Esquerda reclama uma vitória e quer já formar governo, que nunca será do atual primeiro-ministro, que se demitiu. À direita não se ganhou, mas diz-se que isso é apenas por agora
Foi uma surpresa quase total, logo a começar pelos franceses. Ninguém esperava escrever que a esquerda tinha vencido as eleições – muitos dividiam títulos entre uma maioria absoluta da extrema-direita ou uma vitória simples, mas também da extrema-direita.
E não foi nada disso que aconteceu. A Nova Frente Popular, formada já depois da primeira volta, conseguiu ficar à frente, fazendo ressurgir Jean-Luc Mélenchon, da França Insubmissa, como o candidato que pode andar mais perto de formar um novo governo, mesmo que a presidência e o atual executivo não vejam a coisa dessa forma.
Têm a maioria (simples) de deputados de um total de 577, o que deixa a esquerda bem longe da maioria, mas vale pelo copo meio vazio, que é a derrota da extrema-direita, até às 19:00 portuguesas a mais do que provável vencedora. É que o partido de Jordan Bardella e Marine Le Pen, que tinha conseguido 30% há uma semana, ficando em primeiro lugar, não descolou desta vez da terceira posição, ficando inclusivamente atrás do Ensemble de Emmanuel Macron, que ganhou como que um fôlego após o risco da marcação de eleições antecipadas na sequência da derrota brutal nas europeias.
Não será o caso de Gabriel Attal, primeiro-ministro que anunciou de imediato que ia entregar, nas primeiras horas da manhã seguinte, a carta de demissão ao presidente. Em todo o caso, o jovem que muitos chegaram a ver como prodígio, manteve a disponibilidade para continuar à frente do executivo até que seja encontrada uma solução clara.
“Não escolhi esta dissolução, mas recusei-me a submeter-me. Decidimos lutar. Alertei para o risco de uma maioria absoluta da França Insubmissa ou da União Nacional e para o risco de desaparecimento do nosso movimento. Estes três riscos foram afastados pelos franceses. Devemos isso a este espírito francês, apegado aos seus valores", argumentou.
A esquerda governa-se
Jean-Luc Mélenchon apressou-se a dizer que o presidente francês “tem o dever de chamar a Nova Frente Popular a governar”, o que traria para o poder uma ala de esquerda que não governa o país há vários anos.
"As lições do voto não deixam dúvidas: a derrota do presidente da república e da sua coligação está claramente confirmada. O presidente deve admitir esta derrota sem a contornar, seja de que maneira for. O primeiro-ministro deve ir embora. O presidente tem o dever de chamar a Nova Frente Popular a governar", declarou Mélenchon, numa reação às primeiras projeções, saudando a mobilização eleitoral que permitiu à esquerda "alcançar um resultado que se dizia impossível".
O líder do Partido Socialista, Olivier Faure, reagiu pouco depois, regozijando-se com os resultados das projeções. “Esta noite, a França disse não à chegada do Reagrupamento Nacional ao poder", declarou, perante os militantes socialistas, reunidos em La Bellevilloise, em Paris.
Olivier Faure manifestou-se disponível para fazer parte de uma coligação governamental, asssumindo que "a Nova Frente Popular deve assumir o comando desta nova página da nossa história". Segundo Faure, os partidos que integram o bloco das esquerdas pretendem governar e implementar o programa comum do bloco das esquerdas.
Uma ideia à qual sorriu um reaparecido François Hollande. O ex-presidente francês, que até vai voltar ao parlamento depois de ter conseguido vencer a sua eleição, começou por garantir que não será ele o próximo primeiro-ministro – essa é a grande pergunta: quem vai ser o próximo primeiro-ministro?
Hollande entende, ao invés disso, que é o seu "dever", apesar das funções que já desempenhou, "prevenir a extrema-direita de chegar ao poder". Por isso mesmo concorreu, para "abrir um caminho de esperança".
"Quero agradecer a todos os partidos de esquerda que perceberam o significado desta abordagem", acrescentou.
