Truques, táticas e segredos: como a Argentina venceu o Mundial de futebol nos penáltis
Emiliano Martínez Argentina  CNN

Truques, táticas e segredos: como a Argentina venceu o Mundial de futebol nos penáltis

Com os seus "jogos mentais", o guarda-redes argentino Emiliano Martínez influenciou o desempate por penalidades que deu à Argentina a vitória no Mundial. Há muito a aprender na psicologia dos penáltis.

Por Don Riddell

Um jogo de futebol dura 90 minutos, mais 30 se estiver empatado e houver necessidade de acabar com um vencedor. Se ainda estiver nivelado depois disso, então o jogo será decidido nos penáltis - talvez a experiência que mais deixa os nervos em franja, em todos os desportos.

Para os adeptos, é excruciante. No Campeonato do Mundo do Catar, uma adepta argentina soluçou incontrolavelmente enquanto olhava através dos dedos para os pontapés de grande penalidade nos quartos-de-final contra a Holanda. No final, parecia exausta. As emoções tinham-se esvaído, e as lágrimas que chorava eram de alívio, em vez de de alegria.

Para os jogadores, essas emoções são dez vezes mais intensas. “O amor dói”, diz a citação apócrifa, “mas não tanto como os penáltis”.

O sucesso ou fracasso pode definir uma carreira, um simples pontapé de 9,15 metros é medido pelas esperanças dos colegas de equipa e pelas expectativas de potencialmente milhões de adeptos. Como disse o escritor Karl Wiggins, “É como se, durante alguns segundos, a alma de um jogador fosse posta a nu para o mundo inteiro ver”.

Apoiantes argentinos aplaudem durante a final do Campeonato do Mundo contra a França, a 18 de dezembro de 2022. Foto EPA

Muito poucas pessoas admitirão gostar de ver um desempate por penáltis, mas o professor Geir Jordet é uma exceção: ele não se cansa deles.

“Um desempate por penáltis é um acontecimento muito desconfortável”, disz ele à CNN a partir das suas instalações de investigação em Oslo. “É doloroso. porque a pressão é tão intensa, e claro, porque as consequências de falhar são tão terríveis. Os penáltis, para mim, são maravilhosos!”

O professor Jordet trabalha na Escola Norueguesa de Ciências do Desporto, onde é especialista em desempenho sob pressão extrema. Estuda penáltis há quase 20 anos e já analisou mais de 200 desempates, num total de cerca de dois mil pontapés. Estudou a psicologia do acontecimento, observou o comportamento e a dinâmica dos participantes e compilou os dados para concluir que mesmo os desempates mais dramáticos podem ser influenciados por equipas que sabem o que estão a fazer.

“O principal fator num desempate por penáltis é a sorte”, declarou uma vez o antigo guarda-redes inglês Peter Shilton, mas Jordet está convencido de que nunca é “apenas uma lotaria”.

 

Penálti na final do Campeonato do Mundo (Foto AP)

 

Os penáltis são mais importantes do que nunca

A margem entre o sucesso e o fracasso nos jogos de título parece estar a ficar mais estreita, e por isso é nos desempates por penáltis, onde as margens são ainda mais apertadas, que os maiores prémios do futebol estão a ser decididos.

“Se entras hoje num grande torneio com a ambição de ganhar”, diz Jordet, “estarás a cometer um erro grave se não estiveres preparado para as grandes penalidades”.

Em 2021, tanto os homens brasileiros como as mulheres canadianas precisaram de vitórias nos penáltis no caminho para o ouro olímpico em Tóquio; no mesmo mês, a Argentina sobreviveu a um desempate por penáltis para ganhar a Copa América e a Itália triunfou da mesma forma no Campeonato Europeu em Wembley.

Luzes de apontadores laser podem ser vistos quando Mohamed Salah chuta no desempate por penáltis na final da Taça Africana das Nações em 2022, entre o Senegal e o Egipto. Foto AP Photo Stefan Kleinowitz

O ano seguinte foi uma bonança para as penalidades.

