REPORTAGEM || A Maria José, que viu a Alexandra Leitão "fazer política com a mesma disciplina com que corrige testes", comoveu-se
Maria José tira da mala uma pequena embalagem preta. Abre-a depressa e leva à boca uma pastilha Halls Extra Forte. Sorri como quem cumpre um ritual. “É para aguentar a garganta quando for hora de gritar.” Diz isso meio a rir-se, meio a sério. O marido, encostado à parede do auditório do Fórum Lisboa, abana a cabeça. “Hoje grita-se vitória, vais ver.”
Maria José acredita - ou quer acreditar. Está ali por amizade, não por cálculo político. Conhece Alexandra Leitão há anos, viu-a dar aulas, viu-a fazer política “com a mesma disciplina com que corrige testes”. Trouxe o cachecol vermelho e a convicção de que, desta vez, o PS pode reconquistar Lisboa.
A líder da coligação "Viver Lisboa" chega sozinha, num carro discreto, por volta das 19h30. Sem comitiva, sem seguranças, como se estivesse a chegar a um jantar de amigos. Sorri, cumprimenta e fala com a serenidade de quem sabe que o essencial já foi dito durante as semanas de campanha.
“Estamos a aguardar as primeiras sondagens, vamos aguardar com tranquilidade durante a noite”, diz ao sair do carro.
“Tem algum discurso preparado?”, pergunta um jornalista.
“Na verdade não tenho nenhum”, responde. Sorri. “Esta campanha foi um crescendo. O Partido Socialista foi-se afirmando, sozinho ou coligado. Estou bem. Vamos ver.”
Jornalista: “Se perder, será responsabilidade sua?”
“Naturalmente. Tomei as decisões que tomei e a partir daí estamos à espera, com tranquilidade e confiança. É sempre um dia de festa votar - e quanto mais gente votar mais viva está a democracia.”
No entanto, nada no cenário sugere festa. O lugar escolhido em nada tem que ver com o Hotel Marriot, onde está André Ventura, nem com o habitual Altis, nem tão pouco com o Epic Sana, onde está o grande concorrente da noite, Carlos Moedas. Ainda assim, o salão principal parece maior do que devia. As luzes brancas do teto deixam ver tudo - demasiado. O ambiente tem o nervosismo das horas que antecedem o inevitável: a espera.
Dentro da sala, duas mulheres observam o vaivém dos jornalistas. Chegaram cedo, ainda antes de as câmaras se alinharem. Sentaram-se juntas, de casaco ao ombro, como quem chega a um espetáculo que talvez não aconteça.
Odete tem 70 anos, vive em Alvalade "desde sempre". “Nós gostamos de desafios e este é um grande desafio para a cidade. A presidência do Moedas foi a pior. Lixo, desorganização, promessas por cumprir. Ele fala muito, mas concretiza pouco.”
A amiga Ana concorda. “A Alexandra é diferente - é uma mulher de fazer, não promete o mundo e o outro. É objetiva, pragmática. Diz o que acredita que pode cumprir e cumpre.”
Entre frases, as duas lembram o que viveram nas arruadas da campanha. “Ela é muito próxima, fala com toda a gente. As pessoas sentem-se ouvidas e isso faz diferença.”
Quando as sondagens surgem na televisão, não se impressionam. “Eu já não acredito nas sondagens”, desabafa Odete. “Da outra vez ninguém punha em causa que o Medina ganhava e perdeu.”
Ana ri-se. “É como no futebol: prognósticos só no fim.”
O tema que mais as divide é o acidente do Elevador da Glória. “Para algumas pessoas teve impacto”, admite Odete. “O Moedas disse que ia falar com as famílias, que a prioridade era estar com as pessoas, mas não foi verdade. Não falou com ninguém. Foi espetáculo.”
Ana, mais contida, relativiza. “Alguns acreditaram, outros não, mas acho que não teve tanto peso assim. As pessoas esquecem-se depressa.”
Odete não está convencida. “Eu conheci quem ia votar nele e mudou de ideias por causa disso. Disseram ‘grande aldrabão’. E eu percebo.”
As duas continuam a discutir, mas riem-se no fim, cúmplices, com a leveza de quem já viveu muitas derrotas e aprendeu a esperar.
Pelas 20h00, a sala começa a ganhar vida. Chegam jovens da Juventude Socialista, de portáteis no colo e bifanas na mão. Fazem refresh compulsivo à página que mostra os resultados provisórios.
“Empate técnico”, grita um.
“É o que se esperava”, considera David Pinto, militante da JS. “Fizemos uma boa campanha. Lisboa está como está, agora é esperar. Os lisboetas falarão.”
Entre os rostos novos na sala estão dois homens discretos, sentados junto a uma das poucas paredes do espaço. Observam tudo com curiosidade. Sajin Ahmed tem 29 anos, vive em Arroios há seis. Russell Mazumder tem 35 e mora em Santa Maria Maior. Vieram do Bangladesh “à procura de uma vida melhor” e encontraram nesta noite o seu lugar entre bandeiras socialistas.
