de espargos com carne do alguidar, cozido de grão, ensopado de borrego e sopa de cação. A sala onde o Livre instalou o seu quartel-central é ampla e está cheia de jornalistas. Os militantes vagueiam por ali, entre os varandins do primeiro andar e as bifanas da tasca no rés-do-chão.

A meio da noite, a pessoa mais animada na sala é João Luís Silva, gestor de 57 anos e candidato por Vila Real, que entra por ali adentro a agitar uma bandeira e a gritar "Livre, Livre", quando tudo ainda são dúvidas. "Seja qual for o resultado, e acredito que o Livre irá eleger, será uma vitória para nós, porque a direita perde e esse era um dos nossos objetivos", diz. 

Jorge Pinto, candidato pelo Porto, também tem a certeza de que "existe espaço para o Livre". Jorge tem 34 anos e é engenheiro do ambiente e formado em filosofia. Juntou as duas áreas de interesse na sua tese, agora editada com o título "A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI", com prefácio de Rui Tavares, lançado na semana passada com apresentação de Ana Gomes. Trata-se de "trazer para o presente e à luz dos desafios ecológicos atuais, as filosofias políticas da Grécia e da Roma antigas", o que "irá ter efeitos no nosso conceito de liberdade, que deixa de ser tanto a não interferência e a não limitação para passar a ser a não dominação". "Isto também tem muito a ver com o que é a ideologia do Livre", sublinha.

Quando a sala começa a ficar composta e já se pressente que a noite vai ser de festa, Safaa Dib mantém a serenidade. Safaa tem 39 anos e trabalhou durante uma década numa editora de livros mas, em 2018, decidiu mudar de vida e seguir as pisadas dos pais, abrindo um restaurante de comida libanesa em Lisboa. Nessa altura, Safaa já estava no Livre. “Nunca tinha estado em nenhum partido mas, durante os anos da troika, participei no Manifesto por uma Esquerda Livre e foi na sequência desse movimento contra as medidas de austeridade que nasceu o Livre, composto por um grupo de cidadãos que estavam muito preocupados e queriam dar o seu contributo. Eu senti que tinha de fazer algo e estou no partido desde então", conta.

Safaa tem estado envolvida nas diversas eleições, sejam autárquicas, europeias ou legislativas e é também, desde 2015, uma dos 15 membros do Grupo de Contacto, um dos órgãos executivos do partido. Nem ela sabia quando isto começou, mas acabaria por descobrir que a atividade política "é muito estimulante". "Consome muito tempo, praticamente não tenho tempo livre para outras atividades mas é bom sentir que estou a fazer algo em que acredito e que é útil para o país", diz. "Algumas pessoas acusam-nos de sermos demasiado utópicos, mas a verdade é que nós não pensamos só num futuro próximo, nós olhamos mesmo para o futuro."

Os funcionários que trabalham também com convicção

Rui Tavares agradece a todos os que tornaram este resultado possível para o partido que teve o mais baixo orçamento de campanha e que tem “menos de uma mão cheia de funcionários”. Uma delas é Ana Bernardes, a rapariga do cabelo cor-de-rosa a caminho de ser verde, que em 2020, depois de ter concluído os seus estudos em Relações Internacionais e de ter feito alguns voluntariados, decidiu concorrer a uma vaga para assistente administrativa e foi selecionada após uma entrevista com quatro dirigentes do Livre. Desde então, passou a ser a responsável pelo email central do partido, assim como por tratar das inscrições, organizar os eventos, ajudar a gerir as redes sociais e, no fundo, “fazer de tudo um pouco”, sobretudo quando há campanhas eleitorais. “Eu gosto muito do que faço mas poder fazê-lo num sítio onde trabalho com pessoas que partilham os meus valores é ainda melhor”, afirma.

Tomás Cardoso Pereira, "o mais jovem diretor de campanha" desta corrida eleitoral, com 28 anos, concorda com Ana: "Não posso falar pelos outros assessores, mas eu não conseguiria fazer isto se não concordasse com as propostas", diz, garantindo que sempre votou Livre, mesmo antes de, em 2018, se tornar assessor do partido na Assembleia Municipal de Lisboa. Formado em gestão, Tomás estava a fazer a sua tese de mestrado em estudos europeus quando decidiu dedicar-se à política e deixou a tese em banho-maria. "Eu já sabia que o que queria mesmo era trabalhar em política, a fazer isto ou outra coisa". 

A campanha eleitoral do Livre começou a ser preparada "no momento em que se percebeu que o Orçamento de Estado ia ser chumbado". Depois, Tomás nunca mais parou: "Tivemos primárias em novembro, congresso em dezembro e em janeiro começaram os debates e a campanha. Foi um desafio monumental, com um volume de trabalho e um ritmo enormes", diz. Se tivesse que escolher os momentos decisivos deste último mês, o assessor do Livre escolheria o momento em que conseguiram assegurar a presença nos debates televisivos e, depois, "o debate com o candidato da extrema-direita". Talvez tenha sido aí que se começou a desenhar com mais clareza esta eleição.

Tavares: o deputado que fala muito e canta "A Internacional"

O discurso de Rui Tavares dura mais de 40 minutos. Cansado de esperar, a meio do discurso do Livre, António Costa chama para si os diretos televisivos, que há uma maioria absoluta a ser comemorada e a noite já vai longa. Rui Tavares fica a falar só para a Casa do Alentejo e até graceja sobre o assunto. É conhecido pela facilidade com que debita palavras e por raramente se enervar. Quem perde são os espectadores que estão com os olhos no Hotel Altis e não veem o momento em que, liderados por Tavares, os apoiantes do Livre erguem os punhos e cantam à capela o refrão d'A Internacional, o hino do socialismo revolucionário:  "Bem unidos façamos/ Nesta luta final/ Uma terra sem amos/ A Internacional".

Apesar de ter sido eurodeputado entre 2009 e 2014 e de estar desde então envolvido nas atividades e nas candidaturas do Livre, Rui Tavares não se vê como um político profissional: "Tenho uma atividade cívico-política quando sinto que é importante e que devo dar o corpo ao manifesto. Ser historiador e escrever são as minhas atividades principais e são atividades que me dão muita alegria e também muita liberdade para poder recusar convites de outros partidos", diz à CNN Portugal, ao final da noite, quando a sala volta a ficar vazia e os ponteiros do relógio já passam da uma da manhã, admitindo que lhe vai custar deixar de fazer algumas dessas coisas de que gosta, como por exemplo ser cronista no Público: "Escrevi crónicas durante 15 anos, primeiro semanalmente, depois duas e agora já três vezes por semana. É um exercício exigente mas que me obriga a refletir em diversos temas e a sistematizar ideias e tem-me permitido manter um diálogo muito interessante com os leitores". 

Agora, vai tentar aproveitar essa experiência para "provocar o debate" no Parlamento e fazer política de uma forma mais próxima dos cidadãos. "Vamos calcorrerar o país para ouvir as pessoas e explicar as nossas propostas", garante. Para a Assembleia da República, espera levar a proposta de criação de uma Subcomissão dos Direitos Humanos, assim como medidas de combate à pobreza energética, a defesa do Rendimento Básico Incondicional, o acesso à habitação e novas modalidades de transportes públicos. "Está a missão cumprida, mas há muito trabalho por fazer", diz. Na verdade, isto ainda é só o começo.

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