Em resposta ao "não passarão" antifascista, cantou-se no Chega "JÁ PASSÁMOS, JÁ PASSÁMOS!"

19 mai, 10:00
André Ventura (LUSA)

REPORTAGEM || Na noite da vitória, Ventura foi revanchista. “Superámos o partido de Mário Soares, matámos o partido de Álvaro Cunhal, varremos o BE do mapa”. Ventura quer que jornalistas emigrem — à força; a multidão insultou os jornalistas — com força. Brindou-se ainda à "Quarta República"

Já como que se adivinhava. Mas não era adivinhação. 

No Marriott, o hotel de Lisboa que serve o Chega em noites de eleição, corria entre cadeiras, mais vazias que cheias, corria entre telemóveis, passava ainda pouco das sete da tarde, corria portanto o resultado das sondagens à boca das urnas, sondagens-plural, que nas TV se anunciaria às oito da noite em ponto. Nalgumas o partido era terceiro, nalgumas era até segundo e o sentimento era todo ele de confiança. 

A sala ia-se compondo, a pouco e pouco, de gente que não era gente da rua, gente que se vira em arruadas, não toda ela: ali estava uma cúpula, de candidatos, de familiares, de escolhidos, mulheres aperaltadas para um domingo de missa e jovens vestindo os fatos impecavelmente engomados como num baile de finalistas. 

Já bem mais composto o salão de festas, chegava a hora que se esperava e observam no ecrã que preenche o palco o chegar. Aos 10 faz-se a contagem decrescente, só faltava escutar-se “Ground control to Major Tom”, e eis que quando a contagem acaba: silêncio. Não irromperam em folguedos. Não logo, logo. Porque num dos canais o partido era terceiro. “Calma, ainda vamos passá-los.” Ao PS. E mudam de canal. São já segundos agora. “CHEGA! CHEGA! CHEGA!” — irrompem finalmente. E alvitram: “Da próxima ganhamos”. 

Pedro Pinto chegará já a festa vai no adro. Assegura que será “longa” esta noite, mas que o resultado é “histórico”. E alvitra o deputado também: “Sabemos que o sistema já está a tremer!”. Não parte sem afiar facas. “Aos comentadores que diziam mal de Ventura, o povo decidiu em contrário.” Não parte sem o piscar de olhos à governação. “Nós queríamos ganhar. Mas o Chega é essencial para haver uma maioria de Governo: a AD tem de refletir.”

O ambiente serenará. Ventura está por chegar — que foi à missa e todos o sabem. Toca o que se parece a um êxito de K-pop, mas ao longo da noite a sala faz-se com músicas de elevador, uma bossa nova de subir ao sétimo piso, ao sétimo céu. Ventura já rezou o necessário, anuncia-se-lhe chegada brevemente e toda a sala se desloca ao exterior do Marriott, em procissão. Aguardam-no à entrada, serenos quando ninguém os filma, pululantes quando há câmaras em diretos. “GANHÁMOS! CHEGA! GANHÁMOS!” Parece vir a chegar um carro — e posicionam-se para receber André Ventura com grande pompa. Da curva vem, afinal, um autocarro de turistas, que estranham a receção. 

Ventura, já sabemos, só chega quando o seu corpo de segurança pessoal assegura perímetro. É o que agora vai acontecer. Não sem antes um homem do partido insistir para os jovens do Chega: “Tragam mais, não têm mais?, tragam mais”. Virão todos. “Vamos cantar agora: tu sabes a letra?” O jovem não sabia bem, mas socorreu-se do telemóvel. “Ó Luís, vai lá trabalhar, par-ó Ventura poder governar.” Ventura chegará, já nada nele é maleita de refluxo, fala agora aos jornalistas, os apoiantes que se aprocheguem para o escutar. Não canta já vitória cantada. 

Entrará depressa, quem ficou na sala rompe em cânticos para Ventura, com o nome dele, repetido e repetido, mas foram vãs as cantilenas porque Ventura seguiu para um piso abaixo, não indo até à sala de convivo e posteriormente de vitória. 

Para esta sala seguirá um homem em chamada de vídeo, ao que parece com a esposa:

— Já estive com ele!
— Estiveste?
— Na entrada, sim.
— Estiveste com o Ventura?!
— Estar-estar: ainda não; só o vi. 

Todos ali têm por ele um sentimento de pertença. Mesmo sem estar-estar.

Mas deixemos por instantes esta sala, onde enquanto não se sabe se o partido é segundo ou terceiro o que se pratica é a onicofagia. No bar do Marriott bebe-se à conquista de deputados — cujos nomes vão saindo um por um nos ecrãs e grita-se o “EHHHHH!” a cada um que é eleito. Bebe-se ao novato Rui Cardoso, cujas primorosas partilhas lembram um matador de touros nas arenas de Pamplona. Era só 11º em Lisboa, dificilmente elegível, mas parece ter conseguido. Rui desfaz os brindes: “Ainda não, ainda não”. Eram 22:00, seria eleito pelas 23:30. 

O instante de celebração lembra como que um baby shower em que todos são as grávidas. Carlos Medeiros não está de esperanças. Não será um deputado. Mas está feliz como uma gestante de tão longa gestação: “Esperei 50 anos por isto! Para ver o PS desaparecer!” E brinda à “Quarta República” — imaginária, ainda. 