Começando em fevereiro com a vitória na final da Taça Africana das Nações do Senegal contra o Egipto. O Liverpool ganhou duas finais da Taça da Inglaterra - ambas contra o Chelsea – na marca da grande penalidade, enquanto o Real Betis e o RB Leipzig venceram as finais da Taça da Espanha e da Taça da Alemanha, respetivamente, da mesma forma. O Eintracht Frankfurt venceu o Rangers na final da Liga Europa nos penáltis, enquanto [nos EUA] o Philadelphia Union falhou todos os seus pontapés para entregar o título ao Los Angeles Football Club (LAFC) após uma extraordinária final da Taça MLS.

A festa de penáltis de 2022 terminou no Catar, onde houve um recorde de cinco eliminatórias, incluindo a final.

Bastam poucos segundos após o apito final para Jordet dizer se um dos lados está em vantagem. Ele é capaz de recolher informações valiosas simplesmente observando as interações no campo.

“O treinador e o staff de algumas equipas quase entram em pânico quando o jogo vai para penáltis”, explica Jordet à CNN. “Parece que não sabem o que fazer. E depois, com outras equipas, tudo é tratado antes do jogo e definitivamente antes dos penáltis”.

Jurgen Klopp foi aplaudido pela forma como conseguiu duas vitórias nos penáltis para o Liverpool na final da Liga e da Taça de Inglaterra. AP Photo/Ian Walton

A final da Taça de Inglaterra da época passada foi um caso exemplar; Jordet observou que o treinador do Liverpool, Jurgen Klopp, tinha estabelecido um plano e comunicou-o calma e calorosamente a cada um dos seus jogadores no espaço de 90 segundos após o apito final.

Eles passaram o tempo restante a interagir casualmente e até a rir. Muitos mais minutos já tinham passado quando o treinador do Chelsea, Thomas Tuchel, se aproximou dos seus jogadores, e ainda estava a rever as suas notas.

“Ele movimenta-se para o meio do círculo, ANTES de terminar o plano”, observou Jordet numa série de tweets, “Tuchel pergunta então aos seus jogadores sobre os pontapés, publicamente em frente de toda a equipa”.

“Há muita pressão de grupo quando se faz desta forma, a hipótese de ter respostas honestas dos jogadores diminui, e cria-se mais stress que depois prossegue nos pontapés de penálti em si”.

A organização eficiente do Liverpool significou que os jogadores foram capazes de assumir uma posição dentro do círculo central que estava mais próximo da sua equipa técnica, onde a Klopp continuou a exalar amor e calor.

O Chelsea falhou dois penáltis e o Liverpool ganhou o troféu.

A aula da final do Campeonato do Mundo de futebol

Ninguém pode influenciar mais os procedimentos num desempate por penáltis do que o guarda-redes, que está envolvido em cada um dos remates. A investigação de Jordet confirmou que os guarda-redes não estão lá apenas para parar os remates, podem também exercer uma influência positiva sobre os seus companheiros de equipa e uma força destrutiva para os seus adversários.

Nas últimas temporadas, o guarda-redes argentino Emiliano Martínez, de 30 anos, afirmou-se como um jogador que muda o rumo dos acontecimentos nos desempates por penáltis, o “Maquiavel do futebol”.

Jordet reparou que as suas travessuras psicológicas são um pesadelo para os seus oponentes. Durante a semifinal da Copa América contra a Colômbia em 2021, ele intimidou os adversários com conversa arrasadora, defendendo três penáltis numa vitória por 3-2.

Como os estádios estavam vazios nessa edição, Jordet notou que se podia ouvir claramente o que ele dizia: “Posso ver que estás nervoso. Sei para onde vais chutar. Observa e vê como te vou ‘comer’. Lembra-te, eu vou ‘comer-te’!"

Mas foi na final do Campeonato do Mundo contra a França que Martínez demonstrou toda a sua perícia.

Jordet diz que ele marcou o tom logo no início, chegando primeiro à área dos penaltis e reivindicando o território como seu. “Martínez adotou uma abordagem muito proactiva em relação a tudo”, explica Jordet.

