O timbre metalizado dos implantes cocleares engana o cérebro, mas nem todos os surdos querem ouvir

O timbre metalizado dos implantes cocleares engana o cérebro, mas nem todos os surdos querem ouvir

Reportagem
Wilson Ledo

Imagem
José Chorão, Nuno Gomes Lopes, Ricardo Ferreira, Nuno Quá, Nuno Lourenço Bayer, Tiago Donato, Pedro Batista, Herberto Gomes

Drone
Fábio Mestre

Intérprete de LGP
Sofia Figueiredo

Edição de Imagem
João Ferreira

Grafismo
Sérgio Trindade

Coordenação
Raquel Matos Cruz

"No som ou no silêncio". Este é o último de quatro capítulos de uma grande reportagem sobre a comunidade surda em Portugal.

Um surdo nunca ouvirá como um ouvinte. A colocação de um implante coclear é um processo invasivo que exige um longo caminho até ao reconhecimento dos sons. E tem apenas uma garantia: aquilo que se ouve está distante daquilo que o ouvido saudável capta, revestindo-se de metal

Mesmo quando se vive desde sempre com a surdez, ela pode causar espanto. “Quando ele nasceu, pensei: ‘que surpresa, é surdo’”. Patrícia Carmo não refletiu sobre essa possibilidade, mesmo sabendo que ela existia. Ela é surda, o marido também. O médico chegou a insistir que realizassem um teste genético para apurar se a transmissão da surdez poderia acontecer. O casal recusou.

Em casa, são todos surdos. Até um dos cães, que morreu entretanto, era surdo. Para que a comunicação flua, o espaço foi adaptado. A sala, por exemplo, é ampla, para que a Língua Gestual Portuguesa (LGP) possa ser compreendida à distância. No sótão, se alguém chama, liga-se uma luz. Para acordar, existem despertadores vibratórios. “As dificuldades são fora de casa.”

“Nós vemo-nos, e eu vejo-me, como uma pessoa normal. O que esperávamos era que o nosso filho viesse com saúde. Mas isso nunca relacionámos com o ser surdo. Não tem nada que ver com saúde, com doenças, com deficiências, isso não.” Patrícia até admite que há vantagens em ter um filho surdo. “Somos iguais. Eu compreendo a vida dele, como surdo que é, porque eu cresci enquanto surda e sei como é a forma de ser de um surdo. Vamos juntos à comunidade surda. Com os filhos ouvintes, muitas vezes, não é assim, crescem e acabam por se afastar da comunidade.”

Patrícia faz parte do coro “Mãos que cantam”. Um surdo também pode cantar. Fá-lo através dos gestos. Como os surdos não ouvem, a ponte com o mundo do som é feita pelo maestro Sérgio Peixoto. Para decorar os gestos, gravam-se vídeos, vistos uma e outra vez em casa. No silêncio destes cantores desenha-se o mar, a praia, o bater do coração, a paixão.

Ao filho de Patrícia abriu-se a possibilidade de ouvir, com a colocação de um implante coclear. Mas os pais rejeitaram submeter o filho a esse procedimento. Os médicos, dizem, “nunca se comprometeram” garantindo que haveria um ganho de audição relevante. “A minha identidade é surda. Não me sentiria bem em colocar um implante no meu filho. É mudar a identidade dele. É claro que se ele, ao longo do crescimento, quiser colocar o implante coclear será uma escolha dele. Não foi a minha.”

Patrícia Carmo, que é professora de LGP, vê todos os dias, na escola, exemplos de dificuldade de adaptação ao implante coclear. Muitos alunos tiram-no à primeira oportunidade. E há um caso que a marcou particularmente: o de um rapaz de 10 anos, com implante, que não percebe praticamente nada do que ouve. E acabou por se atrasar na aprendizagem da língua dos gestos, que só agora está a aprender.

As barreiras de comunicação existem. É como um estrangeiro que vem para Portugal e não aprende a língua, compara. Mas a superação é sempre possível. “As barreiras dão-me força para querer ultrapassá-las”. E esta mãe já ultrapassou bastantes: anda de mota, tem formação superior, faz teatro, até foi para S. Tomé e Príncipe sozinha durante dois anos. O filho também encontrará os seus próprios desafios.

“É como disse. Vemo-nos como pessoais normais. E queremos que os nossos filhos sejam iguais a nós. Eu escolhi não querer alterar a genética, não querer alterar nada, não ter o implante coclear. Escolhi que ele fosse assim, de uma forma natural, como é. Não quero que a identidade dele mude. Ele próprio a mudará, se assim o desejar”.

Pessoas "híbridas"

O implante coclear é a solução que a ciência encontrou para devolver o sentido da audição a quem nunca o desenvolveu ou a quem o perdeu. Mas a comunidade surda tem uma relação difícil com este aparelho.

“Tive uma criança que me foi trazida pelos avós, que eram ouvintes. O neto era surdo dos dois lados. Eles já traziam todos os exames feitos, que permitiam que se colocasse um implante. E os pais, que eram os dois surdos, não deixaram colocar o implante”, conta João Paço, médico otorrinolaringologista e cirurgião especializado em implantes cocleares. Já colocou mais de duas centenas.

Os pais têm sempre a última palavra. Na comunidade surda, receia-se que a colocação do implante coclear, além do seu lado invasivo e irreversível, empurre a criança para uma educação assente exclusivamente na oralidade, em detrimento da LGP. “Acham que estar a colocar um implante é desvirtuar o indivíduo surdo, tornando-o num híbrido. E que, ao torná-lo num híbrido, num ouvinte, se irá afastar da língua gestual”, confirma Cristina Caroça, médica otorrinolaringologista, que tem trabalhado com esta comunidade.

