EDUCAÇÃO | ENTREVISTA || Professor de Educação Especial, antigo presidente da Associação Pró-Inclusão, conselheiro do Conselho Nacional de Educação, David Rodrigues faz uma análise da evolução da escola pública em Portugal e do que ainda falta fazer. Em conversa com a CNN Portugal, elogia o trabalho que tem sido feito nos últimos 50 anos e deixa um pedido ao próximo ministro da Educação: "Espero que procure diminuir este esforço entre o que nós sabemos que é correto e aquilo que nós fazemos para ser correto"
David Rodrigues garante que a Educação continua a ser hoje, em 2025, a estratégia mais fiável, não só para a promoção social, mas para a paz e para o entendimento que temos do mundo. "Reside na Educação a nossa grande esperança de promoção da paz, de promoção da equidade e da promoção de um mundo melhor", sublinha.
Que problemas identifica na escola pública em Portugal?
Os problemas que temos não são problemas só portugueses. A grande parte deles é na Educação enquanto uma estrutura ao nível mundial.
Toda a Educação passa, neste momento, em todo o mundo, por questões de alteração de valores. Há autores que chamam metamorfose. Dizem que estamos numa altura de metamorfose ao nível da Educação. Isso é provocado pelo facto de a escola ter deixado a sua vocação mais evidente, que é a transmissão da informação. As tecnologias permitiram percebermos que a informação continua a ser algo que tem alguma coisa a ver com a escola, mas a grande maioria da informação é veiculada através das tecnologias. É uma das grandes revoluções que se está a passar debaixo dos nossos olhos. As tecnologias assumiram um bocadinho esse papel de transmissão de conhecimento.
É perigoso?
Sem dúvida.
Os nossos alunos terão literacia suficiente para filtrar essa informação?
Isso entraria na parte das possibilidades da escola. Estávamos a falar das dificuldades. E uma segunda dificuldade tem a ver com uma explosão que tivemos ao nível do que são os direitos das pessoas. E talvez uma situação em que os deveres não ficaram ao mesmo nível dos direitos. E isto leva a que muitas pessoas, quando chegam à escola, acham que têm direito disto, direito daquilo, direito do direito.
Está a falar do ponto de vista do aluno, da família?
Estou a falar do ponto de vista dos alunos, das famílias, dos próprios professores. Toda a gente tem direitos. E bem! Só que o problema é que, muitas vezes, esses direitos acabam por se sobrepor às questões dos deveres. Isto é, do dever de encontrar uma vida em comum, do dever de cooperar, do dever de se solidarizar com os outros.
E como é que a Educação se deve posicionar nesse mundo em mudança?
A Escola tem de encontrar, nessa metamorfose, essa nova vocação da Educação, que tem a ver ao nível da informação, com esse aspeto de procurarmos criar um aporte crítico em relação à informação. Saber pesquisar e ser crítico em relação à informação que recebemos. Aquela velha questão da diferença entre a informação e o conhecimento. A escola continua a ter de estar mais ligada a encontrar o conhecimento, a encontrar um espírito crítico, a encontrar um tipo de participação social.
Encontrar ou transmitir?
Não, o termo não é transmitir, é encontrar mesmo. Porque transmitir significa que ele já estava noutro sítio qualquer e eu só tenho de o transmitir. Encontrar quer dizer que o que vamos encontrar é diferente de tudo o que tinha encontrado antes. Qual é o equilíbrio que tenho com aquelas crianças, com aquela escola, com aquele município, com aqueles pais, o que é que vou encontrar aí neste equilíbrio entre a informação e o conhecimento?
A própria escola, os próprios professores têm de se encontrar nessa transformação?
Sem dúvida.
Se eles não se encontrarem, continua a ser despejar a informação em cima dos alunos. E encontrar o conhecimento significa que é qualquer coisa de mais situado, mais contextualizado, mais encarnado do que é a situação concreta dos alunos.
Outra potencialidade da escola é como é que podemos tornar a escola realmente uma sede de direitos humanos, uma sede de consideração, uma sede, de certa maneira, de respeito pela diversidade de todos os alunos. E esse respeito manifesta-se através dos deveres. Só tenho respeito quando assumo deveres em relação a outra pessoa. Porque direitos toda a gente tem, mas respeito a sério é quando encaro para mim próprio o dever de respeitar, de considerar, de valorizar a outra pessoa.
