Valdosende, a aldeia onde mulheres de fé fizeram a sua revolução antes do 25 de Abril
O telhado da casa mais alta é alto como a copa da árvore mais alta. Assim foi sempre.
Vendo de baixo, é “arrebatada”; do cimo, é mais “despenhada” — a descrição é de meados do século XVIII, das memórias paroquiais. Valdosende existe desde sempre com uma paróquia. Fica num lugar, Assento, que tem este nome por ali ter “assentado" a freguesia. Assento é também Valdosende, confundiam-se, freguesia e lugar, quase lugarejo, embora houvesse outros lugares que a ela pertencem: Vilar a Monte, Vilarinho e Paradela, todos mais abaixo.
A construção da barragem da Caniçada, durante a década de 1950, atrairia para Paradela mais trabalhadores, mais população — construiu-se até um bairro operário —, mais comércio e mais economia, mais prosperidade, mais interesse. Também interesse do pároco de Valdosende. Chamava-se António. António Firmino Loureiro de Figueiredo. Era de lá o padre desde 1954.
A relação do pároco com a população sempre fora próxima. Foi dela que veio o dinheiro para adquirir o automóvel de António. Automóvel que estacionava na garagem oferecida pela população de Valdosende. O próprio caminho da estrada nacional à habitação paroquial foi melhorado com financiamento dos paroquianos.
No entanto, em 1968, já com a barragem concluída, já António ali assentara, mas insatisfeito com as condições da habitação, o pároco sugere que se faça para si uma residência de raiz, nova. A população recusa, diz-lhe que para isso já não é suficiente o dinheiro, admitem somente melhorar, restaurar a residência ali existente. A intransigência do padre de Valdosende causa nos seus paroquianos desconfiança. Desconfiam que pretenda mudar-se para o lugar de Paradela, onde as condições de vida são ao tempo manifestamente superiores.
Mais desconfiam quando António se muda para o recém-construído bairro operário, onde vivia com a irmã e cunhado. Estávamos já em 1969 aquando da mudança. Mudança que não impediria o padre de ainda continuar a celebrar as missas. No entanto, os habitantes de Assento, e não satisfeitos pela deslocação de residência, escrevem, naquele mesmo 1969, ao arcebispo de Braga, exigindo a saída de António. Exigência recusada. A contestação escalará.
No final de setembro, os populares provocam “desordens, escândalos e diversos aborrecimentos” no final da missa, segundo a denúncia do pároco à GNR, que interveio e repeliu a multidão. António fala em tentativas de agressão. A população garante que terá sido ele, o pároco, a agredir as crianças de Valdosende, “que estariam a repicar os sinos”, provocatoriamente.
Ação, reação: todos os actos religiosos ficarão suspensos até dezembro e ao Natal.
A escalada de violência até parará. Mas não as intenções de António, que ainda em outubro de 1969 pede uma autorização para a construção da nova habitação ao Paço Arquiepiscopal de Braga. E a construção é autorizada em dezembro: seria no lugar do Chamadouro — ermo, mas também mais central, naquela freguesia. O problema é que António pretende alterar de residência, mas levar para lá consigo a igreja matriz e até o cemitério. Volta a contestação.
Os populares de Valdosende, “os chefes de família”, procuraram reunir-se por 13 vezes em Braga com o seu arcebispo, uma procura sempre recusada. Pretendiam reverter a intenção de retirar de Assento os lugares sagrados. Não conseguindo, contestavam, protestavam: como em setembro de 1970, quando terão colocado um altifalante nas proximidades da igreja, interrompendo a celebração da missa, e deixando uma cafeteira no torreão com um letreiro onde se pode ler:
“Aqui vende-se chá para quem quiser servir-se” — é uma alusão à “falta de chá” do pároco.
Entretanto, António, já cansado das provocações, decide-se pela votação: a freguesia, e não só o Assento de Valdosende — a quem todos só chamavam Valdosende —, decidirá onde pretende ter a sua igreja matriz, cemitério e residência paroquial. Vilar a Monte, Vilarinho e Paradela, à época com mais habitantes, votarão pela mudança, largamente pela mudança . Assento perde. E ficará mais e mais isolado, tanto que já nem a padeira — que era a favor de mudar — lá passará para vender pão. Além do já referido isolamento, os de Assento eram alvo de provações de povoações vizinhas, até da sua freguesia eram, por não terem padre. A missa fora por agora suspensa.
A história já se alonga, e está longe do fim, uma história que parece ser de religião — e não é. É de uma revolução. Revolução que resulta numa mudança de religião: em fevereiro de 1971, os habitantes de Assento — três homens, três anciãos— contactam uma igreja de Braga, a Igreja Evangélica Metodista, são protestantes e não católicos, pedindo-lhes “assistência espiritual”. Tiveram-na e continuam a ter. Avancemos até abril de 2025. Haveremos de continuar a avançar e recuar, recuar e avançar.
No número 3 da rua reverendo Francisco Abel Lopes
Cruza-nos uma pessoa, vinda da horta. E um automóvel vai de saída. O resto é pacatez e silêncio, Assento é silêncio, sobretudo, cortado pelas horas e meias horas do sino. O sino não é o da igreja matriz, metálico, mas vindo do altifalante no cimo do templo dos metodistas que da igreja dista poucos minutos, avistam-se um ao outro, igreja e templo, numa visão reta. Ainda é um lugar em que as casas foram construídas em serraria, íngremes, deixando ruas estreitas e por onde mal se consegue atravessar — se subir um carro, outro não desce —, e quanto mais subimos menos se avista de gente e mais se avista Gerês, a perder de vista. O templo é abaixo. E lembra mais uma casa que um templo, uma casa quase um celeiro, amadeirado, despojado, que de igreja tem um altar, uma cruz, e bancos corridos e janelões luzidios. Procuramos por lá Fernando, Fernando Marques. É hoje o pastor da Igreja Metodista de Valdosende.