“A Alexandra é boa pessoa para todos. Não só para imigrantes, para todos em Lisboa”, diz Sajin, entre pedidos de desculpa pelo seu português. “Carlos Moedas não fez nada. Quatro anos e os problemas continuam. A Alexandra tem pé firme. Tem solução.”
Com dificuldade, fala sobre habitação, limpeza, segurança. “É preciso mais polícia, mais cuidado na Rua do Benformoso”, diz. "Gostamos muito de Lisboa, das pessoas e da comida", sente a necessidade de acrescentar Russell.
Pelas 21h00 alguém comenta pelos corredores: “Já vi funerais mais animados.”
A noite é morna, quase silenciosa. As cadeiras vazias, as conversas em voz baixa: tudo indica que o desfecho está traçado.
Maria José, a amiga de longa data de Alexandra Leitão, está entusiasmada para que chegue a altura de lhe dar um abraço, "ganhe ou perca”.
“Mas se não ganhar, paciência. A Alexandra não precisa disto para viver. É professora, tem o seu trabalho, é uma mulher séria. Não precisa de tachos. Agora o Moedas não sei o que é que vai fazer. Admiro-me como é possível haver gente inteligente a votar nele. Uma pessoa que não falou com nenhuma das famílias das vítimas do elevador? Falta de empatia, de seriedade, de tudo.”
Fala depressa, num misto de raiva e afeto, e acaba por se comover ao descrever a amiga: “A Alexandra é uma mulher de garra. Quando traça um objetivo vai em linha reta. Não anda aos ziguezagues. É uma mulher de iniciativa e é isso que o Moedas não tem.”
O marido confirma com um sorriso. “Ela vai ficar, claro que vai. Vai fazer oposição. E boa oposição.”
Do outro lado da sala os jovens da Juventude Socialista começam a distribuir bandeiras. É uma tentativa de animar o ambiente. David Pinto, o mesmo que horas antes dizia estar confiante, passa entre as cadeiras oferecendo bandeiras vermelhas como quem distribui coragem.
“Vamos lá dar cor a isto, malta. Ainda não acabou.”
Mas já acabou, só que ninguém quer ser o primeiro a admiti-lo. As televisões mostram números cada vez menos simpáticos. No ecrã, os gráficos azuis crescem, os vermelhos encolhem.
“Já não ganhamos”, ouve-se num canto. “Isto está mau”, responde alguém.
Pelas 23h30 começam as apostas. Não sobre quem ganhou - esse assunto está praticamente fechado -, mas sobre quantos mandatos conseguirão em assembleias de freguesia.
“Dez? Onze?”. A conversa tem a leveza nervosa de quem se tenta distrair.
É 00h26. As bandeiras, agora erguidas, começam a ondular.
“ALEXANDRA! ALEXANDRA! ALEXANDRA!”
Que entra na sala com o rosto sereno. Sobe ao púlpito e olha para a multidão que ficou.
“Estou aqui para assumir a derrota nestas eleições autárquicas. Já tive oportunidade de transmitir ao engenheiro Carlos Moedas os parabéns e desejar-lhe boa sorte para o mandato que agora se inicia.”
As palavras são medidas, são firmes, os aplausos são sentidos - talvez por compaixão, talvez por respeito.
“Esta foi uma caminhada longa, bonita. Não me arrependo por um segundo de a ter feito. Em democracia é assim: quem ganha governa, quem perde faz oposição. E cá estarei para o fazer, com rigor.”
Entre o público, Maria José aplaude de pé. E quando o discurso termina, é das primeiras a correr para junto do palco. Cumpre a promessa e dá à amiga o abraço que anunciara horas antes.
“Demos tudo. Fizemos uma campanha do caraças", tranquiliza-a.
Pouco a pouco, a sala esvazia-se. Os jornalistas desmontam tripés, os militantes desligam computadores, os jovens dobram bandeiras ou deixam-nas simplesmente cair. No chão misturam-se cabos, copos de plástico e panfletos amarrotados. A noite termina como começou: sem espetáculo, sem música, apenas com a serenidade de quem aceita perder com dignidade.
Os últimos militantes despedem-se com abraços demorados, aqueles que só existem depois de uma derrota — mais sinceros, menos barulhentos. Há promessas ditas em voz baixa: “para a próxima estaremos melhor”, “isto não acaba aqui”. Ninguém quer ser o primeiro a sair, como se o ato de abandonar a sala fosse o gesto final de aceitação.
A televisão ainda está ligada, mas já sem som. As imagens correm em loop: o novo presidente eleito a sorrir, os comentadores a dissecar percentagens. Na legenda, a palavra “vitória” aparece várias vezes. Dentro da sala, a palavra “resistência” parece mais adequada.
E as bandeiras, essas, agora imóveis, ficaram esquecidas no chão e sobre as cadeiras, testemunhas silenciosas de uma noite em que a cidade escolheu outro rumo. De manhã alguém há de varrê-las.