opinião
Economista e Professor Universitário

Para algumas economias da Zona Euro, a miséria social parece ser uma inevitabilidade “não negociável”

25 mar 2023, 16:36

A narrativa da presidente do Banco Central Europeu torna-se, a cada dia, mais inflamada, mais intimidatória e até mais ameaçadora

Depois de os recentes episódios com alguns bancos norte-americanos e europeus, tudo apontava para um abrandamento na escalada dos juros diretores do BCE. No entanto, para espanto de todos, a subida anunciada por Lagarde a 16 de março foi, uma vez mais, musculada e desproporcional.

E esta posição do BCE, já de si surpreendente por se revelar contrária à esperada, não bastou a Christine Lagarde. Na senda do que tem vindo a ocorrer nos últimos tempos, a presidente do Banco Central Europeu não hesitou em radicalizar ainda mais o seu discurso, chegando mesmo a desvalorizar indiretamente o sofrimento e a indignidade humana, ao referir, com fervor, que a meta de 2% de inflação na zona Euro é “não negociável”.

“As taxas de juro vão continuar a aumentar muito e durante um longo período, talvez dois anos até a inflação regressar a 2%”, reforçou Lagarde.

“Os apoios dos governos às famílias e empresas por causa da crise energética e inflacionista têm de ser terminados imediatamente”, advertiu a presidente do BCE.

"As medidas que não sigam estes princípios podem intensificar as pressões inflacionistas a médio prazo, exigindo uma resposta mais forte da política monetária”, avisou, em tom ameaçador, Christine Lagarde.

Hoje, mais do que nunca, precisamos de Estados-Membros com nervos de aço, que não cedam a uma chantagem sem precedentes levada a cabo por um Presidente do Banco Central Europeu. O objetivo dos 2% soa a ambição pessoal. Trespassa a ideia de que não se olha a meios para atingir fins.

Mas é de seres humanos que se trata...

Segundo um estudo relativamente recente da Aximage, são já muitas as pessoas que se viram forçadas a introduzir alterações significativas nas suas rotinas alimentares. Algumas tiveram mesmo de cortar o consumo de alguns alimentos considerados essenciais. E a situação tem vindo a deteriorar-se de dia para dia.

Não devemos esquecer que os cidadãos europeus com um padrão de vida idêntico ao dos portugueses não chegam a pressionar mercados de bens e serviços não essenciais. Em Portugal, onde o rendimento médio do trabalho é um dos mais baixos da Europa, o consumo das famílias cinge-se ao cabaz de bens estritamente indispensáveis.

Continuar a aumentar drasticamente os juros diretores do BCE em nome de uma meta “não negociável” de 2% para a inflação na Zona Euro, é contribuir para aumentar, e muito, a miséria social em países como Portugal.

A política monetária “ultracontracionista” deve descer um degrau. Deve dispensar o prefixo “ultra”. É que não havendo prudência no aperto monetário, as consequências serão, decerto, perversas. A solução utilizada para resolver a crise inflacionária acabará por criar um problema económico e social ainda maior. Abrir-se-á a porta à recessão e ao desemprego. E a probabilidade de este quadro se concretizar está muito longe de ser nula. Não é isto, seguramente, que se espera de uma Presidente de um Banco Central.

Por isso, sublinha-se como positivo o pacote de medidas apresentado pelo Estado para apoiar os setores da sociedade portuguesa mais afetados pela crise inflacionária. Recorde-se que o anúncio do governo foi feito imediatamente após as firmes advertências de Lagarde.

Até podemos admitir que o pacote de medidas apresentado peca por deficitário, mas o seu anúncio acabou por revelar, pelo menos neste caso, que o Estado português também sabe ter nervos de aço.

Colunistas

Mais Colunistas

Patrocinados