E é brasileiro, da grande São Paulo. Está aqui há apenas quatro anos. Hoje já não estranha o Portugal rural. Até prefere. “São Paulo tem mais de 10 milhões de pessoas. Tem mais carros em São Paulo do que pessoas aqui em Portugal. Por outro lado, aqui nunca apanho um farol - vocês aqui falam semáforo, não é? - fechado”, graceja. “Para mim foi um choque grande, mas eu vim.” Porquê, porque trocou a metrópole pela ruralidade? Para que não se repetisse a história. “Porque o pastor que estava aqui precisou de ir para Inglaterra, foi para um doutoramento. E a igreja acabou por ficar sem pastor. Às vezes vinha um de Braga pregar, às vezes vinha um do Porto. E quando me contaram a história de Valdosende, a história de como o povo foi abandonado [pela igreja católica], eu decidi que não iam ser abandonados novamente. ‘Tiveram pastor durante 50 anos e agora não iam ter mais? Não podia ser’”, recorda.
Fernando sabe do que em Valdosende aconteceu também pela memória dos que ainda sabem contar daquele tempo as histórias. Quando contam, contam sempre começando pelo nome que dá nome à rua, brevíssima, do templo dos metodistas e cemitério: Francisco Abel Lopes.
“Francisco Abel Lopes era pastor da igreja metodista lá em Braga e, então, ele foi procurado pelos moradores aqui de Valdosende, de Assento, que ouviram dizer que existia uma igreja diferente da igreja católica. Antes nem sabiam que havia outras igrejas. E o Francisco Abel Lopes veio fazer uma visita aqui. Não havia uma igreja, mas reuniu as pessoas num campo e fez lá o culto, ao ar livre. Ao fim de algum tempo, resolveu-se abrir um trabalho metodista aqui.”
Segundo o pastor de agora, o pastor de então “chegou já fazendo”. “Já abriu logo a creche, já começou a construção do templo — aqui não havia nada, era apenas um terreno e foram as pessoas que ergueram as paredes”. A prioridade dos metodistas eram as crianças, recorda. “O cuidado às crianças, que estavam muitas delas subnutridas, que bebiam — como se diz? — sopas de cavalo cansado. Para deixá-las mais calminhas, podiam dormir enquanto as mães iam trabalhar nos campos. Isso mudou logo. As crianças receberam leite — nunca tinham visto leite em pó, muito menos queijo. Tudo isso foi concedido com ajuda do exterior, de outras igrejas, nomeadamente da Itália, da Alemanha e mesmo de Inglaterra.”
Até vir Francisco Abel Lopes, até vir todo aquele fazer metodista, houve ainda muito que Fernando abreviou. Recuemos. Os de Valdosende, e em concreto do Assento, souberam da existência do protestantismo através de Afonso Dias, um emigrante de Valdosende na freguesia na América. Para esta freguesia era uma novidade, mas a verdade é que há protestantismo instalado em Portugal desde o ano de 1868 — a primeira capela metodista surge em Vila Nova de Gaia —, embora tivesse uma expressão residual — e menos ainda a presença na ruralidade; era sobretudo do litoral mais industrializado —, contando no início do século XX com 10 comunidades e na viragem desse mesmo século com apenas 15.
Onde vinha até trabalhando mais activamente era nas antigas colónias de Portugal em África, o já que lhes vinha granjeando de Salazar ódios e medos, pois considerava os protestantes “desnacionalizadores”, “descaraterizadores”, agitadores e perigosos politicamente. Mas Salazar já morrera, em 1970. E até o seu aliado religioso, o cardeal Cerejeira, resignara no princípio do ano de 1971 — ano em que é aprovada a Lei da Liberdade Religiosa, que permitiu a legalização de diversos grupos religiosos, que desfrutava da liberdade de culto, reunião e até de “proselitismo”, ou seja, de converter outros aquelas religiões e igrejas. Foi isso que o pastor Abel Lopes, protestante, da igreja metodista de Braga, fez. Converteu. Abel Lopes foi o pastor de Assento desde 1971 até 1989.
Logo em outubro de 1971, quase cem pessoas fizeram a chamada profissão de fé protestante. Antes, os pregadores metodistas já visitavam Valdosende, domingo a domingo, desde o início do ano, partilhando pregações, cânticos e sermões na rua porque não havia nenhum local erigido, nenhum templo metodista, templo que só vem no ano de 1972, num terreno que fora doado pelo presidente da Junta de Valdosende, Bernardino Ribeiro, logo ao lado do cemitério — onde até hoje continua.
Naquele ano de 1971, ainda sem igreja católica, fechada que esteve até novembro, fez-se o primeiro funeral, em abril, o primeiro baptismo, ainda em abril, e o primeiro casamento, em agosto. Só que a nova igreja não vinha para ritos, ou não só. Em Valdosende não havia nada: electricidade — apesar de estar tão próxima a uma das maiorias barragens do país —, esgotos, rede de abastecimento de água. Havia pobreza, extrema, escondida, mas visível por exemplo na subnutrição das crianças, analfabetismo, alcoolismo — infantil também —, abandono e rejeição. Os metodistas, que eram apoiados de fora, trouxeram alimentos, sobretudo para as crianças, criaram uma cooperativa agrícola, instalaram posto clínico, até dentista, uma creche, melhoraram habitações e estradas, investiram na alfabetização da população — muito deste último trabalho em resultado de campos de férias, no Verão, que reuniam jovens metodistas, vindos de vários cantos do mundo. Tudo naqueles primeiros anos.
