Montenegro venceu "mas podia ter sido ainda melhor". Foi o que foi - e é o que é. E há o que há - apreensão com o Chega: "vamos ter de contar com o Chega, não há outra hipótese", "vai ser outra vez esta palhaçada", "vai ser duro". Em contrapartida: falar sobre Pedro Nuno é quase como invocar o diabo. Reportagem na sede da AD na noite da vitória
Ventura falava ainda ao país quando na sala do hotel onde se encontram os apoiantes da AD a voz do líder do Chega é silenciada para dar lugar ao hino “deixem o Luís trabalhar”. Toda a gente se levanta, toda a gente se junta mais à frente. Luís Montenegro deixa os seus aposentos e faz o curto percurso recebendo felicitações e abraços. As televisões já não querem saber de André, as atenções focam-se no futuro primeiro-ministro. Acompanhado da mulher, Carla, e da mãe, faz então a sua entrada triunfal com os braços levantados e o “v” de vitória na ponta dos dedos: “O povo quer este Governo e não quer outro. O povo quer este primeiro-ministro e não quer outro”.
Luís Montenegro mede as palavras. O discurso é de vitória, o rosto está sorridente, o ambiente é de satisfação. Mas nas suas palavras não há euforia. A AD venceu as eleições, aumentou a sua votação de 28% para quase 33%, passa de 77 para 89 deputados (talvez 90 quando se contarem os votos do círculo da emigração). E, no entanto, ficou muito longe da “maioria maior”, tantas vezes pedida durante a campanha. Nem com a Iniciativa Liberal, que terá nove deputados, lá consegue chegar. Por isso, quando, ao final da noite, já quase uma da manhã, se dirige à nação, Montenegro mede as palavras. Sobre estabilidade e sobre governabilidade, nada mais dirá do que isto: “O povo quer que este Governo e este primeiro-ministro respeitem e dialoguem com as oposições, mas também quer que as oposições respeitem e dialoguem com este Governo e este primeiro-ministro.”
A AD venceu e vai governar, garante. Luís só precisa que o deixem trabalhar.
Estamos no Epic Sana Hotel, no Marquês de Pombal, em Lisboa. Luís Montenegro chegou aqui às 19:24 acompanhado da mulher e dos dois filhos. Está em casa. É neste hotel de cinco estrelas que há vários anos a AD monta o seu quartel-general em noites eleitorais. Foi também aqui que ele morou durante algum tempo, antes de se mudar para a residência oficial do primeiro-ministro em São Bento. Durante as cinco horas seguintes ficará recolhido nos seus aposentos, longe dos olhares dos jornalistas, a acompanhar a contagem dos votos e a ver a esquerda a desmoronar-se.
A AD reservou um piso inteiro para receber os apoiantes, a imprensa, os convidados e o staff de toda a operação da noite eleitoral. Os ecrãs espalhados pelas várias salas estão divididos em quatro para que se possam ver os quatro canais de notícias em simultâneo. Quatro sondagens diferentes são divulgadas às oito da noite e todas dão a vitória à AD. Os apoiantes aplaudem, o burburinho sobe de tom. Na sala principal, atrás do pequeno palco, surge uma imagem de Montenegro e as palavras: “Obrigado, Portugal. A mudança vai continuar.”
“O país reforçou a sua confiança no governo de Portugal e no chefe de governo, doutor Luís Montenegro” - são 20:43 e Hugo Soares, que é o primeiro social-democrata a prestar declarações para uma sala semivazia depois serem conhecidas as sondagens, arranca o primeiro aplauso para Montenegro e celebra o facto de a AD “sair reforçadíssima deste ato eleitoral”. É uma declaração breve. A noite está ainda a começar.
Ricardo e Catarina chegaram a tempo de ouvir Hugo Soares mas querem é ouvir Luís Montenegro. São militantes, ela há mais de 20 anos, ele há cerca de quatro. Mas é a primeira vez que vêm ao hotel celebrar a vitória. “Estas são umas eleições muito importantes”, diz Catarina. Na sua opinião, “é muito importante que o Governo que estava em funções possa continuar o seu trabalho para trazer mais estabilidade política e social ao país”. E, por isso, também sente que o resultado, apesar de bom, é curto.