Quando coloca a questão dessa forma, parece-me, de facto estar a falar de valores universais…
Há aquele relatório da Unesco de 2022, o Reimagining Our Futures Together (Reimaginar os Nossos Futuros Juntos), que nos diz exatamente isso. Diz-nos que precisamos de um novo contrato social para a Educação a um nível internacional. Quando pensamos na Educação portuguesa, temos de pensar que estamos no meio de um oceano, onde também há estes problemas.
Mas há particularidades da Educação em Portugal…
Sim. Temos algumas particularidades para além destas. Uma das particularidades é o facto de a nossa Educação ainda ter marcas do antes de 25 de Abril. Vou dar-lhe um exemplo: Em dezembro de 2024, foi publicado um relatório sobre a escolaridade dos adultos em Portugal, dos 16 aos 65 anos. E constatámos que a nossa escolaridade e o nosso conhecimento são paupérrimos. Estamos no fundo da tabela dos países europeus. E isto obviamente é um problema para a nossa Educação. Porquê? Porque, talvez muitas famílias portuguesas não consideram e não valorizam tanto a Educação quanto famílias de outros países.
Temos uma Educação que é progressivamente mais exigente, mas que se desenvolve no meio de famílias que têm um nível de escolarização bastante baixo e talvez, não afirmo isto, mas talvez, façam um investimento mais pequeno na Educação.
E a escola em si, não tem fragilidades?
Claro. Encontramos fragilidades da própria escola. A nossa escola evoluiu muitíssimo bem, muito rapidamente desde o 25 de Abril de 74. Só para lembrar, antes do 25 de Abril, tínhamos 30% de analfabetos, que é uma coisa assustadora, com uma variável de género muito acentuada. Hoje, temos 51% de pessoas com 18 anos no Ensino Superior. Isto faz muita diferença. Foi uma evolução rápida, foi fulgurante, só que também tem os seus custos.
E essas fragilidades prendem-se com a falta de professores, a burocracia, a indisciplina, a falta de autoridade do professor dentro da sala de aula?
Não necessariamente. Estava a falar sobre a questão da fraqueza da estrutura educacional em si própria. Mas temos todas essas questões de que falou, que são questões mais a curto prazo, que já se passaram depois da nossa Revolução. E também são questões que são muito prevalentes ao nível internacional. Essas questões sobre a indisciplina, sobre o desafio à autoridade do professor, do bullying nas escolas, tudo isso também são questões transversais. Mas são questões cujas origens não só são múltiplas, mas intersectoriais. Provêm de vários fatores que, por sua vez, se interlaçam uns com os outros.
Como é que trazemos as famílias para as escolas?
É uma pergunta que precisamos fazer. Em primeiro lugar, é muito importante que a escola se aproxime ativamente dos pais. Muitas vezes encontramo-nos numa situação como se fosse um casal de namorados, que passam a vida a ver quem é que vai dar o primeiro passo, quem é que me vai pegar na mão pela primeira vez. Para mim, em termos de namoro entre a escola e os pais é muito claro: é a escola que pega na mão dos pais.
Faz parte do código de intervenção da escola, uma participação ativa dos pais. E não vale a pena dizer que os pais não podem, não querem… A nossa escola é que tem de insistir, ‘re-insistir’, ‘tri-insistir’, o que for preciso para que os pais venham. Não os podemos obrigar. Mas temos de insistir e fazer o melhor que conseguirmos para trazer os pais para a escola.
Geralmente, se os pais são chamados à escola, é mau sinal…
Essa é outra questão! Temos de chamar os pais para a escola para alguma coisa que acreditemos que é bom. Não podemos chamar os pais à escola só para dizer que os filhos estão cada vez piores, que se passou isto ou aquilo e que um menino deu um murro no outro. Precisamos que a escola convide os pais para uma participação humana. E humana quer dizer que os pais têm a oportunidade de ouvir coisas fantásticas sobre os filhos.
Obviamente também pode haver coisas para discutir, dificuldades, mas sobretudo é preciso chamar os pais à escola por qualquer coisa que os pais possam sentir que vale a pena, para verem que os filhos estão a progredir, que a escola está a ser positiva para eles. É preciso tornarmos os pais em advogados da escola, advogados de defesa da escola. Para isso, precisamos de nos relacionar com eles.
Mas as escolas estão a fazer um bom trabalho, certo?
