"No som ou no silêncio". Este é o último de quatro capítulos de uma grande reportagem sobre a comunidade surda em Portugal.
Um surdo nunca ouvirá como um ouvinte. A colocação de um implante coclear é um processo invasivo que exige um longo caminho até ao reconhecimento dos sons. E tem apenas uma garantia: aquilo que se ouve está distante daquilo que o ouvido saudável capta, revestindo-se de metal
Mesmo quando se vive desde sempre com a surdez, ela pode causar espanto. “Quando ele nasceu, pensei: ‘que surpresa, é surdo’”. Patrícia Carmo não refletiu sobre essa possibilidade, mesmo sabendo que ela existia. Ela é surda, o marido também. O médico chegou a insistir que realizassem um teste genético para apurar se a transmissão da surdez poderia acontecer. O casal recusou.
Em casa, são todos surdos. Até um dos cães, que morreu entretanto, era surdo. Para que a comunicação flua, o espaço foi adaptado. A sala, por exemplo, é ampla, para que a Língua Gestual Portuguesa (LGP) possa ser compreendida à distância. No sótão, se alguém chama, liga-se uma luz. Para acordar, existem despertadores vibratórios. “As dificuldades são fora de casa.”
“Nós vemo-nos, e eu vejo-me, como uma pessoa normal. O que esperávamos era que o nosso filho viesse com saúde. Mas isso nunca relacionámos com o ser surdo. Não tem nada que ver com saúde, com doenças, com deficiências, isso não.” Patrícia até admite que há vantagens em ter um filho surdo. “Somos iguais. Eu compreendo a vida dele, como surdo que é, porque eu cresci enquanto surda e sei como é a forma de ser de um surdo. Vamos juntos à comunidade surda. Com os filhos ouvintes, muitas vezes, não é assim, crescem e acabam por se afastar da comunidade.”
Patrícia faz parte do coro “Mãos que cantam”. Um surdo também pode cantar. Fá-lo através dos gestos. Como os surdos não ouvem, a ponte com o mundo do som é feita pelo maestro Sérgio Peixoto. Para decorar os gestos, gravam-se vídeos, vistos uma e outra vez em casa. No silêncio destes cantores desenha-se o mar, a praia, o bater do coração, a paixão.
Ao filho de Patrícia abriu-se a possibilidade de ouvir, com a colocação de um implante coclear. Mas os pais rejeitaram submeter o filho a esse procedimento. Os médicos, dizem, “nunca se comprometeram” garantindo que haveria um ganho de audição relevante. “A minha identidade é surda. Não me sentiria bem em colocar um implante no meu filho. É mudar a identidade dele. É claro que se ele, ao longo do crescimento, quiser colocar o implante coclear será uma escolha dele. Não foi a minha.”
Patrícia Carmo, que é professora de LGP, vê todos os dias, na escola, exemplos de dificuldade de adaptação ao implante coclear. Muitos alunos tiram-no à primeira oportunidade. E há um caso que a marcou particularmente: o de um rapaz de 10 anos, com implante, que não percebe praticamente nada do que ouve. E acabou por se atrasar na aprendizagem da língua dos gestos, que só agora está a aprender.
As barreiras de comunicação existem. É como um estrangeiro que vem para Portugal e não aprende a língua, compara. Mas a superação é sempre possível. “As barreiras dão-me força para querer ultrapassá-las”. E esta mãe já ultrapassou bastantes: anda de mota, tem formação superior, faz teatro, até foi para S. Tomé e Príncipe sozinha durante dois anos. O filho também encontrará os seus próprios desafios.
“É como disse. Vemo-nos como pessoais normais. E queremos que os nossos filhos sejam iguais a nós. Eu escolhi não querer alterar a genética, não querer alterar nada, não ter o implante coclear. Escolhi que ele fosse assim, de uma forma natural, como é. Não quero que a identidade dele mude. Ele próprio a mudará, se assim o desejar”.
Pessoas "híbridas"
O implante coclear é a solução que a ciência encontrou para devolver o sentido da audição a quem nunca o desenvolveu ou a quem o perdeu. Mas a comunidade surda tem uma relação difícil com este aparelho.
“Tive uma criança que me foi trazida pelos avós, que eram ouvintes. O neto era surdo dos dois lados. Eles já traziam todos os exames feitos, que permitiam que se colocasse um implante. E os pais, que eram os dois surdos, não deixaram colocar o implante”, conta João Paço, médico otorrinolaringologista e cirurgião especializado em implantes cocleares. Já colocou mais de duas centenas.
Os pais têm sempre a última palavra. Na comunidade surda, receia-se que a colocação do implante coclear, além do seu lado invasivo e irreversível, empurre a criança para uma educação assente exclusivamente na oralidade, em detrimento da LGP. “Acham que estar a colocar um implante é desvirtuar o indivíduo surdo, tornando-o num híbrido. E que, ao torná-lo num híbrido, num ouvinte, se irá afastar da língua gestual”, confirma Cristina Caroça, médica otorrinolaringologista, que tem trabalhado com esta comunidade.
“As pessoas têm a sensação de que se corta uma ligação, que a pessoa que coloca um implante passa a pertencer ao mundo dos ouvintes e deixa de pertencer à comunidade surda. É errado. Qualquer pessoa pode ter LGP”, remata João Paço.
