Uma semana em território inimigo: Oleksandr e a família fugiram à guerra através da Rússia. Um passaporte português abriu-lhes o caminho

Uma semana em território inimigo: Oleksandr e a família fugiram à guerra através da Rússia. Um passaporte português abriu-lhes o caminho

Texto
Wilson Ledo

Repórter de imagem
Romeu Carvalho

Edição de vídeo
Pedro Madeira

Sobre a toalha de plástico, uma taça com fruta, sobretudo maçãs. Ao lado, croissants cozinhados durante a tarde, recheados com compota. Um frasco de conserva transformado em bule armazena o chá, frio. Não podia ser de outra forma com o calor que se faz sentir por esta altura na Golegã. A mesa está cheia. À sua volta, nove rostos diferentes, o mesmo percurso: fugiram todos à guerra na Ucrânia através da Rússia.

Desfiam-se as memórias de uma semana passada em território inimigo. Foi através da Rússia que a família de Oleksandr Kovalchuk, 26 anos, escapou à guerra. Além de Oleksandr, seguiram a mulher Anna, os dois filhos, Melissa e León, os sogros, o cunhado e os avós da esposa. “Não foi decisão nossa. Fomos obrigados a fugir para o lado russo”.

Oleksandr fala num português quase perfeito. Em 2006, com dez anos, foi viver com os pais para o Algarve. Enquanto eles trabalhavam, Oleksandr estudava. Em 2017, casou com Anna Yemelianova, também ela ucraniana, hoje com 23 anos. Conheciam-se praticamente desde bebés, sempre estiveram no caminho um do outro. Foram à Ucrânia de propósito para casar. E foi para a Ucrânia que ambos decidiram voltar em 2021, para Kherson, no sul do país, depois de terem percebido que ali poderiam ter uma vida com mais qualidade – e mais barata do que em Portugal. O país, explica Oleksandr, começou a mostrar sinais de mudança com a presidência de Volodymyr Zelensky.

No final do ano passado, nasceu aquele que é o segundo filho, León. A primogénita, Melissa, na altura com dois anos, não coube em si de alegria por ter um irmão. O sorriso cresceu-lhe, como se tal ainda fosse possível num rosto sempre iluminado. O objetivo seguinte dos pais era claro: comprar uma casa, onde os quatro pudessem morar. Mas depois chegou a guerra e mudou tudo.

Oleksandr, Anna e os dois filhos, Melissa e León, têm nacionalidade portuguesa. Oleksandr cresceu no Algarve, para onde os pais vieram trabalhar. A restante família é apenas ucraniana. Foto: DR

Na madrugada de 24 de fevereiro, Oleksandr preparava-se para uma noite a jogar consola quando Anna entrou pelo quarto com a notícia que ninguém quer dar: a guerra tinha começado. “Nunca me esqueço desse dia. Quando o lembro, até fico maldisposto”. Não acreditou que fosse possível, mesmo com as malas prontas há vários dias.

“A vida passa toda aqui no cérebro. A única coisa em que pensava era em salvar as crianças para nada acertar nelas. Era a coisa de que tinha mais medo”. Oleksandr pensou em fugir logo no dia seguinte, mas faltavam as certezas sobre a segurança do caminho. E os sogros resistiam à ideia, queriam ficar em Kherson.

“Tinha de tomar decisões difíceis. Esperei, aguardei para ver o que ia acontecer. Na altura, sentíamo-nos mais seguros dentro de casa do que a fugir da cidade”. Todas as noites segurava nos braços os filhos, as malas e os colchões para descer até à cave gelada.

Kherson mudava a cada dia. Numa cidade onde o russo era a língua do dia a dia, a resistência fez-se como se pôde. “As pessoas começaram a ser contra os russos. Deixaram de falar russo, começaram a aprender ucraniano”. Mas os russos iam ganhando força.

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O caminho mais seguro

No dia em que Melissa fez três anos, a 27 de abril, Oleksandr soube que era altura de partir e pelo caminho mais inesperado. As explosões estavam cada vez mais próximas. Os carros encheram-se com os bens essenciais. Oleksandr, Anna e os filhos seguiam à frente, num carro elétrico de matrícula portuguesa. Os pais, o irmão e os avós de Anna vinham atrás, num veículo de matrícula ucraniana. Com os ataques em território ucraniano, seguir para oeste revelava-se mais perigoso. Foram para sudeste. Primeira paragem: Crimeia, a região anexada pela Rússia em 2014.

Todos sabiam que os postos de controlo iriam ser bastantes. Mas fizeram fé num documento: o passaporte português de Oleksandr, a que se juntavam as declarações de cidadania portuguesa recentemente atribuída aos dois filhos e à mulher. “Uma grande vantagem para nós foi eu ter passaporte português. Os militares não acreditavam que estava um português naquele território. Não faziam mais perguntas antes da fronteira. Dizíamos que íamos para Portugal, pela Rússia, porque era o caminho mais seguro. Eles gostavam de ouvir isso. Tens de dizer que o caminho deles é o mais seguro.”