De maneira geral, o que as escolas estão a fazer é fantástico, em situações por vezes muito difíceis. Mas também temos escolas cujas dificuldades não são estruturais, mas também são dificuldades muito conjunturais. Depende muito de qual é a gestão que a escola tem, de qual é o projeto que a escola tem… E isso faz muita diferença.
O atual ministro prometeu mexer no modelo de eleição do diretor da escola. É uma reclamação dos professores há muito tempo. Sabemos que este ministro dificilmente pode cumprir essa promessa e também não disse como pretendia fazê-lo. Mas como é que se poderia mexer nessa questão?
Temos uma forma de funcionamento em Portugal, que, na minha perspetiva, é mais interessante do que o que se passa noutros países. Por exemplo, noutros países existe a carreira de diretor. A pessoa faz um curso de diretor e é diretor toda a vida. Em Portugal, temos professores que são diretores, mas que depois, muitas vezes, voltam a ser professores. E isto terá, obviamente, as suas vantagens e os seus inconvenientes. Vantagens, obviamente, porque são pessoas que conhecerão melhor os problemas pedagógicos do dia-a-dia das escolas, porque já estiveram do outro lado do muro. Os inconvenientes é que são pessoas que muitas vezes estão menos familiarizadas com os procedimentos de gestão de uma escola.
Gostaria de ver qual é a evolução que isto vai ter. Mas, de maneira geral, vejo como positivo o modelo que temos de ser uma pessoa que pode fazer este trânsito entre ser professor e ser diretor.
Portanto, não vê com bons olhos a carreira de diretor?
Não. Sinceramente, não.
Como é que o antigo presidente da Associação Pro Inclusão olha para situações como a da escola do Monte da Caparica, em que professores e assistentes operacionais apresentaram escusa de responsabilidades porque, diante das condições que têm, não se sentem capazes de garantir a própria segurança, a segurança das crianças?
A inclusão, claramente, é um valor muito difícil de desenvolver na escola. É um valor muito próximo do que podemos pensar que é a cooperação, a fraternidade, etc. É um valor muito difícil que andamos há muitos milhares de anos a procurar desenvolver nas nossas sociedades. E pensar numa sociedade inclusiva, quando estamos num mundo em guerra, num mundo que ficou mais desigual depois do Covid-19, quando pensamos em todos os problemas do mundo… parece que estamos a pensar ao contrário. Todo o mundo está a ir num sentido e nós estamos a pensar que o que é bom é a inclusão.
É natural que a inclusão tenha as suas dificuldades, porque a inclusão desenvolve-se num contexto de grandes dificuldades a nível mundial.
Outra questão mais específica é essa que me está a colocar. Temos um modelo em Portugal em que consideramos que era positivo que todas as crianças estivessem na mesma escola. É um modelo com o qual concordo, pelo qual tenho batalhado e que tem, obviamente, as suas dificuldades. E uma das dificuldades que é mais comum na inclusão é a questão dos recursos.
Diria também que o facto de vivermos com poucos recursos é uma opção. Porque, se ao invés de termos 811 agrupamentos (que são os agrupamentos que existem em Portugal e que todos eles são inclusivos), optasse por ter 50 escolas de ensino especial, não teria problemas de recursos.
Mas não haveria verdadeira inclusão…
Aí é que está a questão fundamental. É a opção que fiz em relação à inclusão. E digo: a inclusão é mais importante, a inclusão em si própria é um recurso. Porque se fizesse as 50 escolas especiais, tinha recursos suficientes, só que me faltava a inclusão.
Mas as crianças estariam melhor nessas 50 escolas?
Claro que não. Mas isto é uma resposta que precisamos todos de dar. E dizermos que, apesar de termos problemas com recursos, problemas com a formação dos professores, apesar de termos um conjunto de problemas, optamos pela inclusão. Apesar de todas estas dificuldades.
Quando falamos de inclusão, atualmente, já não estamos a falar só das crianças com necessidades educativas. Temos a inclusão das crianças migrantes, por exemplo. Temos muitas escolas onde, no recreio, se falam 40 línguas diferentes.