Como funciona o implante coclear
O ser humano não ouve no ouvido, mas sim no cérebro. O som, vindo do exterior, passa pelo canal auditivo, chega ao tímpano, faz vibrar um conjunto de ossículos, imprime uma batida na cóclea, que vai fazer movimentar o líquido dentro da mesma. É essa movimentação que vai estimular as células sensoriais da cóclea e, depois, do nervo auditivo, que leva a informação ao cérebro. É aí que a informação é descodificada e se ouve.
O implante coclear replica este processo. Tem duas componentes. A componente interna é colocada debaixo da pele, através de uma cirurgia, e conta com filamentos milimétricos e com elétrodos, que vão estimular a cóclea. Já a componente externa, conhecida como recetor ou processador, é parecida com um aparelho auditivo comum, sendo colocada por cima da orelha. As duas componentes comunicam por indução, através de um íman que transmite a informação sonora, que depois é convertida em impulsos elétricos. Um implante coclear custa entre os 17 mil e os 25 mil euros.
Esta tecnologia é colocada em indivíduos que tenham nascido com surdez severa a profunda ou em indivíduos, já em idade adulta, que eram ouvintes mas que, por algum motivo perderam esse sentido. Desde que o nervo auditivo tenha ainda capacidade de transmissão. Se o ouvido não for estimulado logo numa fase inicial, o nervo acaba por “degenerar”, explica Cristina Caroça.
“Temos um tempo para pôr o implante. Quanto mais rápido melhor. Na criança pequena, que nasce com muito pouca audição, devemos colocar o implante até um ano e meio ou dois anos. Depois disso, estamos a perder a nossa janela de oportunidade porque a plasticidade das células cerebrais para receber o implante deixa de existir. No adulto que perde a audição, é o mesmo”, aponta João Paço. Daí que colocar um implante a uma pessoa surda de 20, 30 ou 40 anos seja um cenário imediatamente descartado.
Uma norma da Direção-Geral da Saúde argumenta que a colocação do implante deve ser feita rapidamente nas crianças surdas, até aos 24 meses de idade.
“A surdez congénita ou precocemente adquirida tem consequências dramáticas no desenvolvimento da fala e da linguagem, no aproveitamento escolar, na capacidade de comunicação, na cognição, na leitura e no desenvolvimento sócio emocional, com consequências inevitáveis na educação e na empregabilidade”, argumenta a entidade.
Mas, em 33 páginas, há apenas uma referência à Língua Gestual Portuguesa como “alternativa de comunicação não oral à cirurgia de implante coclear”. Daí vem o receio da comunidade de que, com esta prática, muitas crianças fiquem sem aprender a língua que lhes seria mais intuitiva, a gestual.
Timbre metalizado
A cirurgia para colocar um implante coclear leva cerca de três horas. Só passadas quatro semanas é que o implante é ativado e a pessoa começa a ouvir, de forma gradual. Mas o som que chega ao cérebro é diferente daquele a que a maioria das pessoas, com um ouvido saudável, está habituada.
“Os sons são de um timbre mais metalizado, mais metálico, mais eletrónico. Tenta-se fazer o mais perfeito possível. Mas não é, de todo, o que conseguimos”, resume a médica Cristina Caroça.
O processo de aprender a ouvir é longo e conturbado, e exige terapia da fala. “Não é um milagre. É um milagre que tem de ser trabalhado. Para aqueles que nunca ouviram, exige um trabalho maior. Os primeiros sons que a criança ouve são os do implante. Vai ter de ligar os sons do implante à realidade. Ao telefone que toca, ao bater da porta, ao tocar da campainha. Tudo tem de ser treinado”, exemplifica João Paço.
Já nos adultos que já ouviam e falavam antes, e que receberam um implante, o desafio é outro: descodificar os novos sons e associá-los àqueles que já conheciam, percebendo que podem existir diferenças significativas entre eles.
Uma vez colocada, a componente interna do implante é para sempre – a não ser, por exemplo, numa situação de vida ou morte, como uma infeção generalizada, que dite a sua retirada. Já a componente externa deve ser substituída de sete em sete anos, tendo em conta a evolução da tecnologia.
A LGP como compromisso
Pedro Mourão e Mariana Couto Bártolo também não receberam um implante. E agradecem por isso. Para a comunidade surda, implantes cocleares e LGP podem coexistir. Mas os primeiros nunca podem substituir a segunda. E, nesse aspeto, a comunidade médica e os investigadores da cultura surda concordam. A realidade é que tem mostrado o contrário.
“Quando tiramos o componente externo, o doente deixa de ter audição. Vamos precisar de outro meio de comunicação. Numa ida à praia, à piscina, quando se toma banho. Há determinados momentos em que podemos ficar fechados para o som”, atesta Cristina Caroça. E João Paço completa: “se tivesse um filho surdo, implantado, ele deveria ter sempre as duas línguas”.
“O que está a acontecer é que muitas crianças surdas, a quem está a ser colocado um implante coclear, estão a ser integradas em turmas de ouvintes. E o problema do surdo não é só esse: é a questão da interação, é a sua identidade enquanto pessoa surda”, avisa Paulo Vaz de Carvalho, professor e investigador na área da Língua Gestual Portuguesa, insistindo numa educação bilingue.
“O avançar da ciência não deve ter como consequência a aniquilação de uma língua e de uma comunidade.” E a prova disso é a de que há crianças que, mesmo com acesso ao mundo do som através de um implante, sentem necessidade de o desligar e de regressar ao silêncio.