É de manhã em Cavada Nova, pequena aldeia de Águeda, de duas ruas só, colada à Estrada Nacional. Na segunda-feira, logo cedo, pelas seis horas da manhã, um grande incêndio varreu a povoação, queimou árvores, caminhos, um carro que estava parado na berma, mas só uma casa ficou totalmente destruída, uma pequena moradia logo no começo da rua, a poucos metros do que foi a Linha do Vouga.
António parece esperar, prostrado. Está na rua, à porta, sozinho, a porta deixa-a entreaberta, lá dentro só negrume e já nada do que foi uma casa. Acena. Haverá logo de recordar, acelerado — talvez a espera fosse de contar — mas sem lágrimas, sem expressão, como se relatasse distante, a manhã de horror que viveu um dia antes. "O fogo vinha da parte de Jafafe. Apercebi-me de uma grande chama, uma chama enorme. Só que o vento era de tal maneira forte, e as labaredas tão altas, que a chama quando caía ao chão incendiava tudo, a chama corria pela terra fora. Isto foi tudo tão rápido. Isto em 20 minutos ardeu. Ardeu tudo. As chamas envolveram a casa. Parecia um inferno.”
Não conseguiu reagir, travar a velocidade do incêndio. Desde logo, faltou água. “Na água não havia pressão. E quando os tubos derreteram, acabou. E a boca de incêndio, que instalaram há um ano, não funciona — nem os bombeiros conseguiram tirar. Não havia água”, lamenta.
Em aflição, confuso — “só ouvia gritos, gritos, as botijas de gás explodiam” —, fugiu como outros para a Estrada Nacional. “Mas percebi que a minha mulher não estava. E voltei. Ela tinha ficado presa na casa, porque foi tentar libertar os animais. Felizmente sobreviveu, cobriu-se de lençóis e escondeu-se debaixo da mesa. Os animais morreram, perdi seis gatos, um cão, uma cabra de estimação e um viveiro de pássaros. Quando entrei nem era bom de ver. Nem era bom.” É a primeira vez que se emociona. Diz que acabara de enterrar os animais, levando-os, à vez, sem vida, ao colo.
Repete que perdeu tudo. “Tudo, tudo, tudo. Tenho uns calções, uma camisa. Esta roupa que trago é do meu filho.” Por agora, vive em casa do filho, que fica logo em frente. Agradece e lamenta. “Eu tenho 67 anos… [pausa] É a segunda vez que um incêndio me leva tudo.” O primeiro incêndio foi em 1982, naquela mesma aldeia, mas noutra rua. “Mas aí era novo, tinha 22 anos. E agora? Tenho 67. Vivi em África, fui expulso em 1976. Aí também perdi tudo. Fui emigrante, sofri muito para ter este pouco que tenho. E agora?” Diz não ter vontade para recomeçar. “É desolador. Ainda não dormi. Não comi. Não tenho forças. Parece que ainda não sinto. Não tenho vontade de nada. Acho que nem dou conta de que isto me aconteceu, parece que não foi comigo. Quando hoje enterrei os meus animaizinhos, eu só queria ter uma escada para o céu.” O discurso é alterado subitamente. “Mas não posso… Não posso não querer fazer nada! E a quem Deus promete nunca falta. Agarro-me à fé. Vou conseguir ir para a frente. Nunca baixei os braços”, garante.
Convida a que entremos na casa. “Quando entrei, o que é que senti? Veja você, vejo com os seus olhos. Veja…” No interior, paredes rachadas, tectos caídos e sob ameaça de ruir, estilhaços de vidro no chão, um vento que varre e levanta poeiras, e levanta também um cheiro fétido — “eu ainda não enterrei a cabrinha, vou enterrar agora” —, nada se distingue. Somente o frigorifico, agora sem porta, tem cor, e nenhum alimento se queimou. “A casa está segurada, mas não vai dar para nada.” Voltamos ao exterior.
António diz que, eclodido àquela hora da manhã, “o fogo só pode ter sido crime”. Mas não culpa só os incendiários. “Eu não compreendo a existência de leis que obrigam à limpeza dos pinhais, em que quem não limpasse era multado, e ninguém limpa os pinhais, as estradas também não são limpas. Se não querem limpar [proprietários], a câmara que assuma, que fique com os terrenos, e que limpe ela. Mas, sabe, ninguém quer fazer esse trabalho, os municípios pagam mal e ninguém faz. Não podem pagar uma côdea. E, assim, o fogo acaba por fazer o trabalho dos homens. Não acha? Eu acho. Infelizmente.”