Petróleo, luxo, escravatura moderna, discriminação de mulheres e gays: o que precisa de saber sobre o Qatar
Trabalhador junto ao local onde se vai realizar o campeonato do mundo de futebol, em Doha, no Qatar. Foto: Jewel Samad/AFP via Getty Images

Petróleo, luxo, escravatura moderna, discriminação de mulheres e gays: o que precisa de saber sobre o Qatar

Daqui a duas semanas, um pequeno emirato do Golfo Pérsico estará no centro das atenções globais como palco do Mundial de Futebol. Sobra-lhe em petróleo e gás natural o que lhe falta em respeito pelos direitos humanos. De A a Z, o essencial sobre o Qatar e as polémicas deste mundial

Al Jazeera

Fundada em 2006, a Al Jazeera foi o primeiro canal de informação internacional sediado no Médio Oriente, com emissão em inglês e em árabe. É um projeto estatal, lançado com financiamento do governo qatari, embora tenha alterado entretanto a sua estrutura acionista com envolvimento de privados.

Copiando o modelo da CNN Internacional, e emitindo a partir de Doha, Londres e Washington, o canal tornou-se uma marca reconhecida pelo seu trabalho jornalístico com um olhar não ocidental. É muitas vezes o canal privilegiado por protagonistas árabes, em detrimento de televisões ocidentais - na guerra israelo-palestiniana de 2008, era um dos poucos canais a emitir em direto da Faixa de Gaza.

Apesar de ser por vezes acusada de ter um viés anti-ocidental ou anti-americano, a Al Jazeera tornou-se um dos mais eficazes instrumentos de softpower do Qatar, ajudando o país a projetar uma imagem de modernidade e moderação, o que não deixa de ser uma ironia tendo em conta as restrições à liberdade de imprensa no país (ver Jornalismo).

Bandeira

A bandeira do Qatar é bicolor, dominada por cor-de-vinho, ou vermelho acastanhado, do lado batente, que representa o sangue derramado nas guerras. O lado da tralha é branco, a cor da paz, numa faixa serrilhada com nove pontas, que representam os vários emirados da região: os oito emirados que integram, com o Qatar, os Emirados Árabes Unidos, mais o Bahrain.

Historicamente, a cor original da bandeira qatari, ainda antes da independência, era o vermelho, herdado da bandeira usada por Qatari ibn al-Fuja'a, líder da seita islâmica dos carijitas no século VII. Porém, o sol do deserto qatari queimava sempre a cor original, tornando-a mais escura e acastanhada. A solução foi adotar esta cor, conhecida como “Qatar maroon” (castanho do Qatar).

Uma criança segura a bandeira do Qatar durante o jogo da sua seleção contra a dos Emirados Árabes Unidos nos quartos de final da Taça das Nações Árabes Qatar 2021. Foto: Matthew Ashton/AMA/Getty Images

Corrupção

A escolha do Qatar como palco do Mundial de 2022 foi polémica desde o seu anúncio, em 2010. Tal como a escolha da Rússia para o torneio de 2018. As suspeitas de corrupção levantaram-se desde o primeiro momento. Durante dois anos, o Comité de Ética da FIFA investigou essas suspeitas, e não encontrou qualquer prova de que a candidatura do Qatar tenha pago subornos aos elementos da FIFA que escolheram o país para a organização do campeonato deste ano.

É verdade que se dá o caso de que muitos desses decisores, soube-se depois, serem mesmo corruptos - e terem tomado decisões perplexizantes e favoráveis ao Qatar (e à Rússia). Desde esse dia, 16 dos 22 membros que votaram estas decisões foram implicados ou investigados por alguma forma de alegada corrupção ou má prática. Os mais destacados deles todos: Sepp Blatter, então presidente da FIFA, Michel Platini, então presidente da UEFA, e Mohammed bin Hammam, qatari que era à época presidente da Confederação Asiática de Futebol. Todos entretanto caídos em desgraça, todos banidos do futebol.

