O dia em que o ferrolho suíço derrotou a Alemanha nazi

9 jun 2014, 10:14

Num Mundial em vésperas da II Guerra Mundial, uma tática defensiva eliminou uma das seleções favoritas ao título

9 de junho de 1938. Num Mundial com apenas 15 equipas e uma fortíssima conotação política, a Alemanha era uma das maiores favoritas à vitória. Com reforços conseguidos de forma pouco ortodoxa e o Führer a querer usar o desporto para demonstrar a superioridade germânica, a pressão para vencer era muita. Mas a seleção alemã acabaria por cair logo na primeira eliminatória frente à modesta Suíça e ao ferrolho de Karl Rappan.

A propaganda nazi e o fim da Wunderteam

A pretensão de Hitler, mostrar a superioridade da raça ariana, mas sobretudo do povo germânico, através do desporto, começou com a ascensão dos nazis ao poder. A primeira grande tentativa foram os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, só que as coisas não correram como o Führer queria. Apesar de a Alemanha ter vencido mais medalhas, a afronta de ver atletas negros medalhados em Berlim ficou-lhe atravessada.

O Mundial de França de 1938 era nova oportunidade para mostrar o poderio dos atletas alemães. E, meses antes da prova, chegaram à equipa alemã reforços de peso, de uma das mais reputadas seleções europeias de então, quarta classificada no Mundial de 1934: a Wunderteam austríaca.



Com o Anschluss, a anexação da Áustria, a 12 março de 1938, a Alemanha integrou aquele país, e todos os símbolos nacionais austríacos deixaram de existir. O mesmo aconteceu à seleção nacional, que até já estava apurada para o Mundial de França. Foi o fim da Wunderteam.

A 3 de Abril realizou-se um último jogo entre Alemanha e Áustria para festejar a unificação. Foi o Anschlussspiel. O lema era “Ein Volk, ein Reich, ein Führer”- «Um Povo, um Império, um Líder»

Aos 70 minutos o jogo estava 0-0, e decorria numa toada morna, até que Mathias Sindelar, a principal estrela da Áustria, marcou o golo da equipa austríaca. E os festejos deste opositor ao regime nazi não podiam ser mais efusivos. Depois a Áustria começou a pressionar a Alemanha como não tinha feito até então. Karl Sesta marcou o segundo, dando a vitória aos austríacos, o que não era suposto acontecer -  apesar do lema politicamente correto do evento . Pior. Nos festejos da vitória, Sindelar ensaiou uns pézinhos de valsa dirigidos à tribuna dos dignatários alemães, que não esconderam o desagrado. Mas esta não foi a última ofensa de Mathias Sindelar ao regime nazi.

Com a anexação, o selecionador alemão Sepp Herberger tinha mais jogadores disponíveis para convocar para o Mundial e até um incentivo, para não dizer mesmo a obrigação, de o fazer. Isto, apesar de faltar muito pouco tempo para a prova. Assim, quatro austríacos que tinham estado presentes no mundial de 1934 - Josef Stroh, Franz Wagner, Willibaud Schmaus e Rudolf Raftl – passaram para a seleção alemã. A eles juntaram-se os compatriotas Wilhelm Hahnemann, Hans Pesser e Stefan Skoumal. Mas a principal estrela da Áustria, e uma das maiores da Europa, Mathias Sindelar, recusou-se. 

Boicotes e desistências num mundial com apenas 15 seleções

A competição em 1938 foi o último grande evento desportivo antes do início da II Guerra Mundial. O clima político na Europa já estava muito tenso, levando duas seleções a desistir do Mundial. Uma delas foi Espanha, a braços com a guerra civil. A outra, como já referimos, foi a Áustria, em resultado da anexação pela Alemanha, o que reduziu o número de participantes de 16 para 15. Mas a tabela não foi alterada. A Suécia, adversário dos austríacos na primeira fase, venceu por desistência e passou diretamente para os quartos de final.

Se hoje em dia as seleções lutam por um lugar na fase final, em 1938 foram várias as equipas a boicotar o Mundial. Inglaterra, numa querela com a FIFA, recusava-se a fazer parte de «um Campeonato do Mundo sem expressão». A Argentina, que concorreu a sede do Mundial, decidiu não participar, assim como Uruguai, Egito e Japão.

Na fase final estiveram então 15 seleções, apenas três não europeias: Brasil, Cuba e Índias Orientais Holandesas (hoje Indonésia). 

A grande potência cai no primeiro obstáculo

Tal com em 1934, o Mundial foi disputado no sistema de mata-mata. No dia 4 de junho, a Alemanha entrava em campo no estádio Parc des Princes, em Paris, para defrontar a modesta seleção da Suíça nos oitavos de final.

A formação helvética era treinada pelo austríaco Karl Rappan e as expectativas em relação à prestação dos suíços no Mundial eram baixas. O próprio selecionador sabia isso, implementando um sistema de jogo ultra-defensivo, que já lhe tinha permitido vencer cinco ligas com o Grasshoppers em oito temporadas.

Com jogadores fortes fisicamente, mas menos talentosos do que os rivais, Rappan defendia que a equipa devia posicionar-se toda atrás da linha de meio-campo, à espera do adversário. Atrás dos centrais jogava um libero e os extremos foram transformados em falsos laterais. O objectivo era reduzir os espaços do adversário quando este tinha a bola e evitar que esta se aproximasse demasiado da baliza. Rappan apostava nas recuperações a meio campo para depois lançar contra-ataques rápidos. Nasceu assim o «Ferrolho Suíço», prestes a fazer vítimas de peso.



Voltamos então ao Parc des Princes, em Paris, naquele 4 de junho de 1938. A Alemanha chegou ao golo ainda na primeira parte, por intermédio de Gauchel, mas a Suíça, em contra-ataque, fez o empate, com um golo de Abegglen, ainda no primeiro tempo. O ferrolho funcionava e o empate perdurou até aos 90. A igualdade manteve-se no prolongamento, o que obrigou à realização de um jogo desempate.

A 9 de junho as duas equipas voltam a entrar em campo. Favoritos à vitória do Mundial e com a pressão de representarem o III Reich, como o Führer queria, os jogadores alemães entraram determinados a abrir o ferrolho. Willy Hahnemann, um dos austríacos, fez o 1-0 logo aos 9 minutos e a Alemanha chegou ao 2-0 aos 22 minutos com um autogolo de Ernst Loertscher, o primeiro em fases finais de um Campeonato do Mundo.



Ainda no final da primeira parte, Wallaschek reduziu a desvantagem dos suíços. Apesar deste golo, ninguém esperava o que se passou na segunda parte. Um golo de Bickel e dois de Abbeglen, que tinha marcado no primeiro encontro, deram a vitória à Suíça por 4-2.


A grande Alemanha, a seleção do III Reich, caiu perante um modesto adversário logo nos oitavos de final de uma competição que o  Führer considerava essencial ganhar. Hitler não estava em França nesse dia. Terá acompanhado parte do jogo pela rádio. O resultado final chegou-lhe pelo telégrafo e a reação à derrota do homem que não gostava de perder foi privada.


O Mundial viria a ser ganho pela Itália, seleção que não tinha menos pressão. Na véspera da final, Mussolini terá enviado um telegrama aos jogadores com a mensagem: «Vencer ou morrer». No fim do encontro, o guarda-redes adversário, disse mesmo: «Salvámos a vida a 11 homens».

A Suíça ficou pelo caminho nos quartos de final ao  perder por 2-0 com a Hungria, mas o feito de afastar a Alemanha ficou para a História.

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