Tudo isto se fez porque, primeiro, se fez revolução em Valdosende. Não dos protestantes, sim dos populares. “Olha, eu gosto se fazer essa comparação com uma revolução como a do 25 de abril, embora aqui o que veio a acontecer partiu das pessoas, não foi nenhum golpe militar. Foi mais um movimento popular. E isso é bonito”, considera o pastor de Valdosente, Fernando Marques.
E recorda o motivo da revolução minhota prévia à de abril: é um motivo de demografia. “O motivo é que começaram a construir a barragem hidroelétrica aqui mesmo em baixo. A região era pobre, tinha pouquíssima gente, mas do nada começou a chegar muita gente, lá em baixo, em Paradela. Só que a igreja matriz era aqui em cima. E começou uma campanha para a levar para lá. E ao ficarem sem igreja, os moradores revoltaram-se”.
Primeiro, começaram a frequentar outra igreja, católica, em Rio Caldo, “que ficava a alguns quilómetros, bem distante de Valdosende”. “O problema é que se havia algum casamento marcado, já não havia casamento. E nasciam crianças que não eram batizadas. Isto ainda durou algum tempo. E foi assim que se deu a mudança, após vários anos de luta da população”, explica Fernando Marques.
A população aceitaria a religião desconhecida, embora crente em Cristo — até porque não houve um corte abrupto face às tradições católicas, nomeadamente quanto à veneração de santos e de imagens, que nos protestantes é afastada, por exemplo, sendo o tempo, o de então e de agora, despojado de tudo isso. A mudança de hábitos religiosos foi progressiva e democrática. "Reuniram os moradores, discutiu-se a mudança, uns foram a favor, outros contra. E votaram com um risco no chão. A maioria estava do lado do sim.” Tinha de assim ser. E é talvez essa uma razão para continuarem maioritários os protestantes em Valdosende.
Maioritários mas não uma totalidade. "Algumas famílias acabaram por voltar ao catolicismo.” Porque houve, afinal, alguma resistência. Duas resistências. Fernando Marques enumera: “Primeiro, na igreja protestante nós não pedimos para os santos, por exemplo. ‘Por favor, Santo Inácio, fala aí com Deus, vê se ele pode me ajudar!’ Respeitamos, tiveram [santos] vidas que são exemplares para todos nós. Mas não veneramos: nós pedimos só para Jesus. Portanto, isso deve ter sido bem difícil mesmo”. A segunda mudança não parece ser propriamente religiosa: “Por outro lado, os protestantes têm uma visão um pouco diferente do que o mundo é do que a sociedade de então dizia. Porque nós pregávamos a necessidade de repartir, de se ser solidário com quem tem menos. Mas nem todos pensavam dessa maneira: ‘Se eu é que consegui, se eu é que plantei, é meu’. Não queriam integrar a cooperativa que foi construída”.
Saímos do templo metodista e avançamos à igreja matriz. Ainda não se nos cruza ninguém, Fernando segue connosco. É sábado, pela tarde há missa, escuta-se o padre no interior, o pastor espera à porta, cumprimenta — e tratam-se por tu — os fieis que saem, mas distraído entre conversas, não dá pela saída do padre, que logo parte de automóvel para freguesia vizinha. Serve esta ida breve à igreja matriz para um ponto se provar: a relação entre católicos e protestantes de Valdosende não tem qualquer dificuldade, “já não”. “São todos vizinhos, são todos parentes. Ou moram na mesma rua. E a nossa postura sempre foi ecuménica. E as pessoas que antes xingaram, foram vendo que afinal o demónio não era assim tão feio, não é? Hoje as pessoas não se deixam de falar por causa das confissões religiosas.” E há uma aproximação à Braga que antes “xingava”. “Não é de hoje. Entretanto o arcebispo de Braga até já esteve na nossa igreja, o que era uma coisa impensável há alguns anos. Agora vão sair umas 10 pessoas da missa católica. Amanhã [domingo] vão estar 100 no culto. Portanto, a maioria é protestante. Mas se dão.”
Da igreja saem até mais mulheres. Mais mulheres sairão do templo domingo. O pastor sabe também que esta foi a revolução, não dos homens, mas das mulheres. “É isso mesmo, é. As mulheres daqui até escreveram uma carta ao papa! E muitos dos contactos [com a igreja metodista de Braga] foram feitos por mulheres. Acho que elas são mais ligadas à religião, mais devotas. E incentivavam os homens, os maridos, à revolução.”
Diz Fernando que foram também elas, mulheres, quem mais beneficiou da mudança. “Desde logo por causa da creche: já tinham onde deixar os filhos quando iam trabalhar nos campos — e algumas foram contratadas como funcionárias. As mulheres daquele tempo sofriam muito, havia muita violência doméstica e a educação que viemos trazer aqui também foi nesse sentido: uma educação cultural. A violência doméstica diminuiu muito. E as mulheres tornaram-se, e continuam a ser, a grande força da aldeia de Valdosende.”