Numa investigação publicada em 2011, o Sunday Times alegou que Bin Hammam tinha feito pagamentos a figurões do futebol internacional num total de 5 milhões de dólares através de dez fundos financeiros. Muitos outros negócios obscuros foram revelados, nomeadamente sobre lucros fabulosos de direitos televisivos oferecidos pela Al Jazeera. E há, claro, aquela fabulosa compra do Paris Saint Germain pelo emir do Qatar, depois de a França ter mudado o seu voto para o Qatar, com o apoio de Platini, e o envolvimento de Nicolas Sarkozy. O mesmo Sarkozy, recorde-se, que também se viu envolvido em acusações de corrupção e que chegou a organizar um evento no Eliseu juntando-se a Al-Tahni e a Platini. Podem ter sido só acasos. Afinal, a FIFA nunca descobriu um elo causal entre corrupção e a escolha do Qatar. Mas…

Por falar em mas... há poucos dias, uma investigação feita em Inglaterra revelou que, no último ano, diversos deputados britânicos de relevo receberam generosas prendas do Qatar, e começaram a defender a realização do Mundial naquele país. Segundo o jornal The Observer, foram quase 300 mil euros de prendas várias, incluíndo viagens sumptuosas ao Qatar, com alojamento em hotéis de luxo e bilhetes para corridas de cavalos. Por coincidência, esses deputados passaram, depois, a defender o Mundial do Qatar, incluíndo um parlamentar homossexual que considerou ser expeculação sem fundamento a acusação de perseguição a lésbicas e gays no país.

Nicolas Sarkozy e a mulher, Carla Bruni, na cerimónia de abertura do Museu Nacional do Qatar, em março de 2019. Foto: Karim Jaafar/AFP via Getty Images

Dinamarca

A Dinamarca é um dos países que nunca se conformou com a escolha do Qatar como país anfitrião do Mundial, tanto pela repressão do regime de Doha como pelos abusos de direitos humanos, nomeadamente o tratamento dado aos imigrantes que construíram os estádios e demais infraestruturas relacionadas com o evento desportivo (ver abaixo).

Como forma de protesto, a Federação Dinamarquesa de Futebol anunciou em 2021 que o equipamento da sua seleção teria uma "mensagem crítica" sobre o torneio. Assim será: em setembro, a federação revelou que os seus jogadores terão três equipamentos, todos monocolores, sendo um integralmente preto (os outros são vermelho - o equipamento principal - e branco). "A cor do luto", disse a Hummel, o fabricante do kit, ao apresentar a camisola negra que será o equipamento alternativo da Dinamarca. "Embora apoiemos a equipa nacional dinamarquesa até ao fim, isto não deve ser confundido com o apoio a um torneio que custou a vida a milhares de pessoas", vincou a marca desportiva.

Para além desta forma de protesto, a Federação da Dinamarca anunciou que todos os golos marcados nas várias competições de futebol do país durante o mês de novembro, desde os escalões amadores até aos profissionais, vão gerar dinheiro para ajudar os trabalhadores migrantes no Qatar. Cada golo valerá 10 coroas (cerca de 1,34 euros), e o valor amealhado será enviado para apoio aos migrantes que vivem no emirado em condições muito precárias. A federação estima que poderá recolher cerca de 70 mil euros.

A Dinamarca apresentou um equipamento todo em preto para o Mundial do Qatar, em homenagem aos trabalhadores que morreram nas obras de preparação do evento. Foto: Darko Bandic/AP

Emir

O Qatar é uma monarquia absoluta. O poder é concentrado no emir , um cargo hereditário equivalente a rei. O emir escolhe o governo, indica um terço do Conselho Consultivo que funciona como órgão legislativo (normalmente, seguindo propostas do próprio emir ou do seu governo) e tem a palavra final sobre o funcionamento do aparelho judicial. O atual chefe de Estado, o Xeique Tamim Bin Hamad al-Thani, tem mantido a tradição de apontar sobretudo familiares como membros do governo. Os partidos políticos estão proibidos e a eleição de dois terços do Conselho Consultivo (que aconteceu pela primeira vez no ano passado, após anos de adiamentos) é amplamente dominada pelo próprio emir.

Tamim bin Hamad al-Thani, de 42 anos, é o emir do Qatar desde 2013, quando o seu pai abdicou do poder. Tamin é o quarto filho de Hamad bin Khalifa, mas tornou-se príncipe herdeiro em 2003, quando o seu irmão mais velho abdicou dessa condição. Como o segundo e terceiro filhos de Hamad não reuniam as condições para a sucessão (segundo a revista The Economist, “um jogava demais, outro rezava demais”), Tamim tornou-se a escolha natural e protagonizou uma sucessão pacífica, ao contrário do seu pai, que subiu ao trono em 1995 através de um golpe de Estado, pelo qual derrubou o seu pai (e avô de Tamim), Khalifa bin Hamad al-Thani.

O atual emir é considerado bastante conservador nos costumes (é próximo da Irmandade Muçulmana), mas tem promovido diversas reformas estruturais no país, desde mudanças administrativas, tornando o país menos burocrático, a grandes investimentos em infraestruturas, incluindo em redes de transporte, agricultura e indústria, mas também em saúde e educação. Observadores independentes garantem que Tamim é um líder bastante popular, com amplo apoio da população qatari, apesar das limitações às liberdades individuais existentes no país.

