Sou crazy woman, eles eram sete assassinos
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Sou crazy woman, eles eram sete assassinos

DIÁRIOS DA GUERRA MARÇO 2022

DEPOIMENTO
Alina Nedashkivska
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira, em Bucha)

aviso: esta reportagem contém descrições e linguagem explícitas

Vejam isto, vejam este vídeo - foi a terceira coisa que fiz quando os jornalistas chegaram ao meu prédio: primeiro disse-lhes para entrarem, durante um mês tivemos medo que nos entrassem pela casa adentro, portanto dizer para alguém entrar tornou-se um ato de grande simbolismo; fiz-lhes café e a seguir peguei no meu telemóvel, vejam isto, vejam este vídeo, eu queria que eles vissem, quando os jornalistas veem depois muitas outras pessoas veem por eles, vejam isto, que este horror se saiba, sou a Alina Nedashkivska, tenho 42 anos e este vídeo foi gravado aqui em frente ao meu apartamento quando ocuparam Bucha, não foram russos nem soldados nem gente que ocuparam a minha cidade, Bucha foi ocupada por animais, vejam este vídeo, são cadáveres espalhados no chão, cadáveres ucranianos, olhem este homem em tronco nu com o braço direito torcido e o rosto desfigurado por um tiro, a bochecha direita intacta e a esquerda desfeita, o sangue, tanto sangue, ao lado dele está um homem morto de braços abertos como Jesus, a zona da anca furada por uma bala, e depois há um homem com as mãos atadas atrás das costas, está sem camisola também e na barriga vê-se um vazio aberto por uma bala, sangue ali e sangue na cara, o rosto dele está todo deformado de agressões, ANIMAIS, ANIMAIS, não eram russos nem soldados nem gente mas animais, e a seguir no vídeo está um homem de camisola azul com um capucho sobre a cabeça que não tem olhos na cara, tem buracos em vez dos olhos, tiros, deram-lhe tiros nos olhos, ANIMAIS, há outro cadáver com as mãos atadas, o corpo torcido e o rosto atingido a tiro, há mais, são 54 segundos de tortura e crime filmados aqui em frente a 5 de março.

Eu mostrei o vídeo aos procuradores que estão a recolher provas de crimes de guerra, dei-lhes outro ainda, os russos aqui em frente a dispararem de um tanque contra estruturas civis, éramos 20 pessoas neste complexo habitacional durante a ocupação, fiquei aqui o tempo todo, sou crazy woman, digo isto em inglês para os jornalistas perceberem, não precisam do tradutor deles para entenderem quem eu sou, crazy woman, eu, os russos não deixaram entrar ajuda humanitária quando ocuparam esta zona e por isso tivemos de nos arranjar, alguns vizinhos trouxeram-nos sacos grandes de batatas, fazíamos comida aqui para todos, sopa, comíamos uma vez por dia, não passámos fome mas passámos privações, não sabemos a quantidade de pessoas que morreram aqui, há corpos a serem encontrados todos os dias, corpos nos abrigos, corpos nas garagens de carros, encontram corpos em todos os sítios, os russos não nos deixavam enterrar os corpos mas os russos que tivemos aqui não eram todos iguais, houve uma primeira vaga deles, esses ainda eram gente, e uma segunda vaga, os animais, na primeira vaga de soldados não falávamos com eles, nós ficávamos aqui e eles ali, cada um na sua comunidade, mas de vez quando, quando os soldados ucranianos destruíam material deles ou matavam soldados russos, eles entravam nos tanques e em veículos militares e começavam a disparar aleatoriamente e entravam em casas.

