O verniz vermelho de Bucha, a brutalidade do cativeiro, o amor que vai à guerra. Dez histórias que marcaram o primeiro ano da invasão da Ucrânia
Yaryna Arieva e Sviatoslav Fursin (CNN)

O verniz vermelho de Bucha, a brutalidade do cativeiro, o amor que vai à guerra. Dez histórias que marcaram o primeiro ano da invasão da Ucrânia

01
"Um silêncio total por 10 segundos"

No dia 25 de fevereiro, Olena Kurilo era a desconhecida que dava rosto aos mais de 40 milhões de ucranianos cuja vida acabava de mudar. A mulher fazia capa em jornais de todas as línguas como uma das figuras de uma invasão da Ucrânia à qual Vladimir Putin chamou de “operação militar especial”.

“Uma explosão sacudiu-me e acordou-me às 05:00”, recorda a mulher de 53 anos à AFP. Olena é uma entre milhões de refugiados que se viram forçados a abandonar o seu país – quase 9 milhões. Hoje vive na cidade polaca de Katowice, mas não há um dia em que não se lembre do míssil que caiu a 500 metros da sua casa em Chuguiv, perto de Kharkiv.

Talvez por receio do que já sabia vir do outro lado da fronteira não conseguiu ir para a cama. O segundo míssil que ouviu destruiu-lhe a casa Era no sofá que estava quando ouviu um “grande barulho” e a janela da sala se desfez à sua frente. Os estilhaços atingiram-na. Recorda continuamente o momento na sua cabeça. “Depois de ficar coberta de vidros partidos foi um silêncio total por 10 segundos. Depois ouvi o choro dos feridos”, conta.

Olena Kurilo foi uma das primeiras vítimas civis da ofensiva russa. O rosto desta mulher ferida após um bombardeamento russo atingir o seu prédio, em Kharkiv, percorreu o mundo (Wolfgang Schwan/Anadolu Agency via Getty Images)

Olena conta que “não estava pronta para morrer”. Saiu à rua, como tantos outros ucranianos, e foi aí que viu um trio de fotógrafos franceses, entre os quais estava Wolfgang Schwan. Foi ele o responsável pela imagem que correu as bancas do dia seguinte.

“Sou professora, estudámos a História, mas nunca pensámos que isto iria acontecer na nossa terra”, contou mais tarde. Mas aconteceu.

Olena Kurilo hoje vive na Polónia entre os milhares de refugiados ucranianos (Wolfgang Schwan/Anadolu Agency via Getty Images)

03
"V" de vitória

“Davam-nos um pequeno pedaço de pão, às vezes… basicamente para não morrermos”. Foi assim que Mykhailo Dianov recordou à CNN Portugal os quatro meses de cativeiro com as forças russas, depois de ter sido um dos soldados capturados no fim do cerco à fábrica Azovstal, em Mariupol.

Como ele, foi ali que centenas de ucranianos, sobretudo do Batalhão Azov, resistiram à queda da estratégica cidade situada na região de Donetsk. Já dentro da fábrica, onde estiveram repórteres norte-americanos da Associated Press, o soldado evidenciava sinais de cansaço e ferimentos no braço.

Mykhailo Dianov fotografado na fábrica Azovstal a 10 de maio de 2022. (Foto: Dmytro Kozatskyi)

Meses mais tarde, em setembro, Mykhailo voltou a ser fotografado quando foi libertado numa troca de presos. Não parecia o mesmo. Se, em Azovstal, o seu rosto mostrava esperança, agora estava visivelmente cansado, apesar de repetir o mesmo “V” de vitória com os dedos.

“Quando recuperar vou pegar nas armas”, contou à CNN Portugal poucas semanas depois de ser libertado. Para já, Mykhailo continua a recuperar de uma complexa cirurgia ao braço realizada em dezembro numa clínica dos Estados Unidos. Enquanto não pode voltar ao campo de batalha, trabalha como um dos membros do staff do Shakhtar Donetsk, um dos maiores clubes ucranianos.