O líder máximo do Qatar também tem desenvolvido esforços para elevar o perfil internacional do seu país - e, nessa frente, tem jogado várias vezes a cartada desportiva. Não só conquistou o Mundial de Futebol, como tem organizado outros grandes eventos internacionais. Tamim também fundou, com dinheiros públicos, o fundo de investimento que é o atual proprietário do clube francês Paris Saint-Germain.

Em outubro, o sheik Tamin bin Hamal esteve com Vladimir Putin numa cimeira regional no Cazaquistão, a quem agradeceu a ajuda na organização do campeonato do mundo de futebol. Foto: Vyacheslav Prokofyev/Sputnik/AFP via Getty Images

Forças Armadas

O Qatar canaliza 4% do seu PIB para as forças armadas, o que o coloca no top 20 dos países que adjudicam ao orçamento da Defesa uma maior fatia da riqueza nacional. Esse valor tem crescido sustentadamente ao longo dos últimos anos. O emirado tem serviço militar obrigatório e conta atualmente com cerca de 15 mil militares no ativo - porém, na sua maioria são soldados estrangeiros contratados, para contornar as limitações de pessoal de nacionalidade qatari. Sob a liderança do atual emir, Doha tem investido na modernização do seu equipamento, com compras volumosas de material de última geração de fabrico norte-americano e europeu (sobretudo francês).

O Qatar é um importante aliado militar dos EUA e da Europa na região do Golfo, e em Washington tem o estatuto de Grande Aliado Não-NATO, o que vale benefícios militares e económicos na relação com a administração norte-americana. Fica no Qatar o quartel-general regional do Comando Central dos EUA, e estão estacionados no país 8 mil soldados norte-americanos, distribuídos por várias bases, incluindo na importante Base Aérea Al Udeid. Para além dos militares dos EUA, o Qatar também acolhe cerca de 5 mil soldados turcos. O emirado participou na primeira Guerra do Golfo ao lado dos países ocidentais, tendo acolhido algumas das principais bases da aliança.

Gás natural

O Qatar tem as terceiras maiores reservas mundiais de gás natural. As reservas confirmadas excedem os 25 biliões de metros cúbicos, ou seja, 13% das reservas confirmadamente existentes em todo o mundo. O país tem em curso um grande projeto de expansão de exploração de gás natural liquefeito (GNL) no North Field East, que deverá iniciar a produção em 2025. As receitas previstas dessa exploração deverão empolar ainda mais as contas nacionais. 

História

O Qatar é um país independente desde 3 de setembro de 1971, quando deixou de ser uma das muitas colónias britânicas no Médio Oriente. À semelhança do que acontecia nas outras colónias que tinham na região, os britânicos comandavam as relações externas do pequeno emirado e garantiam a sua segurança, em troca da exploração do petróleo e da produção de pérolas. Mas deixavam a administração do território nas mãos da família Thani, de que o atual emir é descendente.

Pouco se sabe sobre a história da península que é hoje o Qatar até ao século XVIII. A origem do nome Qatar é incerta, mas data de há pelo menos 2 mil anos, quando "Catharrei" foi utilizado para descrever os habitantes da península por Plínio, o Ancião (século I d.C.). No século II d.C. um mapa de Ptolomeu representa a península como "Catara". Segundo a Encyclopedia Britannica, era território de nómadas beduínos e de pequenas vilas piscatórias, onde os mergulhadores apanhavam pérolas.

Com vizinhos de maior destaque, como o Kuwait e o Bahrein, o Qatar existiu relativamente despercebido do mundo, sob o governo de diversas famílias, até meados do século XIX. Em 1868, um acordo entre o Reino Unido e um dos líderes locais - Mohammed bin Thani - lançou as bases para o domínio britânico, em parceria com a dinastia al-Thani, que governa o território desde então.

Os proveitos da exploração petrolífera estiveram na base de conflitos na família al-Thani, quase sempre resolvidos pela intervenção britânica, mas não há registo de grandes tensões entre a dinastia governante e as autoridades britânicas. Quando, no início da década de 1970, começaram os protestos populares contra a potência colonial e contra a família real, já Londres havia anunciado a sua retirada dos protetorados do Golfo. Os al-Thani garantiram a sua perpetuação no poder declarando a independência, que foi negociada com os britânicos, sendo assinado um tratado de amizade bilateral.