  • Quando os russos saíram de Bucha, deixaram uma aldeia arrasada coberta de corpos. Foto: Felipe Dana/AP
    Quando os russos saíram de Bucha, deixaram uma aldeia arrasada coberta de corpos. Foto: Felipe Dana/AP
  • Nos dias seguintes, foram encontrados mais de 450 corpos de civis mortos. Foto: Felipe Dana/AP
    Nos dias seguintes, foram encontrados mais de 450 corpos de civis mortos. Foto: Felipe Dana/AP
  • Vítima do massacre de Bucha encontrado com as mãos atadas Foto: Vadim Ghirda/AP
    Vítima do massacre de Bucha encontrado com as mãos atadas Foto: Vadim Ghirda/AP
  • Homem passeia com o filho, em Bucha, depois da retirada russa. Foto: Vadim Ghirda/AP
    Homem passeia com o filho, em Bucha, depois da retirada russa. Foto: Vadim Ghirda/AP
  • Nadiya Trubchaninova, 70, sentada junto do corpo coberto do filho Vadym Trubchaninov, 48, morto por soldados russos em Bucha. Foto: Rodrigo Abd/AP
    Nadiya Trubchaninova, 70, sentada junto do corpo coberto do filho Vadym Trubchaninov, 48, morto por soldados russos em Bucha. Foto: Rodrigo Abd/AP
  • A mão de um dos corpos de civis encontrados mortos em Bucha Foto: Sergei Supinsky/AFP
    A mão de um dos corpos de civis encontrados mortos em Bucha Foto: Sergei Supinsky/AFP

Depois houve rotação de soldados, este segundo grupo caçava pessoas, eles chegaram de carro, de carro civil, eram sete que saíram de lá, estes animais começaram a disparar, a disparar sobre as pessoas, a disparar para o ar, disseram "saiam daqui todos, caralho, isto agora vai ser a sério", eles escondiam-se em todo o sítio, nas garagens, nas árvores, atrás dos caixotes de lixo, disparavam sobre as pessoas, civis, eram sete russos - não eram chechenos, eram russos, eu vivi sete anos em Moscovo, eu sei que eram russos -, eram sete, todas as manhãs, das 8:00 às 10:00, estes sete vinham até aqui de carro, saíam e começavam a disparar, a matar, eu relatei isto aos procuradores que vieram aqui, tínhamos de nos esconder dentro de casa, não podíamos passar pelas janelas que eles disparavam, durante cinco dias foi assim, no quinto dia eles vieram mais tarde, dois homens estavam na rua porque achavam que eles já não vinham, eles mataram um e feriram o outro na perna, eu ajudei este homem, coloquei-lhe uma tala, na verdade era um pedaço de madeira de uma árvore, havia tanto sangue, os ossos todos partidos, tanto sangue, e eu estive aqui o tempo inteiro com um machado, se eles entrassem aqui em minha casa era assim que me defenderia, a mim e à minha filha, ela tem 15 anos, está a dormir agora, mas antes de me despedir quero contar-vos uma história:

uma rapariga que era refugiada de Donetsk veio com os pais para Irpin em 2014, entretanto ela veio morar para Bucha, tinha cerca de 20 anos, estava aqui durante a ocupação, quando encontraram o corpo ela estava sem unhas nas mãos, tinha buracos de balas em duas pernas, torniquetes em ambas, havia vestígios de esperma de 10 pessoas diferentes dentro dela, 10 homens diferentes, 10, mataram-na, os pais dela decidiram contar isto no Facebook, deram entrevistas, por isso temos de nos lembrar para sempre do que aconteceu aqui, temos de contar às próximas gerações, contar-lhes que estes animais eram piores que os nazis, tenho a certeza que eles hão de ser castigados, acredito muito nas palavras que tatuei aqui no braço, Acreditar, Esperar, Amar.

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Quando estava a cortar lenha, Alina caiu e ali ficou. Um tanque russo passou e questionou-a sobre a arma. Em Bucha, ficou conhecida como a mulher que enfrentou os russos com um machado.
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Acreditar, esperar, amar. As palavras tatuadas no pulso debaixo da linha da vida. Fotos: Germano Oliveira
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