Mykhailo Dianov depois de ser libertado de quatro meses de cativeiro (Ministério da Defesa da Ucrânia)

 

04
Um hospital é um alvo militar?

A Rússia dizia que só ataca alvos militares, mas Liza Dmitrieva não estava num alvo militar. A menina de quatro anos que sofria de síndrome de Down foi uma das três crianças que morreram após um ataque sobre a cidade de Vinnytsia, em julho. Estava numa consulta de terapia da fala com a mãe. Foi lá, no hospital, que caíram os projéteis que causaram a morte a um total de 23 civis.

Liza já era conhecida no país, nomeadamente da primeira-dama. “Conhecemo-nos quando gravávamos um vídeo para as férias de Natal”, recordou Olena Zelenska.

05
O verniz vermelho de Bucha

As unhas brilhantes pintadas de encarnado fizeram-na destacar-se entre os destroços de uma cidade arruinada e onde os cadáveres abandonados abundavam. Mais de 458 corpos foram encontrados, alguns delas enterrados em valas-comuns, na cidade de Bucha quando esta foi libertada dos russos no final de março.

Uma dessas pessoas era Iryna Filkina, a mulher cuja mão sobressaiu quando os ucranianos voltaram a entrar na cidade.

Iryna tinha 52 anos. Hoje, sabe-se que Iryna foi morta a tiro quando regressava a casa de bicicleta. A cena foi filmada por uma câmara que gravou uma “luta” desigual. A mulher seguia no veículo de duas rodas quando se deparou com um tanque russo que, sem piedade, atirou a matar.

A história de Iryna Filkina, a mulher do verniz vermelho que sonhava com uma vida nova na Ucrânia

07
Uma grávida no meio da devastação

Numa maca carregada por cinco socorristas, e ainda com sinais de vida, Irina Kalinina tornou-se uma das imagens da guerra. Foi no dia 9 de março e por trás dela estavam as ruínas de um hospital de Mariupol.

Irina e o filho, que nasceu numa cesariana realizada de emergência após o resgate, não resistiram aos ferimentos causados pelo ataque. O pai, Ivan Kalinina, vive hoje como refugiado no País de Gales. “Éramos mesmo felizes e alegres. Estávamos à espera deste filho há tanto tempo."

Voluntários e funcionários de emergência ucranianos carregam Irina Kalinina, ferida pelos ataques que atingiram o hospital pediátrico de Mariupol (AP Photo/Evgeniy Maloletka)

08
Uma marreta para os traidores

Yevgeny Nuzhin foi recrutado pela Rússia na prisão, mas acabou por mudar de lado e combater pela Ucrânia.

Foi capturado pelo Grupo Wagner, um grupo de mercenários russo, e acabou morto com pancadas de marreta na cabeça. O momento foi filmado e partilhado em contas de Telegram pró-russas.

Raptado a 11 de outubro em Kiev, Yevgeny já estava amarrado quando recuperou a consciência. A execução, levada a cabo por um homem não identificado e fardado à militar, serviu de aviso para os desertores.

“Aqueles que percebem sabem que uma marreta e traidores têm uma relação próxima”, podia ler-se na publicação que acompanhava o vídeo.

Morte de Yevgeny Nuzhin foi filmada e partilhada (Telegram)

09
Reaprender a andar

Yana Stepanenko, uma menina de 11 anos, estava na estação de comboios de Kramatorsk quando um bombardeamento russo atingiu o local, em abril, matando 60 pessoas. Yana não foi uma delas.

A criança perdeu os dois pés, mas hoje já consegue andar novamente. Tudo graças a uma doação de uma organização não-governamental de San Diego, nos Estados Unidos, que enviou as próteses de que Yana necessitava.