Fizeram o jogo do inimigo. Tentaram conter as reações, esconder o receio, privilegiando o destino final. “Tive mais medo de não começar o caminho. Depois, foi mais fácil. Comprei maços de cigarros, porque ouvíamos histórias de que se oferecêssemos maços de cigarro, os soldados russos eram menos duros connosco. Até meti os maços ao pé do vidro e da porta para eles conseguirem ver. Se precisassem, pediam”.

O caminho até à Rússia foi feito muito lentamente, com sucessivos controlos. Oleksandr e a família não deixaram para trás os animais de estimação, inclusive duas tartarugas que Anna tem há largos anos

Da Crimeia seguiram para este até Krasnodar, na Rússia. A cada paragem, o coração apertava com receio de que alguém ficasse para trás – só Oleksandr, Anna e os filhos tinham cidadania portuguesa, os restantes não. “Avisava sempre os militares que os nossos pais estavam connosco. E eles deixavam passar”. Mas a Rússia não era a mesma que conheciam antes. “Cada vez via mais pessoas com as letras Z, V e O nos carros, nas faixas, em todo o lado. É uma propaganda fantástica aquela que eles têm lá”.

De Krasnodar seguiram para norte, contornaram a Ucrânia e a Bielorrússia com o objetivo de voltar a entrar na União Europeia através da Letónia. Ao passarem em Moscovo, o ponto de carregamento para o carro ficava dentro de um clube de golfe. “E só os ricos é que vão lá”. O segurança não deixou entrar o segundo carro, com matrícula ucraniana. “Devia ter medo de ser despedido se vissem lá uma bandeira ucraniana”, brinca. Apesar das peripécias, ninguém ficou para trás.

Durante a semana em território russo, Oleksandr percebeu que seria difícil arranjar uma casa para nove pessoas, dois cães, um gato e duas tartarugas. Sem grande expectativa, pediu ajuda num grupo português de apoio a refugiados no Facebook. E a ajuda chegou, para todos, numa aldeia da Golegã. “Até à última não acreditei.”

No primeiro dia dos seus três anos, Melissa começou uma fuga cujos contornos não entende bem. Hoje, em Portugal, as brincadeiras confirmam o regresso a uma infância segura

No final de cada dia, sentam-se todos na mesa ao ar livre, entre a casa amarela e o barracão com a tinta comida pelo tempo, onde Melissa passa horas a brincar consigo mesma. O vestido de riscas coloridas realça-lhe o louro do cabelo, o azul líquido dos olhos cheios de mundo por descobrir.

Mas o olhares dos mais velhos não escondem a preocupação. Os pais de Anna, Larysa e Oleksandr, sentem saudades. Os avós, Olena e Andrii, mostram rugas de resignação. Ainda assim, Anna e o irmão, que partilha o nome do avô, sorriem enquanto bebem chá.

Três dos homens da família têm trabalho: Oleksandr em casa, o sogro e o cunhado em empresas das redondezas. No campo nem sempre é fácil encontrar emprego, sobretudo quando não se fala a língua do país que os acolheu. O patriarca, Andrii, demora-se nas festas ao cão mais pequeno. Todos riem ao falar dele, um “Russkiy Toy” ou “pequeno cão russo”. Dizem que tem feitio de russo: é desconfiado, não se dá a qualquer um, parece estar sempre a preparar qualquer coisa que pode dar para o torto.

O cão mais pequeno da casa nunca para. E, também por isso, é alvo das comparações mais inusitadas com o inimigo russo. Foto: DR

“Quando cheguei a Portugal, até senti um grande alívio. Aqui estamos em segurança, a fazer uma nova vida”, diz Oleksandr Kovalchuk. A família sorri em volta da mesa, mas é outra terra que eles desejam. Enquanto não for seguro, ficarão em Portugal, a traçar planos para o regresso. Passaram seis meses desde o início da guerra. Quantos mais irão passar até poderem voltar? “Gostaria de ter algum pedaço de terra, alguma coisa, para qualquer dia podermos voltar para lá”.

A Ucrânia continua presente nas coisas mais simples. No terreno, crescem melancias, a fruta mais característica da cidade de Kherson, entretanto tomada pelos russos. Há girassóis, a flor nacional, em volta da casa. O pequeno León veste amarelo, a bisavó Olena azul. E, num abraço entre gerações, volta a formar-se a bandeira do país.

Como um passaporte português ajudou a família ucraniana de Oleksandr a fugir da guerra atravessando a Rússia
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