Imigrantes

Cerca de 90% da população do Qatar são imigrantes, na sua maioria do Sudeste Asiático, mas também da África Oriental. Grande parte destes imigrantes são homens sozinhos que chegam para trabalhar na construção civil, mas também em serviços de segurança e ligados à hotelaria e restauração. Há pelo menos duas décadas que os migrantes garantem a mão de obra necessária para o desenvolvimento infraestrutural do Qatar. As mulheres migrantes, em menor número, dedicam-se sobretudo a serviços de baby sitting e a trabalhos domésticos.

Numa sociedade fortemente hierarquizada, a mão de obra imigrante não qualificada está no fundo da pirâmide social, muitas vezes privada de direitos sociais básicos. Um relatório da ONU, divulgado em 2020, denunciou “sérias preocupações sobre racismo estrutural e discriminação contra não-nacionais” no Qatar, identificando o que qualificou como a existência “de facto de um sistema de castas”. O problema agravou-se com a conquista da organização do Mundial 2022: cerca de 30 mil imigrantes entraram no país para a construção de estádios e outras infraestruturas relacionadas com a competição.

Várias organizações não governamentais internacionais que monitorizam o respeito pelos direitos humanos denunciaram um rol de abusos sobre estes migrantes: condições de trabalho próximas da escravatura, salários abaixo dos mínimos de existência (até há pouco tempo não existia salário mínimo no país), muitas vezes com trabalho forçado e confisco de passaportes para impedir as pessoas de procurar outros empregos mais dignos ou mais bem pagos, ou, simplesmente, para não deixar que abandonem o trabalho para o qual haviam sido contratados. A lei do Qatar impedia que os trabalhadores mudassem de emprego sem a autorização do patrão e só este ano, por pressão internacional, essa regra foi anulada, mas há fortes indícios de que a prática continua em vigor.

Por outro lado, muitas mortes de trabalhadores nos estádios do Mundial ficaram por documentar ou explicar, apenas denunciadas por testemunhas e compiladas por ONG que investigaram estes casos, apesar da perseguição das autoridades qataris. Tanto o Qatar como a FIFA rejeitaram estas alegações (ver X).
 

Cerca de 30 mil imigrantes entraram no país para a construção de estádios e outras infraestruturas relacionadas com o mundial. Foto: Jewel Samad/AFP via Getty Images

Jornalismo

Num regime autoritário como é o Qatar, há pouco espaço para liberdade de imprensa. Em 2015, dois jornalistas da BBC foram presos enquanto investigavam as condições dos trabalhadores migrantes no Qatar, e, em novembro do ano passado a história repetiu-se com três jornalistas noruegueses.

A censura do Estado é real e atuante, bem como a censura dos proprietários dos meios de comunicação social, normalmente ligados às famílias que compõem a elite do país. A autocensura é uma prática comum dos jornalistas qataris, que enfrentam penas de prisão por difamação e uma quantidade de outros crimes tipificados de uma forma que permite um alto grau de aleatoriedade na sua aplicação.

A partilha de “notícias falsas” também é crime punível com prisão - e a lei deixa uma grande margem de manobra para o entendimento sobre o que são notícias falsas. O site Doha News, um dos poucos meios de comunicação social independente que surgiram no país, foi bloqueado em 2020.

As regras impostas pelo Qatar para a cobertura do Mundial têm diversas proibições e restrições - impedindo, por exemplo, os jornalistas estrangeiros de entrevistar pessoas nas suas casas ou de mostrar as condições em que vivem no país os trabalhadores migrantes.

Liberdades

A Amnistia Internacional chamou-lhe “o Campeonato do Mundo da Vergonha” por ser realizado num país que despreza os direitos humanos e as liberdades básicas. “Não livre” é o rótulo colado ao Qatar pela Freedom House, um dos think tanks mais importantes do mundo na avaliação da liberdade em cada país. Numa nota de zero a 100, o Qatar recebe 25 no relatório de 2022.

“O emir hereditário do Qatar detém toda a autoridade executiva e legislativa e, em última análise, controla o poder judicial. Não são permitidos partidos políticos, e as únicas eleições são para um conselho municipal consultivo. Embora os cidadãos do Qatar estejam entre os mais ricos do mundo, a maioria da população é constituída por não cidadãos sem direitos políticos, poucas liberdades civis, e acesso limitado a oportunidades económicas”, lê-se no documento.

Mulheres

As leis do Qatar seguem uma interpretação fundamentalista do Islão, de acordo com o wahabismo. O que significa, no caso das mulheres, que estas são sempre discriminadas e secundarizadas face aos homens, que têm uma tutela legal sobre as mulheres. Este sistema de tutela significa que as mulheres vivem sempre na dependência de um tutor masculino, geralmente o seu pai, irmão, avô ou tio, ou o marido, no caso das mulheres casadas.

