O Psicólogo Responde: Os castigos corporais às crianças fazem sentido ou podem deixar marcas?
Ilustração O psicólogo responde. Fonte: Adobe Stock

O Psicólogo Responde: Os castigos corporais às crianças fazem sentido ou podem deixar marcas?

O Psicólogo Responde é uma rubrica sobre saúde mental para ler todas as semanas.

Raquel Raimundo Psicóloga e Presidente da Delegação Regional Sul da Ordem dos Psicólogos Portugueses

Já lhe aconteceu fazer um movimento brusco próximo de uma criança e ela encolher-se de medo, sem motivo aparente? Pensou porquê? Eu ainda sou do tempo das reguadas. Na sala de aula da minha escola primária, nos anos 80 do século XX, eram usadas amiúde pela professora, quando nos “portávamos mal” e/ou para “aprendermos”.

Podemos definir o castigo corporal como um ato cometido para punir uma criança. Se esse mesmo ato for infligido a uma pessoa adulta é uma ofensa corporal ilegal. Bater em adultos é agressão. Bater em animais é crueldade. Então por que motivo bater em crianças “é para o seu bem, é para aprender”? Serão as crianças mini seres humanos com mini direitos? Devem as crianças ser educadas para serem bonsais: pequenas e decorativas?

Há muitas e boas razões para abolir os castigos corporais infligidos às crianças e jovens. Logo a começar por uma questão de ética e de justiça social. Porque são uma violação dos direitos de respeito pela sua integridade física, pela sua dignidade humana e de igualdade de proteção perante a lei. Outro argumento é o impacto nefasto que têm no seu crescimento saudável, uma vez que podem causar danos físicos e psicológicos graves, que vão muito além do aqui e agora, ao porem em risco o direito a um desenvolvimento harmonioso, à educação, à saúde e até mesmo à própria vida.

Há ainda a ressalvar que aplicar castigos corporais é uma forma de ensinar aos mais novos que a violência é uma estratégia aceitável e adequada para resolver os conflitos ou para obter o que se quer das outras pessoas. Se as crianças são expostas a situações de violência, tenderão a reproduzir esses mesmos comportamentos, porque os comportamentos sociais são aprendidos e imitados, como tão bem evidenciou o psicólogo Bandura.

Achei curioso saber que a primeira tentativa documentada de denúncia dos castigos corporais na escola data do século XVII, no Reino Unido, sob a forma de petição ao Parlamento, por um “menino mexido”, “em nome das crianças desta nação”. Foram, no entanto, necessários três séculos para que a Convenção dos Direitos da Criança - o tratado de direitos humanos internacionais mais amplamente ratificado de sempre - estipulasse a obrigação de proteger as crianças de todas as formas de violência física ou mental, enquanto se encontrarem sob a guarda dos pais ou de qualquer outra pessoa (artigo 19º). Segundo o Comité dos Direitos da Criança “o combate à aceitação ou tolerância generalizadas dos castigos corporais infligidos às crianças e os esforços para os eliminar, tanto na família como na escola ou em qualquer outro contexto, são não só uma obrigação que recai sobre os Estados-membros, em virtude da Convenção, como também um meio estratégico determinante para reduzir e prevenir todas as formas de violência nas sociedades”.

Sabemos que os comportamentos não mudam só por decreto, embora esse seja um passo importante. A violência contra as crianças existe em todos os países do mundo, quaisquer que sejam a cultura, classe, educação, rendimentos ou origem étnica, por a mesma ser aprovada socialmente.

Por que é tão difícil deixar de bater nas crianças? Porque muitos adultos ainda confundem poder e direito e têm alguma dificuldade em abandonar o que consideram ser o seu legítimo “direito” de bater nas crianças e magoá-las, em nome da “educação”, “disciplina” ou controlo. Esta dificuldade parece advir da experiência pessoal. As pessoas começam normalmente a bater nas crianças porque também lhes bateram na infância, ainda que estudos mostrem que, com frequência, se sentem depois culpadas. É um círculo vicioso. A maioria acolheria, portanto, com agrado, aconselhamento sobre como prevenir e resolver conflitos com os mais novos.

A esmagadora maioria dos pais (com raríssimas exceções) quer exercer bem as suas funções parentais e deseja que os seus filhos tenham o melhor começo de vida possível. De nada serve condenar as gerações anteriores por terem batido nas crianças. Agiam de acordo com a cultura dominante da época. Mas, os tempos mudam e as sociedades evoluem. Como diria Beckett, “falhar, falhar outra vez, falhar melhor”. Chegou a altura de passarmos a ter relações positivas e não violentas com os mais novos.

A parentalidade positiva pressupõe o respeito pelos direitos humanos da criança e, como tal, alternativas à violência, sem recorrer a castigos corporais ou psicologicamente humilhantes para resolver conflitos ou para “ensinar” disciplina e respeito. Muitos castigos corporais são administrados por pais stressados para além dos limites e que, em dado momento, perdem o controlo. É importante que os pais saibam lidar com o stress do dia a dia, giram os conflitos e controlem a cólera, pois isso ajuda a melhorar a vida familiar. E, mais importante, que mantenham, até ao fim, o coração aberto. Pois quando ele se fecha, faz mais barulho do que uma porta.

Sugestões

Alguns exemplos de estratégias em alternativa aos castigos corporais são:

1. De forma preventiva pensar de que precisam as crianças? De amor, segurança e educação. De estrutura e orientação, definindo limites para a sua própria segurança e para o desenvolvimento dos seus valores pessoais. De reconhecimento, de serem apreciadas enquanto pessoas. De atenção positiva e regular. E de serem ajudadas a compreender as consequências potenciais das suas ações.

2. No momento parar e respirar fundo. Se as emoções forem demasiado fortes, os pais podem “deixar arrefecer” o caso por algum tempo e discuti-lo mais tarde.

3. Estipular um tempo de pausa para a criança parar e pensar no que aconteceu, sentando-se por exemplo numa cadeira, no campo de visão dos pais. Também dará tempo aos pais para refletirem sobre o melhor curso de ação.

4. Pedir às crianças para pensarem em alternativas que visem reparar as suas falhas e/ou os danos que causaram e de que forma as mesmas poderão ser implementadas.

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