Ricardo não tem dúvidas: “A abstenção é a responsável pelo bom resultado do Chega. Porque os eleitores do Chega não se abstiveram, esses foram votar. Os que não foram votar eram aqueles que iriam votar PS ou AD”. A abstenção ficou abaixo dos 36% - uma percentagem mais baixa que a do ano passado. Ainda assim, este é um problema que preocupa Ricardo: “Se as pessoas não votam, não temos uma verdadeira representação do povo, temos a representação de uma minoria".
Ricardo tem pena que muitos jovens não percebam a importância de votar. Mas esse não é o caso de Diogo, David e Rodrigo, que até vestiram blaser e camisa para virem à noite eleitoral depois de terem votado pela primeira vez na vida. São amigos há vários anos. Diogo tem 18 anos e estuda engenharia mecânica, David tem 19 anos e estuda sociologia e Rodrigo, também de 19 anos, estuda direito. “Gostamos muito de política e costumamos conversar muito sobre estas coisas”, diz Diogo, que vem de uma família que se posiciona mais à esquerda. “Mas quando crescemos começamos a pensar pela própria cabeça e as ideias do PSD fizeram logo sentido para mim.” “Quando analisamos as propostas, este partido é aquele que, de longe, mais representa os nossos ideais”, acrescenta Rodrigo.
Nenhum deles é militante - “ainda” - mas os três admitem que gostariam de ter algum tipo de participação na política no futuro. “Na minha opinião, para se ser político é preciso primeiro viver, trabalhar, fazer outras coisas”, afirma Diogo. Apesar de ainda não estarem no partido, quiseram vir este domingo à noite, mostrar o seu apoio. “Mostrar que podem contar connosco” - com eles em particular e com os jovens em geral, é o que querem dizer. Os três amigos estão contentes com o resultado, "ganhar é sempre bom" mas “podia ser ainda melhor”, diz Diogo. “Se o resultado fosse melhor daria mais estabilidade ao país, de qualquer forma é sempre bom ter a nossa direita no poder.” “Vai ser uma governação difícil”, antevê David. “Vamos ver como é que o Chega se comporta.”
É mais ou menos incontornável. Estamos na sede da AD mas todas as conversas vão dar ao Chega, que conseguiu subir a sua votação e ficar empatado com o PS (pelo menos até se saberem os votos da emigração), com 58 deputados. “Agora é que ninguém o atura”, comenta um apoiante da AD sobre André Ventura. “Hoje não se vai sentir mal”, ri-se outro. Apesar da galhofa, existe alguma apreensão. Já sobre o PS, a conversa é outra - falar de Pedro Nuno ali é quase como invocar o diabo: “Fizeram a cama onde se estão a deitar”, sentencia Sandra, uma entusiasmada apoiante da AD que vestiu uma blusa cor-de-laranja. “Ontem vesti verde, hoje laranja. Está a ser um fim de semana em grande”, graceja.
Pouco depois das 22:00, um grupo de jovens da Greve Climática Estudantil e do Movimento Fim ao Fóssil coloca-se à porta do hotel empunhando cartazes. A polícia chega rapidamente. Apesar da manifestação ser pacífica, os cinco jovens - três raparigas e dois rapazes, com idades entre os 16 e os 22 anos - são algemados, colocados dentro dos carros da polícia e levados para a esquadra do Martim Moniz para serem identificados. Mas não se calam. “Não vamos dar paz a este Governo que nos quer matar”, gritam para as câmaras de televisão, até que as portas dos carros se fecham. Desta vez não houve tinta verde atirada a ninguém, mas a porta-voz do movimento, Matilde Ventura, explica que o programa do Governo não tem respostas para a crise climática e que, por isso, estão já a organizar novas formas de protesto.