“As pessoas têm a sensação de que se corta uma ligação, que a pessoa que coloca um implante passa a pertencer ao mundo dos ouvintes e deixa de pertencer à comunidade surda. É errado. Qualquer pessoa pode ter LGP”, remata João Paço.

Ensaio do coro "Mãos que cantam"

Como funciona o implante coclear

O ser humano não ouve no ouvido, mas sim no cérebro. O som, vindo do exterior, passa pelo canal auditivo, chega ao tímpano, faz vibrar um conjunto de ossículos, imprime uma batida na cóclea, que vai fazer movimentar o líquido dentro da mesma. É essa movimentação que vai estimular as células sensoriais da cóclea e, depois, do nervo auditivo, que leva a informação ao cérebro. É aí que a informação é descodificada e se ouve. 

O implante coclear replica este processo. Tem duas componentes. A componente interna é colocada debaixo da pele, através de uma cirurgia, e conta com filamentos milimétricos e com elétrodos, que vão estimular a cóclea. Já a componente externa, conhecida como recetor ou processador, é parecida com um aparelho auditivo comum, sendo colocada por cima da orelha. As duas componentes comunicam por indução, através de um íman que transmite a informação sonora, que depois é convertida em impulsos elétricos. Um implante coclear custa entre os 17 mil e os 25 mil euros.

Esta tecnologia é colocada em indivíduos que tenham nascido com surdez severa a profunda ou em indivíduos, já em idade adulta, que eram ouvintes mas que, por algum motivo perderam esse sentido. Desde que o nervo auditivo tenha ainda capacidade de transmissão. Se o ouvido não for estimulado logo numa fase inicial, o nervo acaba por “degenerar”, explica Cristina Caroça.

“Temos um tempo para pôr o implante. Quanto mais rápido melhor. Na criança pequena, que nasce com muito pouca audição, devemos colocar o implante até um ano e meio ou dois anos. Depois disso, estamos a perder a nossa janela de oportunidade porque a plasticidade das células cerebrais para receber o implante deixa de existir. No adulto que perde a audição, é o mesmo”, aponta João Paço. Daí que colocar um implante a uma pessoa surda de 20, 30 ou 40 anos seja um cenário imediatamente descartado. 

Uma norma da Direção-Geral da Saúde argumenta que a colocação do implante deve ser feita rapidamente nas crianças surdas, até aos 24 meses de idade.

“A surdez congénita ou precocemente adquirida tem consequências dramáticas no desenvolvimento da fala e da linguagem, no aproveitamento escolar, na capacidade de comunicação, na cognição, na leitura e no desenvolvimento sócio emocional, com consequências inevitáveis na educação e na empregabilidade”, argumenta a entidade.

Mas, em 33 páginas, há apenas uma referência à Língua Gestual Portuguesa como “alternativa de comunicação não oral à cirurgia de implante coclear”. Daí vem o receio da comunidade de que, com esta prática, muitas crianças fiquem sem aprender a língua que lhes seria mais intuitiva, a gestual.

Timbre metalizado

A cirurgia para colocar um implante coclear leva cerca de três horas. Só passadas quatro semanas é que o implante é ativado e a pessoa começa a ouvir, de forma gradual. Mas o som que chega ao cérebro é diferente daquele a que a maioria das pessoas, com um ouvido saudável, está habituada.

“Os sons são de um timbre mais metalizado, mais metálico, mais eletrónico. Tenta-se fazer o mais perfeito possível. Mas não é, de todo, o que conseguimos”, resume a médica Cristina Caroça.

O processo de aprender a ouvir é longo e conturbado, e exige terapia da fala. “Não é um milagre. É um milagre que tem de ser trabalhado. Para aqueles que nunca ouviram, exige um trabalho maior. Os primeiros sons que a criança ouve são os do implante. Vai ter de ligar os sons do implante à realidade. Ao telefone que toca, ao bater da porta, ao tocar da campainha. Tudo tem de ser treinado”, exemplifica João Paço.

Já nos adultos que já ouviam e falavam antes, e que receberam um implante, o desafio é outro: descodificar os novos sons e associá-los àqueles que já conheciam, percebendo que podem existir diferenças significativas entre eles.

Uma vez colocada, a componente interna do implante é para sempre – a não ser, por exemplo, numa situação de vida ou morte, como uma infeção generalizada, que dite a sua retirada. Já a componente externa deve ser substituída de sete em sete anos, tendo em conta a evolução da tecnologia.

A LGP como compromisso

Pedro Mourão e Mariana Couto Bártolo também não receberam um implante. E agradecem por isso. Para a comunidade surda, implantes cocleares e LGP podem coexistir. Mas os primeiros nunca podem substituir a segunda. E, nesse aspeto, a comunidade médica e os investigadores da cultura surda concordam. A realidade é que tem mostrado o contrário.

“Quando tiramos o componente externo, o doente deixa de ter audição. Vamos precisar de outro meio de comunicação. Numa ida à praia, à piscina, quando se toma banho. Há determinados momentos em que podemos ficar fechados para o som”, atesta Cristina Caroça. E João Paço completa: “se tivesse um filho surdo, implantado, ele deveria ter sempre as duas línguas”.

“O que está a acontecer é que muitas crianças surdas, a quem está a ser colocado um implante coclear, estão a ser integradas em turmas de ouvintes. E o problema do surdo não é só esse: é a questão da interação, é a sua identidade enquanto pessoa surda”, avisa Paulo Vaz de Carvalho, professor e investigador na área da Língua Gestual Portuguesa, insistindo numa educação bilingue.

“O avançar da ciência não deve ter como consequência a aniquilação de uma língua e de uma comunidade.” E a prova disso é a de que há crianças que, mesmo com acesso ao mundo do som através de um implante, sentem necessidade de o desligar e de regressar ao silêncio.

Scroll top