As mulheres não têm autonomia para tomar nenhuma decisão importante para a sua vida - seja sobre estudo ou trabalho, casamento ou viagens ao estrangeiro, ou mesmo sobre cuidados de saúde reprodutiva. Segundo a Amnistia Internacional (AI), as leis familiares discriminam as mulheres, dificultando-lhes o divórcio, e “as mulheres divorciadas [são] incapazes de agir como tutores dos seus filhos”. A Human Rights Watch publicou um relatório sobre as discriminações que as mulheres continuam a sofrer, e o governo prometeu investigar…

A este propósito, a AI relatou o seguinte caso: “Noof al-Maadeed, uma mulher de 23 anos do Qatar que pediu asilo no Reino Unido, citando abusos familiares, decidiu regressar ao Qatar depois de procurar obter garantias das autoridades. Começou a documentar a sua viagem nas redes sociais, mas foi vista pela última vez a 13 de outubro, depois de ter denunciado ameaças da sua família à polícia. Apesar das garantias das autoridades de que estava a salvo, o seu paradeiro continua desconhecido, suscitando receios quanto à sua segurança.”

Sem direitos de expressão, manifestação ou associação, muitas mulheres acabam por recorrer às redes sociais para denunciar as discriminações e limitações de que são alvo e acabam, por isso, por ser alvo de bullying online que chega às ameaças de morte.

No Qatar, as mulheres são sempre discriminadas e secundarizadas face aos homens, que têm uma tutela legal sobre elas. Foto: Jewel Samad/AFP via Getty Images

Números

População: 2.508.182 
População não qatari: 88.4%
Coordenadas: 25 30 N, 51 15 E
Área: 11,586 km2
Terreno agrícola: 5,6%
Terreno com colheitas permanentes: 0,2%
Floresta: 0% 
Média etária: 33,7 anos
Esperança de vida: 79,8 anos
Mortalidade infantil: 6,62 mortes/1.000 nascimentos
Orçamento de saúde: 2,9% PIB
Médicos por mil habitantes: 2,5
Taxa de literacia: 93,5% 
PIB: 245,66 mil milhões de dólares (em paridade de poder de compra)
PIB per capita: 85.300 dólares

Orgulho

Jogadores de pelo menos nove seleções presentes no Qatar anunciaram o propósito de usar uma braçadeira arco-íris durante os jogos, como forma de mostrar apoio à comunidade LGBTQI+, que é duramente perseguida e reprimida no país, cujo sistema jurídico foi moldado de acordo com a lei islâmica e proíbe o relacionamento íntimo com pessoas do mesmo sexo. A FIFA ainda não deu a sua aprovação ao uso da braçadeira, mas os jogadores da Inglaterra já disseram que pretendem usá-la independentemente disso. Um dos mais vocais sobre este assunto tem sido o capitão da seleção inglesa, Harry Kane, que já recebeu o apoio do governo britânico nessa intenção.

Harry Kane, capitão da seleção inglesa, disse que iria usar uma braçadeira com as cores do arco-íris no Qatar. Foto: James Williamson/AMA/Getty Images

Também dezasseis jogadores australianos fizeram um vídeo coletivo em que manifestaram a sua preocupação sobre a impossibilidade das pessoas LGBTQI+ do Qatar "amarem a pessoa que escolhem". A organização do Campeonato do Mundo respondeu às críticas dos Socceroos defendendo o historial do país em matéria de direitos humanos, mas reconhecendo que "nenhum país é perfeito".

Segundo um relatório divulgado no mês passado pela ONG de defesa de direitos humanos Human Rights Watch, as forças de segurança do país têm como prática habitual a prisão arbitrária de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais, sujeitando-os muitas vezes a diversos tipos de maus-tratos durante a detenção. A comunidade LGBTQI+ é obrigada a manter em segredo a sua vida afetiva e sexual, esperando que as suas práticas íntimas nunca sejam denunciadas por outros. De acordo com o mesmo relatório, os habitantes do Qatar que apoiem as causas de “orgulho gay” enfrentam perseguição judicial e penas de prisão.

A discriminação desta comunidade tem sido um dos focos de maiores críticas de organizações internacionais e jogadores profissionais, com grande pressão para que a FIFA garanta a não perseguição de gays e lésbicas que visitem o Qatar para assistir ao campeonato do mundo. O mais que as autoridades de Doha cederam foi na garantia de que casais de pessoas do mesmo sexo poderão dar as mãos em público sem serem molestados pelas autoridades. Alegadamente, também serão permitidas as bandeiras arco-iris, conotadas com os movimentos de orgulho LGBTQI+ (um progresso, tendo em conta que ainda no ano passado as autoridades apreenderam diversos objetos com as cores do arco-íris, considerando-os não-islâmicos).