É verdade. Mas deixe-me desafiar a sua ideia de inclusão. A inclusão não é só para as pessoas que têm dificuldades. A inclusão é para todos. Porque se restringir a inclusão a pessoas com dificuldades, a inclusão vai ser remediativa, vai ser como se fosse um penso que ponho numa ferida. A inclusão é um valor que é tão útil para alunos que são sobredotados, como para alunos que vão muito bem na escola, como para alunos que têm dificuldades. A inclusão é um valor transversal, ainda que nós, às vezes, tenhamos a tendência de olhar para a inclusão mais para alunos com dificuldades. A inclusão é um valor transversal da escola. Que beneficia todos. Tal como os direitos humanos, tal como a fraternidade, como a cooperação, como a equidade, como o combate à desigualdade. Um menino que tem um excelente desempenho académico precisa tanto de inclusão como um com dificuldades.
A escola pública é verdadeiramente inclusiva em Portugal. Se não é, o que é que lhe falta?
A inclusão não é. A inclusão tem de ser. A inclusão é um valor ou não. A questão fundamental é não olharmos para a inclusão como se fosse uma coisa que se tem ou que se é.
Quando me pergunta se as escolas públicas em Portugal são inclusivas? Posso lhe responder, “sim, são inclusivas porque têm um valor da inclusão”. Esse valor é um valor prevalente. Se você tiver um filho com dificuldades, não vai precisar de procurar uma escola inclusiva, vai procurar a escola que está no seu bairro, a escola que está ao lado e sua casa.
Não podemos dar esse valor por adquirido e temos de cultivar e construir permanentemente…
Construir e lutar. Lutar permanentemente. Lutar por recursos, lutar por formação, lutar por melhores condições, que muitas vezes não encontramos nas escolas e precisamos continuar a lutar por todos.
Agora, uma coisa é achar que a inclusão é qualquer coisa que tem de ser perfeita ou saber que tenho de trabalhar nas imperfeições daquilo que é um serviço público universal e gratuito para todas as pessoas.
E a escola pública é equitativa?
Claro que não. Mas, mais uma vez, é um trabalho em progresso. Continua a ser um trabalho que estamos a desenvolver. A nossa escola fez grandes avanços em termos de equidade. Eu, que sou “do tempo de outra senhora”, sei bem o que estou a dizer. Fizemos grandes avanços em termos de equidade, mas continuamos a precisar de fazer mais. Precisamos, por exemplo, que os fatores socioeconómicos não sejam determinantes para o prosseguimento de estudos, por exemplo. Precisamos que os fatores socioeconómicos e socioculturais não sejam determinantes para o sucesso académico. Infelizmente, continuamos a ver que existe uma prevalência enorme de fatores socioeconómicos e socioculturais no percurso académico dos alunos. Portugal, inclusivamente, é dos países da Europa onde as dificuldades socioeconómicas mais influenciam o percurso dos alunos.
A nossa escola está no caminho da equidade.
Mas a escola pública continua a ser o único degrau social que as famílias mais pobres têm?
Sem dúvida. Acho quase irónico como as pessoas desvalorizam a Educação. A Educação continua a ser hoje, em 2025, a estratégia mais fiável que temos, não só para a promoção social, mas para a paz e para o entendimento que temos do mundo. Reside na Educação a nossa grande esperança de promoção da paz, de promoção da equidade e da promoção de um mundo melhor.
Nós sociedade ou nós governo?
Governo, claro.
Os últimos governos, têm colocado em prática políticas educativas de qualidade que valorizam a escola pública?
Há uma evolução na Educação que se passa há muitos anos. Há pouco tempo estive num debate com vários ministros da Educação e é muito interessante ver que cada um deles tem um interesse particular. Um desenvolveu mais a questão do Ensino Profissional, outro desenvolveu mais as questões do pré-primário… todos eles, digamos, se gabam de ter feito alguma coisa relevante. Nós temos de ter esta visão de conjunto. Há muitos anos que temos um percurso de progresso. Muito diferente, por exemplo, do que se está a passar em países onde, atualmente, a Educação está a ter um retrocesso, como em Itália, como na Argentina, ou nos Estados Unidos, em que o presidente Trump anulou o Departamento de Educação Central.
Falava em particular, talvez, dos oito anos do Governo socialista em que tivemos várias decisões que foram bastante determinantes: as questões da política de inclusão, as questões das aprendizagens essenciais, as questões do perfil do aluno à saída, da escolaridade obrigatória…
Infelizmente, este ministro, o mais recente, só esteve um ano e não teve muito tempo para resolver grandes questões. Houve uma questão que ele resolveu e que foi muito importante, que foi a pacificação da situação salarial dos professores, que foi muito importante e devia ter sido feita há mais tempo.