“Antes era bom para os capitalistas, mas para os desgraçados dos pobres, sabe Deus”
Na estrada nacional, que cruza por baixo Assento, uma mulher já idosa, apoiada por duas bengalas, coberta de agasalhos que é já o fim da tarde e o vento que sopra da serra enregela, caminha lentamente, parará à passagem de carros, olha, vê se do interior reconhece alguém, e não reconhecendo avança mais. Não nos reconhece. Mas aceita que conversemos. É Rosa, “Rosa Maria da Silva”.
— Está boa, Rosa?
— Olhe, com esta idade, como pode haver coisas boas? Mas estamos vivos, graças a Deus.
— Que idade tem?
— Eu nasci em 1934, a 19 de março. Faça-lhe a conta agora…
— 91. Podemos conversar?
— Se souber responder, eu respondo.
Rosa fica expectante pela pergunta. A pergunta é “o que é que se passou aqui nesta freguesia, na altura da ditadura?” A resposta é rápida: “Queriam mudar a gente lá para baixo. E a gente entendia que não. Se ele [padre] não fechasse a igreja, não sucedia o que sucedeu - e a gente continuava a ser como era”. Mas como eram os que eram de Valdosende, Rosa? Resposta mais demorada, a revolver na memória: “Era uma vida mais difícil. Era sim, senhor. Era muito difícil, muito, muito. Não havia aqui eletricidade, era à luz do petróleo. Mas não era sempre, para não se gastar muito, porque a gente tinha de comprar o petróleo. A gente viveu do trabalhinho da gente, a trabalhar terras que eram duras, trabalhávamos os campos dos lavradores. Não era tudo para a gente, era meio-meio. E o pão e o vinho já não era a meias, era a terço. Dois para o patrão, um para a gente”.
Faltou quase tudo. Para Rosa e para os seus cinco filhos. “Pãozinho tinha sempre. Agora para outras coisas, passou-se necessidade de muitas coisas. De certas coisas passei fome. Quando dizem que naquele tempo é que era o bom, quem diz isso está bem enganado. Está enganado. Era bom para quem era. Era bom para os capitalistas, mas para os desgraçados dos pobres, sabe Deus.”
O Portugal de Salazar era atrasado, económica e socialmente. A população, e até mais na ruralidade, era atrasada na educação, no acesso à saúde, na alimentação. Os homens, os jovens sobretudo, combateriam em terras de África. Os que lá não combatiam, emigrariam. Sobretudo na ruralidade, sobretudo em Valdosende — uma aldeia que vivia, e subsistia, da agricultura, mas cujas melhores terras agrícolas ficaram submersas pela barragem hidroeléctrica da Caniçada —, os homens tinham de emigrar, para os EUA, a Alemanha, a França e o Luxemburgo. Quando os metodistas lá chegam, viviam na aldeia nem mil habitantes, sendo mais mulheres que homens.
E a revolução que aqui se fez, partiria destas mulheres. Uma importa recordar: Maria da Conceição Pereira, já falecida. Tratavam-na somente por “Maria do Mundo”, porque fora emigrante no Brasil, e era uma das poucas que à época saberia escrever e ler, ficando “Maria do Mundo” responsável pelas cartas de guerra das mulheres de Valdosende e por as ajudar também na correspondência com maridos que estavam emigrados.
Maria era uma devota da igreja católica, uma doméstica, costureira de profissão, mãe de seis crianças. Certo dia decide que haverá de escrever ao Papa Paulo VI sobre o tratamento dos católicos à população, carta essa que será entregue na Nunciatura Apostólica, em Lisboa — porque fora rejeitada em Braga —, e remetida ao Vaticano. Pretende que regresse a igreja a Valdosende, que dali não tirem nem matriz, nem padre, nem cemitério tão pouco. Assinada por seis mulheres, a carta pede que regresse um pároco, qualquer um, “nem que seja velhinho”, que regressem “as novenas, terço, benção e catequese”.
A Secretaria de Estado do Vaticano responde, não a “Maria do Mundo”, mas ao Arcebispo de Braga: estava com ele, “inteiramente”, a decisão, “o critério”, de retirar, ou não, a igreja ao lugar, pois ele é que tinha “o conhecimento das circunstâncias pessoais e locais”. A resposta de Braga ao Vaticano é concludente: o Assento não tinha já interesse, ou centralidade. “Desde há mais de cinquenta anos que vários párocos que têm passado pelo freguesia tentaram, ou pensaram, solucionar a dificuldade da distância enorme a que se encontram a igreja e a residência paroquial para uma maioria de fiéis”, podia ler-se nessa resposta. Resposta na qual o padre António é descrito como alguém que “enfrentou a resistência tenaz dos moradores do lugar” e que, por se terem ouvido os “representantes dos vários lugares” da freguesia de Valdosende, “decidimo-nos pela aprovação da obra projectada”.
A carta de “Maria do Mundo” não resulta. Ou talvez sim. Em represálias imediatas. O próprio irmão ameaça-a e estarão de relações cortadas durante anos. O irmão desta mulher soube da carta pelo padre António, que então já dava a missa no lugar de Paradela, e divulgou, ou denunciou, o nome das seis mulheres que assinavam o texto.
Rosa é, com 91 anos, uma das mulheres da revolução, e conheceu a “Maria do Mundo”. Mas primeiro recorda-nos do marido já falecido. “Ele ainda foi até Braga por algumas vezes, por causa de certos problemas que aqui havia. O meu marido ainda lutou muito à conta de quem era contra nós.” Agora falará das mulheres, de Maria, de si — também Maria como tantas, cunhadas assim pelo catolicismo. “Mas a gente é que se entesou. As mulheres! Os de Braga [arcebispo e vigário] pensavam, com certeza, que só a religião é que era a boa. Mas o que estava destinado a ser, tinha de ser. As nossas mulheres tiveram muita importância. Pois tiveram, muita, muita, muita, muita, porque algumas fincaram-se ali, os maridos não queriam, mas é o que tem de ser!, e eles lá concordaram e depois também foram por caminho igual.”
