Como voltar ao Casal Ventoso. Nunca houve tanta droga na rua e isso traz "mais violência e ameaças"

30 mai 2024, 08:00
Cocaína (Lusa/Luís Forra)

É um problema mundial, mas Portugal está a tornar-se uma porta de entrada mais apetecível para as estruturas logísticas. Isso origina guerras e aumenta a violência dos gangues

Recordes nas apreensões de droga. Mais substâncias a circular. Mais pessoas a consumir. Há um excesso de produto e o tráfico voltou a ser um negócio muito rentável. “É um problema no contexto mundial. Isto não é só cá. Nunca houve tantas drogas disponíveis, tanta gente a usar drogas. Portanto, isto é um fenómeno avassalador. Temos de encontrar a forma de ser eficazes”, afirma à CNN Portugal João Goulão, presidente do Conselho Diretivo do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD) e também médico.

Apesar de ainda não haver dados estatísticos que apontem uma subida do consumo, as apreensões feitas pelas autoridades são a prova de que há muitas substâncias ilícitas a circular. De acordo com o último relatório da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefaciente da Polícia Judiciária, que reúne dados de todas as forças, em 2023 bateram-se recordes nas apreensões de canábis - 37,9 toneladas - e de cocaína - 21,7 toneladas. Tal como, a apreensão de ecstasy, com uma subida de 47%. Apenas a heroína apresentou uma redução de 43%.

“Há um problema com a droga, mais ou menos mundial, que é um superavit de produção resultante da pandemia. Ou seja, a pandemia fez um blackout. O mundo parou de alguma forma. Parou em termos de comunicações. Deixou de haver aviões, deixou de haver viagens. Portanto, uma quebra nos circuitos normais, mas a produção continuou. Então há um excesso de droga que precisam de fazer escoar”, explica à CNN Portugal uma fonte da Polícia Judiciária.

E daqui os problemas multiplicam-se. “Havendo excesso de droga e havendo necessidade de escoar há mais guerras entre aqueles que querem fazer os cartéis. Há mais violência, mais ameaças. Ou seja, o tráfico de droga deixou de ser o crime do antigamente que pensávamos que já tinha ficado lá para trás”, diz a mesma fonte.

“Eles ganharam um novo peso outra vez. A droga tornou-se, de novo, um crime atual e um crime extraordinário”, acrescenta esta fonte da PJ, lembrando ainda um episódio recente, que foi divulgado pelas autoridades, em que “um conjunto de pessoas, com questões ligadas à droga, vieram cá tentar matar outras pessoas. Vieram da Suécia para ajustar contas com portugueses”.

E não nos podemos esquecer que “o objetivo da droga é sempre económico. Há quem diga que o custo da droga no consumidor são 97% de todos custos de comercialização e 3% de produção. Ou seja, é só lucro. E é de tal ordem que faz com que o fenómeno continue a proliferar”.

"Aquilo que nós vemos é realmente uma realidade que parecia ter ficado lá atrás"

Apesar da ausência de estatísticas, João Goulão diz que o aumento do consumo “constata-se a olho nu. A visibilidade de pessoas muito desorganizadas no espaço público. É como se voltássemos um pouco atrás aqui”.

“Aquilo que nós vemos é uma realidade que parecia ter ficado lá atrás, no tempo do Casal Ventoso, nos idos anos noventa”, recorda o médico. Mas no Porto, os relatos de tráfico e consumo a céu aberto também voltaram.

Além disso, há novas substâncias a ganhar força. A produção de heroína diminuiu no Afeganistão, o maior produtor mundial, mas isso significa que “novos opiáceos são lançados para o mercado”.

E é por isso que o presidente do ICAD admite: “Agora, aquilo que nos preocupa sobremaneira é o aparecimento de novos opiáceos de síntese que ainda não têm uma grande expressão na nossa na realidade”. Todavia, se formos “para os Estados Unidos e para o Canadá e temos o Fentanil a devastar aquelas populações. E, entretanto, já há novos opiáceos de síntese a serem lançados. Na verdade, já foi feita uma apreensão significativa em Portugal. Portanto, há aqui novos desafios pela frente”. 

João Goulão considera que as autoridades são cada vez “mais eficazes”, mas lembra que não sabemos que percentagem do total de substâncias representam “as grandes quantidades que vão sendo apreendidas”. Ou seja, o que escapa e entra no mercado será uma quantidade muito maior.