Na cave do Epic Sana ninguém dá por nada. Estão todos demasiado ocupados a fazer contas aos deputados que terão a AD e a Iniciativa Liberal - e há até quem se lembre do PAN. À medida que a noite avança, vai ficando claro que a tal “maioria maior” não será uma realidade. “Vamos ter de contar com o Chega, não há outra hipótese”, conclui um apoiante, encolhendo os ombros. “Vai ser outra vez esta palhaçada.”
“Isto vai ser duro”, prevê Carlos, 67 anos, militante do PSD quase desde a primeira hora. “Já tive noites muito boas e já tive noites muitos más, na democracia é assim, temos de estar preparados para ganhar e para perder. Mas eu vim sempre.” Carlos é do partido, independentemente do seu líder, mas admite que gosta “deste Montenegro”: “Isto que lhe fizeram foi uma pouca-vergonha. Mas as pessoas perceberam, as pessoas não são parvas. E estes resultados mostram isso. Os partidos que provocaram estas eleições são os maiores derrotados.” No entanto, não está satisfeito. “Isto vai ser duro”, repete.
A noite decorre calmamente, sem grandes alaridos. De vez em quando os mais novos cantam o refrão “eu vou com Portugal, agora é hora de fazer o meu país mudar”. Mas na maior parte do tempo estão só à espera. Quando Mariana Mortágua surge na televisão e diz que esta “foi uma grande campanha para o Bloco de Esquerda”, a gargalhada é geral. Ainda assim, o momento mais entusiasmante acontece já depois da meia-noite, quando Pedro Nuno Santos fala ao país. Assim que o líder do PS aparece nos ecrãs, os apoiantes da AD assobiam sonoramente. Pedro Nuno fala no Altis e no Epic Sana ouvem-se risos e vaias. Por momentos, os gritos de “vitória, vitória, vitória” abafam as palavras do socialista. Mas calam-se a tempo de se ouvir que Pedro Nuno Santos admite a derrota e vai deixar a liderança do PS. Irrompem aplausos. A esta hora a sala já está cheia, as cadeiras todas ocupadas e muitos apoiantes de pé, que gritam: “Assim se vê a força da AD”.
“O povo falou, exerceu o seu poder soberano e, no recato da sua liberdade, o povo aprovou de forma inequívoca um voto de confiança na AD, no Governo e no seu primeiro-ministro”, diz Luís Montenegro, referindo-se a si mesmo. Repete esta ideia várias vezes e não deixa de ser surpreendente ver o líder da AD a dizer que o povo é quem mais ordena, mas de facto é o que acontece. Ao Governo e “às oposições” (assim, no plural, sem distinguir PS ou Chega) “caberá respeitar e cumprir a vontade popular”. É nisto que confia para alcançar a almejada estabilidade. “De uns e outros espera-se sentido de Estado, sentido de responsabilidade, respeito pelas pessoas, espírito de convergência na diversidade mas também respeito pelo interesse nacional”. Montenegro afirma que todos os partidos deverão “ser capazes de dialogar e colocar o interesse nacional acima de qualquer outro interesse”, uma vez que “os portugueses não querem mais eleições antecipadas, querem uma legislatura de quatro anos”.
Questionado sobre se mantém o “não é não” ao partido liderado por André Ventura, Montenegro diz já ter demonstrado que cumpre a sua palavra - ou seja, deduz- se que, tal como disse durante a campanha eleitoral, não conta com o Chega para soluções de Governo. E responde, tal como já tinha feito durante a campanha, com um "sim é sim a Portugal". Vai ainda mais longe: inspira-se no Papa Francisco para dizer que este será um governo “para todos, todos, todos”.
Depois dos hinos da campanha e do hino nacional, a sala esvazia-se depressa. "Vamos ver", diz Sérgio, já de pé, pronto para sair. "Eu gostei de o ouvir. O resultado foi bom e acho que ele é a pessoa certa. Mas temos de esperar para ver o que os outros vão fazer."
Como dizia o outro, prognósticos só no fim da legislatura.