“Desde que não façam nada que prejudique outras pessoas, se não estiverem a destruir propriedade pública, desde que se comportem de uma forma que não seja prejudicial, então todos são bem-vindos e não têm nada com que se preocupar", disse Nasser al-Khater, CEO do Qatar2022. Porém, o mesmo representante tem insistido que um evento desportivo não deve servir como “plataforma para afirmações políticas”, como considera ser a defesa da autodeterminação sexual. E ativistas no terreno dão conta de que toda a pressão internacional está a ter um efeito boomerang, com demonstrações de homofobia a crescer, e a população a mostrar-se ainda mais hostil para com casais dos mesmo sexo.

Petróleo

A Península do Qatar tem uma localização estratégica no Golfo Pérsico, perto de grandes depósitos de petróleo, o que faz do Qatar o terceiro país com maior nível de reservas de petróleo do mundo. Atualmente os poços de petróleo qataris produzem mil e novecentos milhões de barris por dia, o que coloca o país no 14.º lugar do ranking dos maiores produtores globais. As reservas de petróleo excedem os 25 mil milhões de barris, permitindo que a produção continue aos níveis atuais pelas próximas décadas. 

Quente

Uma das principais razões por que parece absurdo fazer um mundial de futebol no Qatar é o clima. O país é desértico e as temperaturas no verão - quando costuma realizar-se o campeonato - atingem facilmente os 50 °C à sombra, o que torna desaconselhável a prática de desporto em geral, e de futebol em particular.

Essa evidência obrigou à estranha ginástica de calendário que empurrou o Mundial para novembro/dezembro, cortando ao meio os campeonatos nacionais de futebol. Em todo o caso, a temperatura média durante o mês de realização do torneio deverá andar pelos 22 a 27 ºC, com máximas que poderão chegar aos 30 ºC.

Riqueza

O Qatar é o terceiro país mais rico do mundo, de acordo com o PIB per capita. O petróleo e o gás natural são os principais recursos do país, e a razão da sua imensa riqueza. O recurso indiscriminado a mão de obra migrante muitas vezes tratada em condições de quase escravatura também tem beneficiado a economia do país, ao mesmo tempo que o sujeita à censura internacional.

Sem dificuldades financeiras, o Estado tem lançado ambiciosos projetos de obras públicas e construção de infraestruturas que têm catapultado as condições de vida sobretudo na capital, Doha.

O Mundial 2022 foi um dos motores desses investimentos, ainda que, nos últimos anos, a queda dos preços do petróleo e gás tenham colocado alguma pressão sobre o défice público. Apesar do peso do petróleo no panorama económico qatari, o atual emir tem procurado diversificar os setores não-petrolíferos, nomeadamente a indústria, construção, pescas, turismo e serviços financeiros. O gás natural também está em pleno boom. Outros produtos e atividades que têm ganho peso na carteira económica do Qatar: petroquímica, fertilizantes, aço, cimento e reparação naval.

Softpower

Rodeado de países mais poderosos, com os quais nem sempre tem uma relação muito fácil, o Qatar tem investido no seu poderio militar, mas também na capacidade de influência e de projetar o seu nome na arena global. Segundo os observadores da geopolítica do Golfo e Médio Oriente, o Qatar é, de longe, o Estado daquela região que mais investiu em softpower, e que mais proveitos tem retirado desse investimento.

O instrumento mais visível desse softpower, financiado pelos lucros aparentemente infinitos do petróleo e do gás, foi a afirmação de Doha como hub mediático global, desde a criação da Al Jazeera. A organização do Mundial 2022 é outro sinal dessa capacidade de afirmação global, bem como uma sucessão de eventos desportivos internacionais que tiveram lugar na capital qatari. Os próximos poderão ser os Jogos Asiáticos.

A aposta num papel de liderança regional começou durante a liderança de Hamad bin Khalifa al-Thani, o pai do atual emir. Foi por sua iniciativa que o Qatar se colocou como mediador de algumas disputas regionais, nalguns casos com bons resultados. Para a projeção dessa imagem também contribuiu o riqueza per capita no país, que tem garantido total estabilidade política mesmo durante a vaga de protestos cívicos que varreu outros países da região, no movimento conhecido como Primavera Árabe.

Em 2011, quando esse protestos agitavam diversos países, o Qatar colocou-se mesmo do lado dos movimentos populares, sobretudo apoiando os protestos na Líbia e na Síria. Esse posicionamento, bem visto no Ocidente, custou, no entanto, uma década de tensões com alguns dos países vizinhos.