Tudo é gravado para o TikTok e o tiktoker, menos jovem do que seria aqui de esperar, nada jovem até, esforça-se para aparentar uma certa jovialidade ao repetir “pessoal” a cada frase que dá. 

Voltamos à sala de casamentos e batizados. Há momentos de monotonia — que a hora vai já adiantada — que contrastam com autênticos instantes eufóricos, como quando um grupo de activistas climáticas é detida na sede de campanha da AD. Ou como quando o Chega conquista Setúbal: “FODA-SE! Ganhámos, ganhámos em Setúbal!”. Euforia há também no instante em que o derrotado Pedro Nuno Santos anunciará que está de partido do seu PS. Rita Matias puxa do microfone: “ATUALIZAÇÃO! Atualização da outra música. Agora é assim: ó Pedro vai p’ra casa chorar, que o Ventura chegou p’ra ficar!” 

A sala tem já para lá de uma centena de pessoas, ainda e sempre da cúpula do partido, e cantam o que tanto se lhes ouviria na campanha, em resposta ao “não passarão” antifascista: “JÁ PASSÁMOS, JÁ PASSÁMOS!” E fica deles este aviso: “Luís, tu és o próximo! Tu és o próximo!”

Alguém apagou as luzes da sala. 

Estaria para chegar quem todos tanto esperam? Ainda não, foi lapso. Chega já após a meia-noite. Ventura quer discursar mas não lho permitem de eufóricos, de comovidos, quase em transe, quase em culto. “Que grande noite, que grande noite”, dá de introito Ventura. E a multidão exultará. Ventura está emocionado. Se não se percebe de imediato, o ecrã em zoom in fará com que todos percebam. Ventura não está ali para emoções, está para revanche. 

Primeiro, Ventura atirará às sondagens: “Falharam”. “O povo não se deixou intimidar e agora têm de ter as consequências para os seus atos. Eles não podem condicionar a democracia. Não acreditem nas sondagens”. Ventura garante não saber ainda os resultados das legislativas, se é terceiro, se é segundo. A multidão responde: “GANHASTE! GANHASTE!” Ganhar, não ganhou. Ventura sabe: “Com os votos da emigração nós podemos assegurar algo que não acontecia desde o 25 de Abril de 1974”. Faz uma pausa propositadamente prolongada. O que será que o líder pode trazer de antes da Revolução, do dia 24 de abril? Isto: “Nós somos o segundo maior partido”. A multidão cantará o óbvio cântico: “JÁ PASSÁMOS, JÁ PASSÁMOS!”. 

Ventura disseca as conquista do partidos. Fala de concelhos que o Chega não tinha e agora passa a ter. Alguém grita — gritam sempre: “SINTRA!” “Sintra: vencemos na minha terra-natal”, confirma Ventura. Alguém grita — gritam sempre: “A SEGUIR É NA TROFA!” “Não tenham duvidas: nada ficará como dantes”, atira André como uma acha. E incendeia a sala. 

Mas voltemos à revanche, que é também um fogo àquela multidão. “Nas TV e nos jornais há uma muito grande azia”, considera o paciente do espasmo esofágico. E como paciente que se (tanto) noticiou, garante: “Desvalorizaram a saúde de alguém!” Isto não é sobre o que está — ou esteve — doente; é sobre todos. É preciso acentuar o sentimento de pertença: “Fomos humilhados”. De súbito, pela reação — de revolta —, todos terão sofrido de espasmo do esófago nos últimos dias. 

Agora é tempo de Ventura atentar à política partidária, presente e passada. Falará aos que se sentem os “excluídos”, os “traídos”, os “humilhados”. “Varremos do mapa a esquerda, nós ajustámos as contas com a História. Superámos o partido de Mário Soares, matámos o partido de Álvaro Cunhal e varremos o Bloco do mapa.” Falando dos primeiros, dos socialistas, que terão dito de Ventura que foi agressivo, Ventura responde, para os socialistas e para os opositores: “Fomos muito agressivos? Ainda não viram nada! A mama vai mesmo acabar. Estamos quase lá para governar. Deus disse-me que tinha de parar — e ouço sempre a Deus; não vou ouvir até ser primeiro-ministro!”

A multidão é dele. Se lhes pedir que saltem, perguntarão “quão alto, André?”. É tempo de não ser a multidão a perguntar, porque as perguntas são agora dos jornalistas. Muito se pergunta de Montenegro, do “não é não”, do que hão de fazer agora que são (provavelmente) primeiro e segundo e tão mas tão próximos (como nunca antes) no número de deputados. Um homem, baixo de altura, ruidoso de graves, insurge-se: “Cartilheiros! Tenham vergonha!”. Curiosamente, o homem em questão é Luís — Montenegro de apelido também. Mas Ventura responde aos jornalistas: “Felicitei Montenegro [o outro] e nos próximos dias falaremos de Governo”. 

Após mais uma pergunta de governação a multidão exaspera, quase se emula: “É sempre a mesma merda, que filhos da puta, CALEM-SE JÁ!”. Ventura falará de jornalismo e de jornalistas, de comentadores e de televisões. O recado é geral, para todos: “Agora ou respeitam o país em que vivem ou mudam de país”. 

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