E o que podemos esperar ou o que devíamos esperar do próximo ministro da Educação?
O que esperaria de um próximo ministro da Educação era que ele - ou ela - conseguisse levar à prática muitas das questões que achamos que são valores da Educação e que causam desníveis.
Espero que o ministro, o Ministério todo, procure diminuir este esforço entre o que sabemos que é correto e aquilo que fazemos para ser correto. E isso é extremamente importante no que respeita, por exemplo, à questão dos recursos nas escolas, à questão da valorização dos professores, à questão dos programas, ao ambiente escolar. Há muitas coisas para fazer, mas muitas coisas que já são feitas. Não é preciso inventar. Temos coisas em Portugal que são de referência a nível internacional. O nosso sistema inclusivo é visto pela Unesco como sendo uma referência mundial. A nossa formação de professores, que vem de baixo para cima, pelos centros de formação dos equipamentos de escolas, é uma referência internacional. Temos muitas coisas fantásticas.
No entanto, queixamo-nos da falta de formação de professores...
Da inicial. Não da permanente. Precisamos de valorizar mais a carreira de professor para que mais jovens optem por ela. E precisamos, obviamente, de desenvolver também apoios nas escolas, para que as escolas sejam capazes de concretizar aquilo para que foram criadas, que é basicamente para que as pessoas aprendam, participem e sejam cidadãos.
Voltemos atrás e falemos da questão da digitalização. Como é que vê esta questão da digitalização das escolas, das provas digitais, dos manuais digitais?
O facto de as provas serem feitas digitalmente creio que é uma chamada unanimidade nacional. Todos estão de acordo com isso, não é? Houve questões há algum tempo sobre nem todos os alunos terem os equipamentos, nem terem o conhecimento suficiente para fazer isso, mas espero que tenhamos já avançado sobre isso.
É mais um “work in progress”, uma expressão que tem usado nesta conversa?
Sempre será, mas atualmente faz parte do estrito pacote de competências de um aluno poder responder a uma prova em termos digitais. Os nossos alunos são incomensuravelmente mais competentes agora para trabalhar com tecnologias e é uma questão que, inclusivamente, poderá facilitar depois a avaliação. Portanto, concordo que essas provas sejam feitas de forma digital e que os obstáculos têm de ser rapidamente removidos.
Mas, com esta digitalização progressiva da Educação, não se perde aqui aquela questão de desenvolver outras competências nas crianças?
Sei onde quer chegar. Sem dúvida que sim e valorizo muito a questão da mão, da manualidade. Todos temos formas diferentes de escrever. Quando queremos escrever certas coisas preferimos o computador e quando queremos escrever outras preferimos escrever à mão. Porque a mão está muito ligada às questões emocionais, às questões afetivas, às questões do desenho. Aliás, foi há pouco tempo publicado um estudo que mostrava que, cada vez que tomo notas manuais, isso origina uma maior retenção. Mas não estamos a falar da mesma coisa, estamos a falar das provas.
Das provas e dos manuais?
Pois, isso tenho dúvidas. Não ficaria confortável com uma escola que fosse completamente digital. É preciso valorizar o escrever, é preciso valorizar o ler em papel. Porque o facto não ter o digital por suporte é uma perspetiva mais ativa em relação à aprendizagem. É quase como se tivesse de fazer algum pequeno esforço, não só para desenhar, desenhar as letras, mas também para entender, para planear aquilo que estou a fazer.
Falemos agora então dos programas curriculares. Os professores queixam-se sempre que não os conseguem cumprir, que estão desfasados da realidade das escolas…
A verdade é que cada vez que se fala de uma reforma curricular, toda a gente diz que não precisa de uma reforma curricular, que é preciso acrescentar mais umas coisas. E os programas são sempre acrescentados. Temos de deixar de pensar que o currículo tem de funcionar por adição. O currículo tem de funcionar por coordenação de saberes, basicamente o currículo é uma coordenação de saberes e não uma adição de saberes.
Vejo com muito interesse que falemos hoje em aprendizagens essenciais e não em metas curriculares. Metas curriculares tem a ver que termos aquela fasquia do que é o currículo e vamos ver quem é que consegue saltar por cima daquela fasquia que está altíssima. Outra coisa é ter o conceito de aprendizagens essenciais, saber o que é realmente importante, o que é que é fundamental. E depois dar a liberdade para quem quiser saltar mais alto.