Em 2021, o Qatar entrou no circuito mundial da Fórmula 1 com a realização do Grande Prémio do Qatar. Foto: Dan Istitene/Formula 1 via Getty Images

Treinadores

“Minhas senhoras e meus senhores, FIFA, UEFA, párem!”, dizia em agosto Jurgen Klopp, o treinador do Liverpool, comentando a atribuição do Campeonato do Mundo ao Qatar e as consequências dessa decisão. Klopp tinha sido questionado sobre a inédita interrupção dos campeonatos nacionais em novembro/dezembro, para permitir fazer o Mundial num país com clima desértico, e o treinador alemão não teve dúvidas em afirmar que “este campeonato acontece no momento errado, pelas razões erradas”.

Têm sido inúmeras as críticas de treinadores de todo o mundo à escolha do Qatar. Juntando a sua voz às de muitos outros, Klopp comparou esta decisão da FIFA às questões das alterações climáticas: “por muito que toda a gente diga que não está certo, ninguém fala suficientemente sobre isso”.

Louis van Gaal, selecionador holandês, já tinha dito que o Mundial no Qatar é “ridículo”: "É ridículo que tenhamos de jogar num país… como é que a FIFA o diz?... para desenvolver o futebol lá. Isso é uma treta. Mas não importa - trata-se de dinheiro, de interesses comerciais. Esse é o principal motivo da FIFA.”

Mas também muitas federações têm partilhado as críticas. Um exemplo: em março deste ano, num evento cuidadosamente coreografado da FIFA em Doha, Lise Klaveness, presidente da Federação Norueguesa de Futebol, fez estalar o verniz, ao denunciar os atropelos do Qatar aos direitos humanos, criticando, mais uma vez, a atribuição do campeonato do mundo ao emirado, e apelando à FIFA para fazer mais para apoiar as famílias dos trabalhadores migrantes que morreram ou ficaram feridos ao trabalhar no projeto. "Em 2010, os Campeonatos do Mundo foram atribuídos pela FIFA de formas inaceitáveis, com consequências inaceitáveis." Os direitos humanos, a igualdade e a democracia - os interesses fundamentais do futebol - não estavam no onze inicial... Estes direitos básicos foram empurrados para o campo como substitutos, principalmente graças a vozes externas.

A FIFA abordou estas questões, mas "há ainda um longo caminho a percorrer", disse a responsável norueguesa. Em resposta, o representante qatari recomendou que Klaveness se informasse melhor sobre o seu país.

Ucrânia

A guerra da Ucrânia significou boas notícias para o Qatar. Os preços dos combustíveis, que caíram para níveis históricos durante a pandemia, dando uma machadada nas contas do país, estavam aos poucos a recuperar, quando a invasão ordenada por Putin os fez disparar. Tanto os preços do petróleo como do gás natural liquefeito saltaram para níveis imprevisíveis pouco antes, e o impacto refletiu-se de imediato nas finanças do terceiro país com as maiores reservas de crude e de gás natural.

Segundo Allen James Fromherz, historiador especializado em Médio Oriente e com obra publicada sobre o Qatar, “a par dos Estados Unidos, o Qatar é um dos grandes fornecedores e alternativa à [energia fornecida pela] Rússia”. Neste contexto, o Qatar tornou-se “vital” para os interesses da Europa, que quer cortar com a energia de origem russa, disse Fromherz à Euronews.

Na fratura entre as democracias de tipo ocidental e a Rússia, provocada pela invasão da Ucrânia, o Qatar tem tomado o lado dos EUA e restantes aliados, embora seja pouco vocal na condenação de Moscovo. Na recente resolução da Assembleia Geral da ONU condenando os falsos referendos da Rússia em quatro regiões ucranianas anexadas, e exigindo a reversão da suposta anexação russa desses territórios, o Qatar votou a favor desse texto, tal como todos os membros do Conselho de Cooperação do Golfo - que inclui o Bahrain, Kuwait, Omã, Qatar, Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.

Entretanto, apesar das boas relações que o Qatar mantém com o Ocidente, o emir fez questão de se encontrar em setembro passado com Vladimir Putin, para se dizer “orgulhoso” da relação entre o seu país e a Rússia. Al-Thani reuniu-se com o ditador russo à margem de uma cimeira internacional em Astana, e agradeceu o apoio à organização do Mundial de Futebol por parte da Rússia, anfitrião do último campeonato do mundo. Contrariando o isolamento internacional da Rússia, al-Thani esforçou-se por elogiar Putin, passando ao lado da invasão russa da Ucrânia. "Agradecemos-lhe por isto e estamos orgulhosos desta relação. (...) Estou muito feliz por o ver, Senhor Presidente. Obrigado". Segundo a agência Reuters, nenhum dos dois líderes especificou de que forma a Rússia ajudou o Qatar a acolher o Campeonato do Mundo de Futebol.

