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"Se o povo quiser ir para o inferno, é para o inferno que iremos"

19 mai, 15:11
André Ventura em campanha (Lusa)

No domingo de manhã, dia de eleições, fui repescar uma grandiosa frase de Salgueiro Maia que devia estar escrita na pedra. Numa altura em que, no País, se questionava se o povo tinha instrução e capacidade de fazer as suas escolhas nas primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte, o Capitão de Abril veio, numa rara entrevista em 1974, simultaneamente afastar partidarismos e resumir ao que vinha. “Não há limites para as possibilidades de opção, e se o povo quiser ir para o inferno, é para o inferno que iremos”, disse ao Expresso.

 A frase revelou-se, ao fim do dia eleitoral de ontem, metaforicamente premonitória (e partilhada por muitos milhares de pessoas nas redes). “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo, calma, é apenas um pouco tarde”, diria Manuel António Pina, mas o inferno se não chegou, está, pelo menos, aí à espreita. O Chega, um partido antissistema e antidemocrático, conseguiu ser a segunda maior força política em Portugal. Aumentou em votos (1,345 milhões de votos), número de deputados (vai alcançar, com elevada probabilidade, 60 lugares), distritos e concelhos. Foi, sem sombra de dúvida, o grande vencedor da noite eleitoral. 

Luís Montenegro também subiu em votos e deputados, mas ficou aquém do que era o seu grande objetivo: em vez de uma “maioria maior” que desse uma maioria absoluta com uma IL bem reforçada, só alcançou uma “maioria maiorzinha” e a IL um pequeno reforço, deixando o cenário de difícil governabilidade na mesma. O Luís bem pediu que o deixassem trabalhar, mas as condições que lhe deram não são, mais uma vez, nada fáceis. O Luís está dependente do instinto de sobrevivência de um PS em cacos, estilhaçado por um líder com falta de credibilidade que afugentou o centro, ou dos humores oscilantes e imprevisíveis de um populista Chega, à mercê do que Ventura fareja nos ventos da opinião pública. 

Montenegro bem pode cantar vitória, mas o desalento não o pode largar. Livrou-se, por agora, de parte do fardo da Spinumviva ao tentar fazer das eleições um banho purificador, mas não se livrou do governo minoritário que não lhe permite reformar nada. Com os cofres cheios a coisa faz-se, sem eles a coisa complica-se. Já o Presidente da República tem o pior dos cenários entre mãos: tudo na mesma como a lesma em termos de governabilidade e com um Chega ainda mais reforçado no Parlamento. Obrigada a todos os envolvidos…  

Mas, por mais que a democracia corra por caminhos ínvios, o povo falou, está falado. 

Como chegámos aqui? Podemos aventar inúmeras explicações para estes resultados notáveis (em sentido de “dignos de nota”) do Chega. Eu aponto quatro principais: ressentimento, convicção, credulidade e mediatismo.

O ressentimento é, provavelmente, tão antigo como o Homem. Este sentimento que mistura deceção, amargura, raiva e uma certa perceção de injustiça é um poderoso combustível político. Determinou, ao longo dos tempos, revoluções, mudanças, conquistas de direitos e avanços civilizacionais, mas também recuos e retrocessos. Quando expresso nas urnas, o voto ressentido é um voto que manifesta uma revindicação de uma dignidade que se vê como perdida ou maltratada. 

O ressentimento pode ter fundamentos reais ou ser apenas percecionado – pouco importa. O que importa é que a culpa é sempre do sistema, que não o soube endereçar, entender e atender. Veja-se o exemplo da imigração: o Chega venceu nos cinco concelhos com maior número de imigrantes: Vila do Bispo, Odemira, Albufeira, Aljezur, Lagos. O PS falhou muito porque deixou problemas sérios avolumarem sem entregar respostas, e toda a esquerda falhou outro tanto porque se esqueceu de ser porta-voz dos desfavorecidos para se entregar às causas identitárias. (Se quiser ir mais a fundo no tema, espreite a série de 13 episódios em podcast “Anatomia do Ressentimento”, na Antena 1, onde convidei 26 personalidades a refletiram sobre o assunto.)

Depois, há também um voto por convicção. O cientista político Vicente Valentim toca nele no seu livro “O Fim da Vergonha”. André Ventura, tal como outros líderes da direita radical, deu voz a sentimentos nacionalistas, racistas, homofóbicos que estavam latentes na sociedade, mas que eram recalcados por variados motivos, e a falta de um porta-voz competente e eficaz era um deles. As redes sociais fizeram o resto: amplificaram a mensagem, normalizaram a indecência, acabaram com a vergonha de dizer coisas que outrora eram indizíveis. 

Muitos dos eleitores do Chega são zangados, ressentidos, assustados, mas alguns são mesmo conservadores empedernidos, adoradores do tempo da outra senhora, racistas, homofóbicos, machistas. Um estudo de 2024 mostrou que os eleitores do Chega são os que mais demonstram nostalgia e saudades do Salazar e do Estado Novo.

O terceiro fator de explicação é a credulidade. 

Muitos destes eleitores do Chega vão, obviamente, ao engano. Seja por falta de conhecimento ou de pensamento crítico, caem no canto da besta. O Chega venceu, por exemplo, no concelho com maior taxa de reprovação ou desistência do ensino secundário em Portugal, Lagoa, nos Açores. Há 11 freguesias em Portugal em que mais de metade da população tem ensino superior e foi entre elas que o Chega conseguiu piores resultados.  O estudo de Pedro Magalhães e João Cancela de 2024 sobre as bases sociais do novo sistema partidário mostrou que, entre os votantes licenciados, o Chega não ultrapassou os 11%, e que foi o partido hegemónico junto dos homens jovens menos qualificados.

O quarto fator é o ambiente mediático. 

As redes sociais estão desenhadas com algoritmos que amplificam os conteúdos indignados, raivosos, de protesto. Aumentam a polarização, abrem trincheiras, estimulam o descontentamento, ao mesmo tempo que criam bolhas, câmaras de ressonância e espaços de amplificação de mentiras e percepções. Uma realidade paralela que a extrema-direita sabe utilizar muito bem para levar a água ao seu moinho.  

Os média tradicionais, os velhos gatekeepers demitidos desse papel, vão atrás. Movidos pelo pasmo e horror, tentando combater fake news e fazer valer os seus valores e códigos deontológicos, acabam a amplificar e a normalizar as mensagens radicais. Enleados sobre si próprios numa espiral que não conseguem travar e da qual não conseguem sair, são vítimas e carrascos. 

Este padrão de quatro fatores é comum por toda a Europa. Como saímos dele é que é a questão para a qual ainda não se encontrou resposta.  

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