Precisamos de um currículo que venha de cima para baixo, mas também de um currículo que se inspire muito nos interesses, nos sonhos, nas competências dos alunos.
Isso leva-me a outra questão: falta autonomia às escolas?
Não falta. As escolas utilizam mal a autonomia que têm. É preciso, antes de mais, que as escolas usem a autonomia que têm. O que preciso não é de ir fazer compras antes de ter aberto o frigorífico. Quando abro o frigorífico, descubro que não preciso ir às compras.
A autonomia, para mim, é um valor importantíssimo. Sabe porquê? Porque a autonomia se radica num outro valor que é fundamental para a Educação, chamado confiança. Ter autonomia significa que o Ministério de Educação tem confiança em mim, no meu grupo de professores, no meu agrupamento.
Eles sabem que até podemos fazer asneiras, mas que estamos a fazer o melhor que podemos e o melhor que sabemos. Isto significa confiança. Não pode haver boa Educação sem confiança.
Falemos também do número de alunos por turma. Isso influencia ou não as aprendizagens?
Portugal é dos países da OCDE que têm o número mais baixo de alunos por turma, sabia? E cerca de 50% das nossas turmas não têm sequer o número limite.
Se me perguntar, ‘é diferente ter uma turma de 10 alunos e uma turma de 30?’ Claro que é. Mas posso trabalhar com 10 alunos como se eles fossem 30. E posso trabalhar com 30 como se fossem 10.
Portanto, não acha que as nossas turmas tenham alunos a mais?
Posto assim, é uma questão difícil de responder. Se os professores dizem que são a mais, é porque eventualmente são a mais. Para as possibilidades que eles têm, eles interpretam que isso é uma das dificuldades que têm.
Agora, penso que é muito importante, quando pensamos no número de alunos por turma, pensarmos nesta questão de o que é que eu faço com eles. Isto é: como é que organizo a aprendizagem dos alunos de maneira que possa personalizar melhor a aprendizagem. Em lugar de pensar que sou eu e 30 alunos, posso pensar que sou eu e seis grupos de cinco, ou cinco grupos de seis. Isto já é diferente.
Há um trabalho a desenvolver por todos, há um trabalho de formação, um trabalho de cooperação nas escolas, para nos ajudar também a funcionar de uma forma mais personalizada. Agora, não diria que, à partida… à partida… o número de alunos por turma em Portugal seja um problema.
O que é que faz uma boa escola?
Uma boa escola, antes de mais, tem de ter uma perspetiva emocional, uma perspetiva afetiva. É muito importante que a escola seja um lugar de acolhimento. Há um filósofo francês, o Derrida, que fala da escola como uma estrutura hospitaleira, que acolhe as pessoas. Que a pessoa chega à escola e sente-se bem acolhida. Sente-se valorizada sempre que ela faz alguma coisa.
Temos dificuldades em fazer isto com toda a gente e sempre, sem dúvida. Mas nunca nos devemos esquecer que a escola tem de fazer isto. Tem de ser uma estrutura que acolha, que abrace os alunos.
Uma segunda questão que a escola tem de fazer é dar um retorno frequente e competente à aprendizagem dos alunos.
Terceiro, precisamos de uma escola que seja rica. Rica em conhecimento, rica em oportunidades, rica em projetos, rica em alternativa, rica em culturas. Precisamos que a escola seja o Alibaba, a caverna do Alibaba, em termos culturais e em termos de conhecimento. A escola tem de ser uma estrutura estimulante, uma estrutura em que a pessoa, quando entra, sinta que a escola faz diferença. A escola tem de ser como se fosse uma caverna de tesouros ao nível do conhecimento.
E o quarto aspeto, que é muito importante, é a escola trabalhar em termos de um projeto comum, de um projeto de fraternidade. Fraternidade quer dizer de conhecimento, de aceitação, de promoção de todas as culturas. Que ninguém seja desvalorizado na escola por ser menina, ou por ser menino, ou por ser indiano, ou por ser de Trás-os-Montes, ou por falar com o acento de Viseu, ou por falar com o acento de Beja. Que ninguém seja desvalorizado na escola e que a escola consiga desenvolver esta ideia de que todos somos importantes e que ninguém tem o direito de se sentir mais importante e mais essencial que qualquer outra pessoa.