Veneza

Há uma espécie de Veneza em Doha, e esse facto espelha, melhor do que qualquer outro, o luxo, a extravagância e a opulência que são a imagem de marca da capital qatari, sobretudo nas zonas de construção mais recente, projetadas por arquitetos de renome, financiadas sem restrições de custos pelos milhões dos petrodólares, e servidas por um sistema de metropolitano topo de gama, hotéis de luxo e restaurantes com estrelas Michelin.

A capital do Qatar concentra cerca de 80% da população do país - e neste número incluem-se tanto os nacionais qataris, como os imigrantes que são as esmagadora maioria dos residentes. Mas, enquanto estes vivem em condições sub-humanas, longe dos olhares dos visitantes, os qataris mais ricos esbanjam fortunas em zonas de construção recente, sejam os bairros de arranha-céus futuristas ou a ilha artificial conhecida como “A Pérola”, que é uma das zonas mais turísticas da cidade, construída nas águas do Golfo Arábico. É aí que se pode encontrar o bairro Qanat, uma nova Veneza atravessa por canais e pontuada por piazzas com edifícios em tons pastel - segundo a propaganda, é o local onde se cruzam “o charme de Veneza” e “o chic árabe”.

O bairro Qanat, uma nova Veneza em Doha. Foto: Dominique Berbain/Gamma-Rapho via Getty Images

X

É uma incógnita o número de trabalhadores que morreram na construção das insfraestruturas que permitem ao Qatar receber o Campeonato do Mundo. Em fevereiro de 2021, uma investigação do jornal inglês The Guardian estimou que mais de 6.500 trabalhadores imigrantes terão morrido nos 10 anos desde que o Qatar foi anunciado como o país anfitrião do Mundial de 2022. Apesar do forte controlo sobre a informação e das restrições ao trabalho de investigação no Qatar, diversas organizações internacionais de direitos humanos têm apontado para números semelhantes ou até superiores.

Tanto o governo qatari como a FIFA desmentiram esses números. O emir al-Thani denunciou mesmo, em outubro, que estas informações se integram numa “campanha sem precedentes” contra o seu país.

Uma investigação do jornal inglês The Guardian estimou que mais de 6.500 trabalhadores imigrantes terão morrido em 10 anos. Foto: Jewel Samad/AFP via Getty Images

Zero

A organização do Qatar2022 prometeu que este seria o primeiro mundial de futebol com o selo “carbono zero”, colocando uma fasquia para os futuros campeonatos do mundo e outros grandes eventos desportivos.

"Alcançar a neutralidade carbónica é um processo composto por quatro componentes-chave", explicaram os organizadores. "Em primeiro lugar, exige uma maior sensibilização dos principais interessados, incluindo o público em geral. Em seguida, criámos uma estimativa detalhada do que será a nossa pegada de carbono. O terceiro passo é o que a maioria das pessoas irá ouvir falar, e são as medidas tomadas para limitar as emissões de carbono, que nos conduzirão à parte final do processo, que é investir em projetos verdes que irão compensar quaisquer das restantes emissões associadas ao Qatar 2022".

Mas há cada vez mais dúvidas sobre a eficácia das medidas e fiabilidade das projeções feitas e o rigor dos dados que têm sido divulgados publicamente. Em Junho de 2021, a FIFA declarou que apenas durante o torneio serão produzidas 3,6 milhões de toneladas de dióxido de carbono - ou seja, mais 1,5 milhões de toneladas do que o total produzido na Rússia em 2018, e mais do que alguns países libertam num ano inteiro.

"Seria ótimo ver o impacto climático dos campeonatos mundiais da FIFA ser drasticamente reduzido, mas a alegação de neutralidade carbónica que tem sido feita simplesmente não é credível", disse Gilles Dufrasne da Carbon Market Watch (CMW), uma ONG que trabalha em colaboração com a União Europeia. A instituição examinou os planos dos organizadores e afirma que as emissões projetadas foram subestimadas, com a pegada criada a partir da construção de sete novos estádios a suscitar particular preocupação.

"Apesar da falta de transparência, as provas sugerem que as emissões deste Campeonato do Mundo serão consideravelmente superiores ao esperado pelos organizadores, e os créditos de carbono que estão a ser comprados para compensar estas emissões são pouco susceptíveis de ter um impacto suficientemente positivo sobre o clima", afirma a CMW.

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