Teresa tem os olhos vermelhos, talvez do fumo que anda no ar e quase nos sufoca, talvez das lágrimas que lhe molham os olhos sempre que se lembra da aflição que sentiu: “Nunca tinha visto um incêndio, é muito quente, a gente não consegue respirar. O que eu passei esta noite não quero reviver nunca mais na minha vida.” Teresa trabalha numa fábrica de calçado, o marido, José, é técnico numa fábrica de cola. Moram há três anos e meio em Mosteiros, freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis, uma povoação encavalitada no monte, sempre a subir por ruas estreitas, rodeada de eucaliptos por quase todos os lados. “Viemos para aqui porque queríamos estar mais sossegados, temos as nossas galinhas e gostamos disto”, conta José. “Uma pessoa nunca pensa que vai acontecer uma coisa destas.”
O fogo chegou sem aviso na noite de terça-feira. “O primeiro foco foi no sábado à tarde, vieram os bombeiros e disseram que ficou apagado, mas não ficou, sempre teve fumo. Na segunda-feira já estava mais perto, quando vim do trabalho pela Nacional 224, vi-o e pensei: 'pronto, já não tenho casa'. Mas não. O meu marido dizia que não ia chegar, ele acha sempre que nada vai acontecer, mas eu já estava preocupada”, recorda Teresa, com uma mão no peito e a voz a tremer, ainda em choque.
Quando julgavam que o pior já tinha passado, o fogo apareceu no alto do monte e desceu por ali abaixo a toda a velocidade. “À meia-noite, vieram os bombeiros e mandaram-nos sair de casa.” Teresa e José não queriam ir, foram obrigados. “Fomos lá para baixo e ficámos ao relento até que nos deixaram voltar, não para casa, mas para podermos ficar cá fora, molhar a casa com a mangueira e tentar ajudar a combater o fogo. Os bombeiros ficaram do nosso lado, graças a Deus, se não não tínhamos conseguido.” Só quando o fogo amainou, pelas quatro da manhã, é que Teresa começou a sossegar. “Foi muito mau, muito mau.”
A casa de Teresa e José salvou-se mas uma das casas de Mosteiros foi completamente destruída pelas chamas. Felizmente era uma casa não habitada. Os bombeiros ficaram ali a trabalhar durante toda a manhã, até terem a certeza que já não havia perigo para a população. “Agora, vamos precisar da vossa ajuda”, pediu Paulo Carvalho, subchefe principal dos Sapadores do Porto, aos vizinhos, antes de abandonar o local, já depois das 11:00. “Precisamos que vocês façam parte deste trabalho que é a vigilância. Nós estivemos ali numa casa a acalmar mas não conseguimos apagar tudo porque tem muita carga de incêndio, vocês agora têm de ficar a vigiar e qualquer coisa avisam-nos. Vão descansar que já estão há muito tempo acordados, vai um dormir e outro fica a vigiar e depois troquem, façam essa gestão de esforço.”
Em Mosteiros - diz-se Mósteiros, tinha-nos avisado Adelina uns metros mais atrás - “quem não é de cá não sabe e depois vai para a televisão dizer mal” - ninguém dormiu. “Deitei-me um bocado às 7:30 da manhã e às 9:00 já estava levantada. Já não dormia bem e agora então é que não durmo nada.” Maria Adelaide tem 64 anos e garante que nunca viu nada assim. “Estávamos deitados e o fogo chegou de repente. A gente viu as casinhas todas, ai, Jesus, nem é bom pensar. Eu nem sei de onde ele chegou, chegou de todos os lados. Esta noite foi um pandemónio. Uma pessoa não sabe o que é o inferno, o inferno é isto.”
O sino da igreja toca em forma de melodia, "a 13 de maio" em forma de badaladas. Sentada à porta de casa, Maria da Graça junta as mãos em frente ao peito e olha para o céu: “Deus nosso senhor nos mande uma chuvinha.” A sua casa fica mesmo ao lado daquela que ardeu. A parede ficou chamuscada, o quintal está cheio de lixo, a torneira não deita água, ali ao lado ainda se ouve o crepitar do fogo. A família não ganhou para o susto, mas a casa ficou intacta. “Foi muito difícil, houve momentos em que pensei que não se ia salvar nada.” Ainda por cima, teve de sair dali, com a filha e os netos. “Eu não queria deixar a minha casa, já viu o que é?, mas quando temos crianças as prioridades são outras.”
Uma parte das pessoas deixou-se ficar na povoação, mas distante do fogo. Alguns idosos e crianças foram levados para a junta de freguesia de Santo António. “Tínhamos uns colchões, tínhamos comer, água, fomos muito bem recebidos”, conta Feliciana, colocando a cabeça de fora da janela para contar a sua história. Do terraço em cima, Cristina confirma: “Uma coisa é ver na televisão, outra é ter o fogo à porta de casa, tive tanto medo que até fiquei com as pernas a tremer.” “Só queria sair daqui. Nunca tinha tido tanto medo na minha vida.”
Já os homens não arredaram o pé. Pegaram em mangueiras, em pás, em enxadas, regaram telhados, abriram valetas e fizeram tudo o que estava ao seu alcance para que o fogo não chegasse às casas. “Um ladrão é mau, mas o fogo é pior”, conclui Maria da Graça. “Um ladrão leva o que quer mas deixa a casa, o fogo, se a gente não o parar, leva tudo. O fogo é o maior ladrão. Hoje estamos aqui e amanhã não sobra nada.”