Medo de se entesar, de se fincar, Rosa diz que não teve busca. “Enchiam a gente muitas vezes de nomeadas. E a gente engoliu. Tudo se engoliu. Quando a gente passava, que ia dar um passeinho, injuriavam a gente ao passar. Eram contra nós, contra a nossa religião. Na escola chamam as crianças ‘os protestantes’, ‘os indígenas dos protestantes’. As crianças muitas vezes choravam, diziam que nós somos protestantes mas não fizemos mal a ninguém. Custou muito. Agora não, agora não. Isso terminou. Nunca professámos medo. O povo não tinha medo. Estava bem firme. Se é para irmos, é para irmos todos. A gente tinha cá a intenção da gente. Foi o que foi. E é o que continua a ser hoje.”
Diz-nos que mudar, de católica para metodista, ou protestante, muito lhe mudou. “Muita coisa, muita coisa. Muita coisa muito boa. Muito, muito. Tinha gosto, pois tinha. Tristeza não tinha: tinha gosto.” Diz que se ali não “fizéssemos o que fizemos”, nada mudaria. “Íamos ser toda a vida injuriados. E a gente nunca desfeitou ninguém. A vida ficou melhor. Ficou sim. Nem sei, nem sei não, nem é bom falar, nem é bom falar não.” Nem é bom de bom que é. Lá acaba por contar: “Éramos todos amigos, não havia diferença de ninguém. Veio roupinha, os protestantes mandaram saquinhos de roupa para a gente. E leite. E queijo. Ai, que era tão bom o queijo. Parecia as barras de sabão. Mas era tão bom, tão bom. Era dividido pelas famílias. Algumas coisas as pessoas nunca tinham sequer visto, nunca tinham comido. Ficávamos admirados. Achavámos que não seríamos merecedores daquilo - mas Deus entendeu que sim”.
— Alguma vez pensou em regressar ao catolicismo?
— Voltar? Pois está claro que não. Deus é um. Deus é só um. É a quem devemos amar onde estivermos.
Aproxima-se de Rosa, pela estrada, Glória Cruz. É filha de Rosa. Uma das crianças a quem os vizinhos, na freguesia, “enchiam de nomeadas”, “uma indígenas dos protestantes”. Glória tem hoje 68 anos. Vai até à hora que tem logo em frente. “O que é que eu tenho na horta? Alface, repolho, brócolos, cebolas, couve-penca, couve-galega, favas, nabiças e batatas. E tomate, e pepinos, e pimentos e alhos.” Horta apresentada, orgulhosa, retornamos à conversa — e Glória junta-se — de como foi 1969 e 1970 e 1971 - até virem os protestantes a Valdosende.
“O que é que se passou? A igreja foi fechada. Nós para ir à missa tínhamos de sair de casa às seis da manhã, para ir a Rio Caldo. Eu estava tão bem era a dormir àquela hora. [Risos] Mas já antes disso, eu tinha 13 anos, nós, crianças, tínhamos medo do padre de então.” Medo? ”Medo. quando nós vínhamos da escola, de que o padre estivesse na varanda, porque o caminho para casa passava pela casa pastoral e se a gente não íamos lá pedir a bênção do padre, levávamos. Nós tínhamos um medinho! Quando houve a revolução entre os paroquianos e o padre, foi por ele bater nos miúdos”, recorda dos dias de criança.
Sobre o porquê de mudar, do catolicismo para protestantismo, “isto mudou porque havia pessoas que estavam emigradas lá na América, pessoas que sabiam que havia mais religiões além dessa [católica] e nós aqui com a igreja fechada durante quase nove meses”. Mas antes disso os homens, “os chefes de família — olhe: o último faleceu em junho —“, chegaram a ir até Braga, “conversar com o arcebispo”. “Mas chegavam lá e eram barrados. Também falaram ao vigário — mas era muito amigo do padre da nossa freguesia. As coisas estavam muito mal, chegou aí a vir algumas vezes a GNR e tudo, podia ter aqui morrido alguém.”
O que se seguiria foi revolução. Ou melhor, diz Glória: "Isto foi um 25 de abril das mulheres de Valdosende!” “Porquê? Olhe, até porque as mulheres antes não tinham voz, elas não podiam fazer nada na igreja. E a partir daí sabiam que elas tinham tanto poder como os homens na vida da igreja. E foram as senhoras que escreveram ao papa [Paulo VI], a pedir para termos uma igreja. Não sei se o papa respondeu ou não. Aquelas que escreveram as cartas, os próprios maridos não sabiam que elas tinham escrito. Portanto, sim, foi uma revolução das mulheres. As mulheres é que levaram isto a peito.”
— Nós em Valdosende éramos os ‘revolucionários’…
— E isso era um insulto?
— Era. Porque não tínhamos padre e queiramos ter padre.
— Sofreram com essa falta…
— As outras terras atacavam-nos por causa disso. E cantavam!
— O quê?
— ‘O padre é nosso, o padre é nosso, o padre é nosso, é há-de ser, o padre é nosso, o padre é nosso, o padre é nosso até morrer’.