Hollande disse ainda que a Nova Frente Popular deve tentar colocar pressão para formar um futuro governo e ver um programa implementado, quase replicando as palavras do líder dos socialistas.
A direita desgoverna-se
Não há como fugir. O Reagrupamento Nacional (RN) até subiu, mas não subiu nem perto do que se esperava, até porque houve quem temesse uma maioria absoluta saída de uma votação que nem chegou para o terceiro lugar.
Meio tímida, Marine Le Pen assumiu a derrota, mas também se apressou a dizer que o resultado deste domingo é bem mais do que isso: é uma vitória que ficou "apenas adiada".
"A maré está a subir. Desta vez não subiu suficientemente alto, mas continua a subir. E, por isso, a nossa vitória só tarda", declarou a líder no canal privado TF1.
"Tenho demasiada experiência para ficar desiludida com um resultado em que duplicamos o nosso número de deputados", segundo a dirigente, comentando as projeções divulgadas após o fecho das urnas, e que se vieram a confirmar pouco depois.
Jordan Bardella, a nova coqueluche da direita francesa, sobretudo da mais conservadora, ainda foi mais longe. Este resultado é o “maior avanço na história” do partido, duplicando o número de deputados. Apesar disso houve espaço para críticas aos "arranjos eleitorais” que “atiraram a França para os braços da extrema-esquerda”.
“Apesar de uma campanha de segunda volta marcada por alianças contranatura - que procuraram de todas as maneiras impedir os franceses de escolher livremente uma política diferente - o Reagrupamento Nacional realizou hoje o avanço mais importante de toda a sua história”, declarou Jordan Bardella no pavilhão de Chesnaye du Roi, no sudeste de Paris, onde está a decorrer a noite eleitoral do partido.
Para o líder do partido, “a aliança da desonra e os arranjos eleitorais perigosos negociados por Emmanuel Macron e Gabriel Attal com as formações de extrema-esquerda impedem os franceses de uma política de recuperação nacional”.
“Esta noite, os acordos eleitorais atiraram a França para os braços da extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon”, afirmou Jordan Bardella, perante os apupos dos militantes da União Nacional, acrescentando que o facto de a União Nacional ter ganho a primeira volta e duplicado o seu número de deputados são “elementos constitutivos de uma vitória amanhã”.
“Tendo em conta a política que vai ser aplicada nos próximos meses, e que não vai responder a nenhuma das preocupações dos franceses, a União Nacional incarna a única alternância perante o partido único”, acrescentou.
Macron fica a meio (mais ou menos)
O presidente ainda foi contido, nem sequer quis falar, mas os seus ministros, pelo menos dois deles, atiraram-se mais para a frente. Emmanuel Macron recusou uma leitura política na noite de domingo, pedindo apenas "cautela" aos franceses, mas dizendo também que os resultados não podiam ainda responder à dúvida de "quem vai governar".
Citado pelo Le Fígaro, Macron assinalou ainda que "o bloco central está vivo e de boa saúde", numa curta reação às primeiras projeções das eleições francesas, e na qual se espelha algum regozijo e até alívio pelo facto de a extrema-direita, cuja vitória nas europeias o motivou a avançar para estas eleições, não ter vencido.
Ecoando as palavras do presidente, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, que foi reeleito por uma região do norte, afirmou que os resultados não permitem encontrar um claro vencedor. Mas foi mais longe.
Gérald Darmanin, que é afeto ao partido de Emmanuel Macron, declarou que "ninguém pode dizer que ganhou" estas eleições, "especialmente o senhor Mélenchon", num claro posicionamento relativamente à coligação que venceu as eleições.
Também o ministro dos Negócios Estrangeiros, Stéphane Séjourné, afirmou que é "óbvio" que Jean-Luc Mélenchon "não pode governar França".
Ainda assim, o governante reconhece que a presidência deve apresentar "condições para qualquer discussão" que origine uma solução governativa.