Yana Stepanenko perdeu os dois pés após o ataque à estação de comboios de Kramatorsk (Emilio Morenatti/AP)

Depois de um mês a recuperar, hoje anda normalmente. A Right to Walk Foundation acompanhou todo o processo e fez questão de partilhar o momento mais aguardado, os primeiros passos.

Atrás de Yana está a mãe, que também perdeu um pé no mesmo bombardeamento.

10
"Russos, vão-se foder"

Com apenas 17 hectares, a Ilha da Serpente tornou-se um símbolo da resistência ucraniana. Eram 13 militares contra um potente navio russo, o Moskva.

Os russo avisaram que iriam disparar sobre o terreno caso não houvesse rendição, mas a resposta ucraniana não se deixou intimidar. O pequeno destacamento de marinheiros da ilha respondeu pelo rádio: "russos, vão-se foder". A frase tornou-se icónica e o mote para uma imagem repetida milhares de vezes com um soldado ucraniano a enfrentar um navio.

A Rússia acabou por conquistar a ilha, ficando com um importante ponto estratégico para alcançar Odessa.

Mural alusivo à resistência ucraniana na Ilha da Serpente, em Kiev (Foto: Maxym Marusenko/NurPhoto via Getty Images)

Hoje sabe-se que nem todos os soldados ucranianos morreram. Muitos foram capturados e alguns já regressaram à Ucrânia numa troca de prisioneiros.

Quanto à ilha, a Ucrânia acabou por conseguir recuperá-la em junho de 2022.

11
Um passaporte e uma carteira de jornalista

Pelo menos oito jornalistas morreram em um ano de guerra na Ucrânia. O número aumentaria se contássemos também aqueles que perderam a vida desde 2014, ano em que os confrontos no Donbass começaram.

Morreram jornalistas ucranianos, uma russa, mas também um francês e um irlandês. O norte-americano Brent Renaud foi o primeiro estrangeiro a perder a vida neste conflito. Estava em Irpin quando, a 13 de março, foi morto com um tiro na cabeça. As forças russas dispararam contra o carro onde seguia, e dali o norte-americano já não saiu com vida.

Passaporte de Brent Renaud foi encontrado no local dos disparos (Facebook)

Brent, que trabalhou com inúmeras publicações, entre as quais o The New York Times, estava na Ucrânia a filmar um documentário. O objetivo era relatar o sofrimento humano, com foco na crise dos refugiados em todo o mundo, um flagelo que ali conhecia um novo episódio. Tinha 50 anos.

Corpo de Brent Renaud retirado do local do tiroteio (Aris Messinis/AFP)

12
Correr para um mosteiro

Por boas e más razões, Yarina Arieva e Sviatoslav Fursin nunca se vão esquecer do dia 24 de fevereiro. Os tanques russos entravam na Ucrânia, e em vez dos sinos das igrejas ecoavam as sirenes de alerta. Sem tempo a perder, os dois jovens, de 21 e 24 anos, decidiram que era aquele o dia em que se iam casar, antecipando a data marcada, que seria 6 de maio.

“Foi muito assustador. É o momento mais feliz da tua vida, depois saímos, e ouvimos aquilo”, contou Yaryna à CNN, lembrando as sirenes que não paravam de tocar.

Yaryna Arieva e Sviatoslav Fursin pegaram nas armas e estão a lutar pelo seu país (CNN)

Foi um momento bem diferente do que tinha sido imaginado: o casamento era para acontecer um restaurante com um “terraço muito, muito bonito” e vista para o rio Dniepre. “Éramos só nós, o rio e as luzes”, lembrou Yaryna.

Yaryna e Sviatoslav encontraram-se pela primeira vez em 2019 num protesto que ocorreu no centro de Kiev. Hoje olham em frente e reconhecem que a situação é “difícil”, mas garantem que vão lutar pela sua terra.

“Podemos morrer, mas só queremos ficar juntos no fim de tudo”, terminou.

Casaram-se no primeiro dia da guerra e tornaram-se para sempre um símbolo de resistência ucraniana
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