— [Risos]
— Queriam fazer-nos raiva.
Glória diz que virem os metodista “foi como que um abrir de olhos”. “Porque nós naquele tempo éramos umas pessoas abandonadas, não tínhamos a autoridade de falarmos, de dizermos qualquer coisa que seja. As pessoas ainda têm pavor de que se volte àquele tempo [de ditadura]. Tudo é hoje melhor.”
Glória beneficiou da melhoria. E ajudou outros. “Como é que a minha vida mudou? Vai fazer 49 anos, no dia 1 de agosto, que eu fui a primeira funcionária aqui da creche, do infantário. A creche foi uma ideia da esposa do pastor, para que os pais das crianças fossem trabalhar para o campo e sentissem que os seus filhos ficavam bem e a ser guardados. Funcionava das oito da manhã às oito da noite, de segunda a sexta-feira - e aos sábados era até à uma da tarde. Antes os nossos pais iam para os campos trabalhar e as crianças ficavam sozinhas. Era um tempo mesmo de escravatura. Os meus pais andavam a trabalhar às vezes mal para comerem.”
Como já se ouviu de Rosa, a mãe, também da filha chegará uma recusa — terminante — em regressar ao catolicismo. “Quando isto começou a ser notícia, o arcebispo [de Braga] lá disse ao vigário para escrever aos chefes de família, para acabar com a revolução. E as pessoas lá disseram que fomos tantas vezes [até Braga] para ser ouvidos e não fomos ouvidos, que a partir de agora não há volta a dar.” E ainda assim é.
Senhora diaconisa — e todas as outras senhoras
Nunca houve um conflito de índole religiosa durante o Estado Novo. Pelo menos que não tenha sido reprimido pela PIDE. Este não foi, talvez por ser aquela a "Primavera Marcelista”. Pelo menos que tenha sido noticiado. Este foi, talvez por um certo abrandamento, adormecimento dos serviços da censura.
Curiosamente, uma das primeiras notícias relativas a Valdosende surge num órgão, não oficial, mas oficioso da Igreja Católica: o Diário do Minho. Em janeiro de 1971, questiona aquele jornal: “Que se passa em Valdosende?”, e respondia atacando os locais: a mudança da localização (da residência, cemitério e igreja matriz) não é “capricho do pároco”, mas, sim, uma “exigência do senso comum”, para que mais se “aproximasse de outros lugares da freguesia”. Continuavam as histórias de Valdosende. E responderia, em reportagem, o Jornal de Notícias, em outubro. Descria aquela mudança toda como “uma migração religiosa numa aldeia do Minho”, considerando Valdosende “uma ilha protestante num mar de Catolicismo”.
Ainda naquele 1971, a revista Vida Mundial fala num “enclave que constitui uma machadada no orgulho hierárquico e autocrático”. E crítica a igreja, a católica, que tem uma ortodoxia “mais jurídica e exterior que moral e interior; mais colete-de-forças que dinamismo de consciência; mais pompa que verdade; mais triunfalismo que serviço, mais monumentalismo que espírito”.
Os católicos procuraram regressar a Valdosende quando perceberam que muita da população, a maioria, se converteu, ferindo-a logo no distrito mais católico do pais, na “Roma” de Portugal, numa aldeia tão pequena mas que fica a só uns 3o quilómetros da diocese e a menos distância ainda de São Bento da Porta Aberta, que é um dos maiores santuários católicos portugueses. Em 1971, a Igreja de Assento reabriu em novembro, fazendo logo promessas de mudança — promoveu até uma reunião em casa do presidente da Junta. Mas num antigo sistema de votação popular — tantas vezes usado nesta polémica —, através de traçar um risco no chão, a população recusaria prescindir da assistência religiosa dos metodistas.
Em novembro, os habitares recebem uma carta do cónego Eduardo Melo, Vigário Geral em Braga. Começa desta maneia: “Irmão em Cristo: fazendo votos a Deus pelo seu bem-estar e da sua família, rogo me atenda, embora seja para si um desconhecido. Todavia, conforme ao Evangelho, sentimo-nos irmãos e é nesta qualidade que eu escrevo e peço procure entender-me”. Melo dizia que “não vinha abrir polémica” ou “tocar em factos passados”. Pretendia, sim, ao escrever, “reviver em pleno a unidade espiritual”. Prendia que os seus, “o povo de Deus”, estivesse desperto perante “o demónio, que astutamente, com subtileza e arte, quer triunfar na luta por ele aberta”.
“Chega a hora de testemunharmos, uma vez mais, com verdadeiro espírito, a doutrina por nós conhecida”, podia ler-se na carta, que terminava dizendo que “no próximo domingo, dia 14, e nos seguintes, será celebrada pelas 10 horas a Santa missa na Igreja de Valdosende”. E exclamava: “Cristo e a igreja contam Convosco!” Mas poucos ou quase ninguém apareceu.
Visitamos em Valdosende, e é já de noite — vai cozinhando uma sopa, para ela e os seus filhos e marido —, a casa de uma mulher que foi católica desde o berço e se havia de converter ao metodismo, mas é uma historia diferente da de Rosa, da de Glória. É ainda jovem, tem 55 anos. Portanto, Lurdes, Lurdes Fernandes, nasceria em plena crise religiosa em Valdosende, “em 1970”. “Sou uma das crianças que já não foram baptizadas na igreja católica aqui em Valdozende, no Assento — porque não tínhamos essa igreja e porque a realidade protestante ainda não existia, então fui baptizada numa terra que não Valdosende.”