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"Agora é que ficámos mesmo aqui sozinhos"
Na região de Oliveira de Azeméis, a manhã acordou sem sol, o céu tapado pelo fumo intenso, o cheiro a queimado a impregnar-se na roupa, na pele, cabelos. Cátia não se deixa intimidar. A contabilista de 33 anos, residente em Nespereira de Baixo, é presidente da Associação Desportiva, Recreativa e Cultural de Palmaz. Normalmente, a associação tem como principal preocupação a preservação do património cultural da região e manter o rancho que atua nas festas do concelho. Mas, nos últimos dias, Cátia transformou a sede da ADRC Palmaz numa cozinha e cantina para ajudar os bombeiros e todas as outras pessoas que precisassem. “Tinha de fazer alguma coisa, não podia ficar a ver isto acontecer e não fazer nada”, explica.
Com a ajuda dos vizinhos, nas últimas três noites a associação conseguiu entregar cerca 150 refeições aos bombeiros que estavam no terreno, para além daquelas que foram servidas na sede a quem ali apareceu. Fizeram frango estufado, carne de porco, febras, bifanas, arroz de forno, massa. “Pedimos a ajuda da população e tivemos muitos donativos e muitos voluntários”, conta a presidente, agradecida. “Tem sido muito duro para todos, mas sobretudo para os bombeiros que estão a fazer o melhor que podem e já estão exaustos. É o mínimo que podemos fazer por eles.”
Para ir para Vilarinho de São Luís, sai-se de Palmaz em caminho a Nespereira de Cima, e depois segue-se em direção oposta à que o GPS indicar. A aplicação, cuidadosa, insiste em afastar-nos das zonas ardidas. Temos de pedir indicações a quem por ali mora - "vire à esquerda no triângulo, depois é sempre a descer, passe a ponte e a menina vai ver a terra queimada". É impossível não ver. São quilómetros e quilómetros de terra queimada. O fogo passou por aqui sem pedir licença, devorando os enormes eucaliptos e toda a vegetação. De um lado e do outro da estrada, a paisagem não tem um único vestígio de verde, é tudo cinzento. Desolador. O chão ainda fumega. Sente-se o calor debaixo dos pés. No fundo do vale fica Vilarinho de São Luiz onde, por milagre, não ardeu nenhuma casa. Milagre não, "muito trabalho", apressa-se a explicar Deolinda, 65 anos, moradora, que ali está com a irmã mais nova, Rosa, e o cunhado Américo, vindos do Carvalhal.
Juntam-se à porta de casa e logo aparecem outros vizinhos. Não há outro assunto. O fogo tomou conta da terra, das conversas e dos pensamentos das pessoas de São Luís. “Na segunda-feira à tarde já se via o fogo na Felgueira, passou a tarde toda a lavrar, começou a avançar e em poucas horas chegou aqui”, conta Deolinda. “Nunca pensei que chegasse a esta dimensão. Foi uma loucura. Temos aqui pessoas com mais de 90 anos e nunca tinham visto nada assim”, relata. “Só ficou o lugar, o resto ardeu tudo. Foi assim em São Luís, na Felgueira, no Janardo, no Carvalhal, ardeu tudo.”
“A nossa sorte foram os bombeiros que aqui estiveram, nunca nos deixaram.” Assim que chegaram, os bombeiros perguntaram se havia pessoas acamadas, escolas ou lares. “Não temos nada, isto é um lugar pequeno, aqui não há nada, não há uma escola, um supermercado, um café. Ficamos aqui enfiados, longe de tudo.” Por causa do isolamento, Deolinda acabou por se mudar há 15 anos para o Luxemburgo, para onde os filhos já tinham emigrado em busca de um futuro melhor. “Isto aqui estava muito mau, não havia emprego.” Agora, mora entre cá e lá. “Calhou estar cá. Foi uma sorte.”
Antes dos bombeiros, os vizinhos já tinham andado com as mangueiras e, depois, continuaram ajudá-los; felizmente que, habituados a serem autónomos, quase todos têm tanques e furos. Toda a gente ajudou. “Passámos a noite dar-lhes cafés, leite, água, até o padre da igreja andou a distribuir águas, coitados, estavam todos tão cansados, mas nunca nos abandonaram.” Queimaram-se as terras mas “salvaram-se todas as casas, todas”. “A capela ainda esteve duas vezes em risco e as pessoas das casas que ficam assim nas pontas também apanharam um grande susto. O fogo passou rentinho, rentinho.” Medo? “Ai não que não tive, nem é bom pensar.”
O que ardeu já não arde, ouvimos dizer várias vezes por aqui. Mas não é bem assim. “A terra está quente, isto ainda vai demorar até estar livre de perigo”, diz Américo. Na véspera já houve uns reacendimentos no cimo do monte, Deolinda estava em casa e começou a ouvir os gritos dos vizinhos, foram todos acudir com as mangueiras e resolveram as situações. “Desde que o vento não se levante isto está controlado.”
Esta quarta-feira a temperatura diminuiu e o vento também parece estar a dar tréguas, há até previsões de chuva para os próximos dias. Agora é altura de avaliar os prejuízos. A um vizinho ardeu a lenha que ia vender agora para o inverno, um prejuízo de milhares de euros. A outro foi-se a horta, a outra um barracão que ficava “lá para o meio”. Deolinda não perdeu nada. Neste momento, só se queixa da falta de rede, o telemóvel está mudo, a internet não funciona, não adianta apontar os aparelhos ao céu, a fibra ótica ficou danificada. “Não temos notícias nenhumas, não sabemos do que se passa. Agora é que ficámos mesmo aqui sozinhos.”