“Ele criou a sua casa na área dos penáltis. Começou com alguns apertos de mão com os primeiros jogadores franceses que chegaram”, uma estratégia desarmante que faz com que os adversários baixem a guarda e os torna mais vulneráveis quando mais tarde ele atacar.

Os adeptos argentinos desempenharam o seu papel, exercendo pressão sobre os cobradores de penáltis franceses. AP Photo Martin Meissner

Para os dois primeiros penáltis franceses, Martínez começou discretamente a perturbar os jogadores, incitando o árbitro a verificar a colocação da bola na marca.

Este tipo de interferência seria inquietante para qualquer marcador de penáltis, mas ele também estava a sentir o árbitro: quanto estaria disposto a tolerar?

Jordet acredita que isto permitiu a Martínez assumir rapidamente um papel proactivo em apenas dois pontapés, e depois ele foi capaz de “começar a trabalhar em pleno”.

Martínez defendeu o segundo pontapé que enfrentou, mergulhando baixo à sua direita para negar o golo a Kingsley Coman, e a sua celebração foi exuberante.

Jordet observa que os guarda-redes não costumam celebrar de forma tão doida, mas a sua investigação demonstrou que as celebrações podem influenciar os acontecimentos subsequentes.

“Descobrimos, para nosso espanto, que os marcadores de penáltis que celebram intensamente têm uma probabilidade estatisticamente maior de acabar na equipa vencedora.”

“De facto, o marcador seguinte do adversário falha cerca de 10-15% das vezes, e o seu companheiro de equipa seguinte marca cerca de 7 a 8% a mais as suas penalidades. Estes tipos de exibições comemorativas são contagiosas”.

Na altura em que o terceiro jogador francês se apresentou, Martínez sabia que podia fazer quase tudo. Ele agarrou a bola, virou as costas ao árbitro e voltou para a sua linha de golo.

Ao aproximar-se, Aurélien Tchouaméni deveria estar a chegar ao momento mais alto da sua carreira quando encontrasse a bola na marca, mas, em vez disso, era Martínez que estava a segurá-la, gesticulando para os adeptos argentinos para aumentarem o volume do barulho.

Os fãs franceses mostram o seu apoio aos bleus durante a final do Campeonato do Mundo. AP Photo Natacha Pisarenko

Quando o árbitro exigiu o seu regresso, Martínez enrolou a bola num ângulo de 45 graus, obrigando Tchouaméni a ir buscá-la ele próprio. Jordet calculou que sempre que um jogador tem de esperar por um pontapé, a probabilidade de golo diminui de 20 a 30%.

Tchouaméni chutou baixo para a esquerda e falhou.

Nesta altura, Martínez sabia que os seus próprios companheiros de equipa poderiam enfrentar táticas semelhantes do guarda-redes francês, Hugo Lloris, pelo que ele próprio agarrou a bola e entregou-a ao seu companheiro de equipa, Leandro Paredes, um dos quatro marcadores argentinos de penáltis.

Martínez acabou por ser admoestado por interferir com o quarto jogador francês, Randal Kolo Muani, mas nessa altura o mal já estava feito e a Argentina venceu a desempate por penáltis por 4-2.

“Muito calculado, criativo, bem executado”, conclui Jordet, “mas, claro, também muito, muito cínico”.

Emiliano Martínez, da Argentina, tentou distrair Randal Kolo Muani antes do seu penálti. Julian Finney/Getty Images

Martínez mostrou muito pouco remorso pelas suas ações “cínicas”. Depois da final, ele disse: “Não tenho palavras para isso. Eu estava calmo durante a desempate por penáltis e tudo correu como queríamos”.

"Tudo aquilo com que sonhei foi alcançado".

Desde o fim do Campeonato do Mundo, o International Football Association Board (IFAB), que determina as leis do futebol, confirmou à CNN que procura esclarecer o que os guarda-redes podem e não podem fazer antes da marcação das grandes penalidades.