Mas Lurdes não viveria tal crise. “Fui bebé para França. Vivi 14 anos lá em França, fiz o crisma, fiz todos os sacramentos. Era católica — e era enfant de coeur, eu dava apoio ao padre na missa.” Mas se é hoje protestante, como é que se converteu? Regressou aos 14 anos a Portugal. Mas a conversão, ou interesse pela conversão, até se dá nos verões de férias. “Sim, durante os verões fui conhecendo os protestantes, porque havia aqui acampamentos internacionais, com jovens de todo o mundo. Aqui era outra abertura, outra disposição, outra maneira de ser e de estar, que faz com que a gente esteja em convívio, em comunidade, em amizade fraterna.”
Quando Lurdes regressou a Portugal, “para estudar aqui”, conheceu o pastor da altura, Francisco Abel Lopes, “e ele quis que eu fosse estudar para um seminário”. Recusou. “Só que eu com 14 anos não quis. Porque isso também tem de ser um chamamento. Não se vai para um seminário só porque sim. Mas converti-me por causa dele ao protestantismo.” E agora, tantos anos mais tarde, “com o amadurecer da fé”, estuda para vir a ser diaconisa. “E depois o futuro a Deus pertence.”
Às mulheres metodistas é-lhes permitido lugar de destaque na cúpula da igreja. Glória será em breve uma diaconisa porque outras mulheres, de Valdosende, lhe abririam esse caminho. Pela revolução, voltamos de novo à revolução — e o termo saí-lhes das bocas, a quem é de Valdosende. “Na década de 1970 este meio rural tinha bem enraizado o catolicismo romano, era uma igreja bem sombria. Portanto, sim, foi uma revolução, disso não há dúvidas — e foi de mulheres. A revolução aconteceu porque um padre resolveu fechar uma igreja. Parece pouco. Mas naquela altura uma igreja era mais importante do que as escolas. As pessoas perderam o norte. E com os homens maioritariamente emigrantes, as mulheres tomaram os comandos, a linha da frente.”
Inicialmente, garante Glória, as mulheres de Valdosende “só queriam ver os seus filhos cuidados, com direito à vida religiosa, a fazerem os sacramentos”. “E ao sentirem os filhos um bocado abandonados, fizeram uma revolução.”
— Eu até fico emocionada por perceber que as mulheres tiveram realmente um papel muito importante em Valdosende.
— Porquê?
— Deram a cara, deram o copo.
— Podia ter sido complicado: era uma ditadura…
— A situação podia ter sido grave.
Diz que ali mesmo, na aldeia, “havia pessoas nas aldeias que eram informadores da PIDE”. “E aquelas pessoas podiam ter ido parar à prisão ou pior.” Não houve nada pior. Ou medo. Só coragem no feminino. "As mulheres tiveram coragem, tiveram a ousadia de pedir ajuda. Nunca cederam, nunca. Mesmo quando lhes pediam que regressassem, disseram que não, que não regressavam. Aquelas mulheres tinham uma força que eu não sei de onde virá, onde foram buscar, porque nós vivíamos numa sociedade muito machista, quem mandava em casa era o homem do chapéu. Ainda agora, às vezes o machismo aparece não-sei-de-onde - e preocupa-me.”
“Não é só ser igreja para praticar a fé; ser igreja é sair do templo”
Uma das conquistas da revolução em Valdosende foi ter ali aparecido um centro de solidariedade social. Fernando Lameira é hoje o responsável. Conversamos enquanto visitamos o espaço hoje com dois pisos, em cima lar — a pessoa mais velha tem 107 anos —, em baixo há uma creche e um pré-escolar. As condições impressionam, em modernidade, em equipamento, sobretudo para uma terra que desertificou. Fernando tem 54 anos. “A minha mãe estava grávida de mim em 1971.” O que sabe do que aconteceu, sabe-o pela mãe.
“Valdosente, e mais propriamente aqui o lugar de Assento, é uma terra bem no coração do Minho, próximo aqui da Serra do Gerês, num contexto religioso do catolicismo romano — temos aqui mesmo às nossas portas o S. Bento da Porta Aberta, que é um dos padroeiros maiores de Portugal. Quando aqui houve essa tal situação da mudança [religiosa], aquilo foi tudo porque o padre fechou a igreja, porque queriam fazer uma no centro da freguesia. E, assim, o metodismo foi implementado em 1971 por iniciativa das pessoas — que ficavam um ano e tal sem ter igreja.”
A história que da mãe ouviu é a mesma que já aqui foi contada. E a da manutenção dos protestantes em Valdosende vai ser também. “A maior parte das pessoas não voltou à igreja católica. Gostaram do que a igreja metodista lhes trouxe, do apoio que lhes garantia. E é curioso: ao contrário do que acontece normalmente, as pessoas não foram evangelizadas, elas procuraram a evangelização.” No trabalho social que Fernando dirige não há lugar para evangelização. “A fundação que hoje existe fará 50 anos no próximo ano. E o trabalho na fundação é um trabalho de laicismo, ou seja, somos laicos — e a maioria dos utentes são católicos, o que é respeitado.”
Quando é criada a fundação, é criada por faltar quase tudo àquela terra pobre. “Havia estas necessidades de implementar aqui uma obra social por causa disso. Apoiar as pessoas em todas as áreas, na saúde, na educação, no trabalho, na procura de emprego. A igreja tinha essa visão que trazia dos países desenvolvidos e actuou. Portanto, não é só ser igreja para praticar a fé. Ser igreja é sair do templo e ir à procura de apoiar as pessoas. Hoje há aqui um centro de dia com 14 idosos, nas casas são 25 idosos e no lar 20 idosos”. Só que tudo começou com uma creche, para cerca de 25 crianças. “E hoje temos vagas para cerca de 44 crianças e temos um pré-escolar para mais 25. Além do ATL, entre os seis e os 12 anos.”