E se a pandemia levou a um excesso de produto, também não será indiferente a este possível aumento de consumo segundo o médico: “Eu acredito que possa haver aqui uma ligação. A pandemia teve um impacto na saúde mental da população, genericamente considerada, e penso que pode ser um dos fatores”. Até porque se nas drogas ainda não existem estudos, no caso do álcool “há, objetivamente, um aumento dos consumos”.

"Algumas das estruturas logísticas começaram a preferir a costa portuguesa"

No início de abril, uma lancha voadora de tráfico de droga foi intercetada pela GNR numa perseguição a alta velocidade em pleno rio Tejo, junto a Belém. Segundo a informação que a TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) apurou, na altura, a lancha serviria de apoio a uma organização criminosa de tráfico de droga internacional. Este foi um caso inédito no rio que banha a capital.

Mas há muito que se viu surgirem estas lanchas junto à costa portuguesa. Há novas rotas para o tráfico de droga, mas não só. “As lanchas rápidas não são penalizadas cá e em Espanha são. Aqui só são penalizadas se tiverem droga lá dentro. Se não tiver droga lá dentro não constitui crime”, explica à CNN Portugal a mesma fonte da Polícia Judiciária.

Desde 2018 que Espanha criminalizou a posse de lanchas de alta velocidade. Esse também será um dos motivos da maior procura por Portugal, onde também existem fábricas já sinalizadas, que produzem estas embarcações.

“Em Espanha as lanchas rápidas constituem um instrumento de execução do crime de tráfico de estupefacientes, portanto, quer tenham droga quer não tenham, quem estiver com uma lancha rápida pode ser detido em fragrante delito”, esclarece a mesma fonte. “Toda a sociedade sabe que as lanchas rápidas só se destinam a transportes a grande velocidade. Não é para ninguém andar à pesca, nem fazer turismo, nem fazer viagens”, conclui.

Em fevereiro, o semanário Expresso noticiou que estava concluído um diploma, que um grupo de trabalho informal tinha estado a desenvolver para, precisamente, uniformizar as políticas de combate ao tráfico na Península Ibérica. Segundo a resposta enviada ao Expresso pelo Ministério da Justiça a ideia era “uma proposta legislativa, que robustecesse o ordenamento jurídico relativo a essas embarcações” e que estaria alinhado com “a experiência de outros países europeus, designadamente de Espanha”. A queda do Governo suspendeu o processo e o Ministério de Justiça optou por remeter para o próximo Governo o diploma para eventual aprovação. Até agora, não houve desenvolvimentos.

Nas operações das autoridades os bens e os valores apreendidos também revelam as tendências já identificadas. Por exemplo, no caso das lanchas, o último relatório da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefaciente da Polícia Judiciária, pode ler-se: “Quanto às embarcações, meio utilizado na introdução de grandes quantidades de estupefacientes, apreenderam-se mais 77,8% que em 2022. Igualmente associados ao meio marítimo, as apreensões de telefones satélites aumentaram 337,5%”.

Houve ainda registo de “um aumento nos valores monetários apreendidos, cerca de 81,3% de euros e 73,7% das mais variadas moedas estrangeiras, convertidas em euro. Mais de quatro milhões e meio em euros e 18 mil euros em moeda estrangeira. O documento realça também as apreensões de dois imóveis e de uma aeronave, tipos de bens que não tinham sido apreendidos no ano anterior.

"Everywhere, Everything, Everyone"

No final de janeiro deste ano, Alexis Goosdeel, diretor do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, com sede em Lisboa, deu uma entrevista ao Diário de Notícias onde abordou este aumento do tráfico e do consumo, com especial destaque para o caso europeu.

“Para caracterizar a situação da droga na Europa, são três as palavras em inglês. Everywhere, Everything, Everyone. Vou traduzir: em todo o lado, tudo, todas e todos. Em todo o lado, porque hoje temos drogas por todas as partes na União Europeia. Aliás, nunca tivemos tanta droga como a que temos hoje. Nunca tivemos tanta droga a chegar de todas as partes do mundo. E há a parte da droga produzida no território da UE. Por exemplo, a UE, tornou-se o único produtor mundial de ecstasy, o que significa que até o ecstasy consumida na Nova Zelândia é produzido no território da EU”, afirmou ao jornalista.

João Goulão, presidente ICAD, defende – em jeito de conclusão - que nesta altura, é preciso “um esforço conjunto em todo o espaço europeu e não só, no sentido de encontrar formas eficazes de contrariar esta oferta”.

Crime e Justiça

Mais Crime e Justiça

Mais Lidas

IOL Footer MIN