Isto incluirá questões como atrasar a marcação do pontapé ou tocar nos postes da baliza, na trave ou na baliza.

Mas os desempates por penáltis nem sempre têm de ser tão negativos; por vezes, podem ser vencidos com amor.

Jordet observa que quando Cristian Tello, jogador do LAFC, falhou o primeiro penálti contra o Philadelphia Union na final da Taça MLS, alguns dos seus companheiros de equipa foram ter com ele e acompanharam-no no regresso ao meio-campo. [Dessa forma] “está-se implicitamente a dizer aos outros que, mesmo que falhem, fazem parte do grupo, e essa é a mensagem que gostariam de enviar uns aos outros num desempate por penaltis”.

O Los Angeles marcou todos os outros pontapés de penálti e ganhou a taça.

O poder do intangível

Algumas equipas parecem divertir-se com o caldeirão dos penáltis, enquanto outras têm pavor dele.

Inglaterra perdeu sete dos 10 em que participou, enquanto a Holanda perdeu sete em oito. A derrota de Espanha para Marrocos em 2022 significa que já perdeu um recorde de quatro eliminatórias só no Campeonato do Mundo de Futebol da FIFA.

Jordet já viu o suficiente para acreditar em fantasmas; segundo ele, se a sua equipa perdeu num desempate por penáltis anterior, mesmo que você não tenha estado envolvido nele, é mais provável que falhe agora. Inversamente, o sucesso gera o sucesso.

Tendo perdido para a Checoslováquia e para o famoso penálti de Antonin Panenka na final do Campeonato Europeu em 1976, a Alemanha venceu seis desempates consecutivos, a Croácia ganhou as últimas quatro e a Argentina as últimas três, ganhando tanto a Copa América como o Campeonato do Mundo.

Cada vez mais equipas estão a aceitar que a compreensão da psicologia dos desempates por penáltis é essencial no jogo moderno, e 20 equipas profissionais já recorreram à consultoria da Jordet em busca de ajuda.

“Penso mesmo que há muito mais a descobrir nas áreas mais soft da ciência do desporto", diz Jordet, rejeitando os cínicos que afirmam que o desenvolvimento de competências, relações e psicologia são importantes mas não quantificáveis.

"Honestamente, gostaria de discordar. Se soubermos o que procurar, podemos medir muitas destas coisas em jogos, e isto é algo em que eu trabalho todos os dias. Penso que nos próximos anos faremos grandes progressos em algumas áreas ".

A equipa marroquina reuniu-se para uma oração antes de vencer Espanha no desempate em penáltis. Ganhou. AP Photo _ Julio Cortez

Jordet sabe muito sobre penáltis porque passou anos a percorrer arquivos, assistindo a cada um dos desempates do Campeonato do Mundo, Campeonato da Europa e Copa América desde 1976. Ele entrevistou 25 jogadores que lá estiveram e testou as suas previsões nos treinos com 15 equipas de elite.

“Adoro os penáltis”, diz ele, “acho que é o derradeiro drama do futebol”.

E, no entanto, grande parte das nuances que ele descreveu sobre a final do Campeonato do Mundo não teria sido óbvia para os adeptos que assistiram ao jogo na televisão, porque as estações de TV tendem a preencher o espaço entre os pontapés com repetições e grandes planos de treinadores e adeptos ansiosos.

“Os detalhes que realmente importavam, a subtrama do evento, só podem ser acedidos se se tiver a sorte de ter acesso a câmaras de transmissão isoladas ou percorrendo os vídeos dos fãs no YouTube. Os produtores de televisão nem sempre são meus amigos”, conclui Jordet, “porque não olham para aquilo que eu gosto de ver”.

Mas agora que as equipas começam a perceber o valor de pequenos detalhes nas filmagens, talvez as estações de televisão possam considerar a possibilidade de inovar a sua abordagem. O maior drama no desporto está a acontecer mesmo debaixo dos seus narizes, e por vezes elas perdem as melhores partes.

 

 

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