Pensar nessas crianças, então, foi sempre a pensar nas mães. Voltemos à revolução e ao feminino em Valdosende. “Elas tiveram grande peso na mudança, mas também em manter o metodismo em Valdosende. Para aquelas mulheres era impensável não terem uma igreja aberta, não terem a missa. Além de que as mulheres não tinham um grande peso na igreja católica e viram na igreja metodista uma igreja que lhes dava poder, que sempre deu poder. Para os metodistas, as mulheres sempre foram respeitadas como os homens, sempre. Dentro da igreja não pode haver desigualdades.”
O cordeiro protestante e o corderinho católico
É domingo de manhã e logo cedo encontramos Fernando, o Marques, o pastor, e a futura diaconisa Lurdes, a receber os seus fiéis à porta, aproximam-se aperaltados, cumprimentam-se beijando-se. Chegam Rosa, a mãe, e Glória, a filha. Fernando, o Lameira, do centro social, não está para já, “porque foi levar uns primos ao aeroporto” — diz-nos o filho. É adolescente. Há adolescentes, crianças também, muitos. Brincam à porta com um cordeiro, amarrado, que será ali sorteado no fim do culto, porque é tempo de Páscoa.
Escuta-se uma viola, começam os cânticos, logo entram todos. Os primeiros minutos de culto fazer-se, não de sermões, não se orações, mas de recados. Recados triviais. Como o almoço de grupo que acontecerá dali a umas semanas e cujo prato é sarrabulho. “Mas tragam os vossos talheres e louças, que isso não temos” — lembra a mulher do recado trivial. Muita da missa é como foi de inicio: cantada, mais afinadas são as vozes que a guitarra, e quem não sabe a letra pode ir seguindo na parede, onde esta se projeta, tudo ali se projeta, mesmo as leituras da bíblia. Fernando Marques e Lurdes Fernandes partilham da palavra e da leitura. Durará cerca de uma hora. À saída, os fiéis despedem-se um por um, em fila, do pastor e da diaconisa que ainda não é mas espera ser. Quando já quase todos estão de partida, alguém exclama: “FALTA O CORDEIRO! Falta sortear o cordeiro!”
Sorteam, no projetor:
— Atenção: vai começar… O número é… 106! Paula… PAULA BOURO! Boa, Paula!
E explodem em folguedos.
Cá fora, as crianças choram, uma idosa também chora, porque o cordeiro será em breve uma refeição pascal na casa de Paula Bouro. “Ela não o vai matar, não o vai comer. Não chorem, vá…” — garante um pai, sem a confiança de quem diz a verdade. Enxugam-se as lágrimas. O cordoeiro vai já numa bagageira de carro, entre balires altos. O carro parte. Os carros partem.
Valdosende esvazia-se outra vez. Silencia-se novamente. Mas não é mais um silêncio de vergonha, de abandono religioso, de polémica. António Firmino Loureiro de Figueiredo, o padre que veio a espoletar a polémica, falou uma vez apenas do caso de Valdosende, ou de Assento. Ao Jornal de Notícias, no ano de 1971, garantia que tal mudança se deveria só, e unicamente, à localização e às condições da casa onde residia.
“O lugar de Assento está no extremo da freguesia, apesar de lá se localizar desde tempos antigos a igreja, a residência paroquial e o cemitério. Apenas defendo a maioria do povo contra uma minoria que quer só conservar o privilégio de ser o lugar sede. A igreja encontrava-se em derrocada e sem estilo. Não interessava conservá-la. A residência também numa lástima: estive lá 16 anos em condições precárias, numa casa sem luz eléctrica e onde, no Inverno, encharcava os pés na cozinha, toda de pedra — uma casa enormissíma mas só com quatro divisões”, garantia António.
Ele, António, era um homem com a saúde já débil. Sofrera um primeiro enfarte do miocárdio em 1962 e um segundo em 1972. Morreria precisamente de um enfarte. Mas não era padre quando morreu. Após esta polémica em Valsodense, pediu para deixar a aldeia e Braga, mudando-se para uma igreja do Porto. Haveria de deixar a igreja, o sacerdócio, tornar-se professor e casar. A população de Valdosende há muito lhe sabia da relação amorosa com uma professora da escola primária daquela freguesia.
Muitos entendiam que António era só um joguete da igreja, que fez o que lhe mandaram. A igreja, nomeadamente o então Vigário Geral de Braga, Eduardo de Melo, que fora seu colega de seminário, descreveu-o certo dia assim, no calor da polémica na freguesia: “O António é um rapaz intelectualmente comum, ou talvez um pouco abaixo do comum, muito mole, muito emotivo — e foi isso que manifestou em Valdosende”.
A polémica nova igreja de Valdosende só abriria no Chamadouro — lugar ermo que hoje não é mais — após o 25 de Abril, em 1975. Ainda hoje há missa na velha igreja matriz de Assento. Quase não tem fiéis. Em 1972, ao Jornal de Notícias, o então presidente da Junta, Bernardino Ribeiro, explicava já porque não regressaram os católicos: “Trataram-nos como parolos. Não souberam levar-nos a bem. Antes dominavam-nos. Mas agora os homens já foram à Lua."