O Psicólogo Responde: O medo é psicológico?
Medo

O Psicólogo Responde: O medo é psicológico?

David Guedes
Psicólogo e membro da direção da Delegação Regional Sul da Ordem dos Psicólogos Portugueses

O medo é uma das emoções humanas mais poderosas. Não distingue corajosos de cobardes, pode dominar-nos ou levar-nos aos mais extremos dos atos. A guerra, o ódio e a exclusão não são senão um produto de se ter medo de algo ou de alguém. O medo, mestre dos disfarces, pode mudar de forma, de origem ou de expressão ao longo da vida, mas existe desde cedo e para sempre, até ao dia em que se cumpre aquilo que quase todos temem acima de tudo: o desaparecimento.  

Para que aprendamos a lidar melhor com o medo, a cultura arranjou as suas formas de nos ir inoculando com esta emoção em doses mínimas e seguras, através da fantasia, em histórias de monstros, lobos-maus ou vilões de todo o tipo, mas também através do jogo e do faz-de-conta, dos sustos ou da apanhada. Em adultos, pode inspirar um misto de temor e fascínio. É um tema prevalente na arte (veja-se o cinema de terror… “Here’s Johnny!”) mas também em práticas culturais tão diversas como sair mascarado na noite de Halloween ou participar em atividades radicais – de montanhas-russas aos saltos em queda livre – que parecem uma espécie de faz-de-conta-que-se-vai-morrer. Todos estes exemplos podem considerar-se formas emocionalmente seguras de contacto com o medo, familiarizando-nos e porventura tornando-nos mais aptos para lidar com as suas expressões reais. 

Ao contrário de outras emoções consideradas exclusivamente humanas, o medo parece existir em pessoas e animais. Charles Darwin interessou-se bastante por esse tema e observou como o medo se expressa de uma forma tão clara que facilmente conseguimos perceber como outra pessoa sente medo, mesmo que esta pessoa não fale a nossa língua, ou até mesmo como conseguimos intuir essa emoção num animal. Darwin compreendeu, com base nestas observações, que o medo, tal como outras emoções “básicas”, teria uma expressão universal. As emoções básicas são aquelas que mais se relacionam com a sobrevivência e a adaptação da espécie e por isso são também aquelas que mais cedo surgem no desenvolvimento. Falamos, por exemplo, da tristeza ou da zanga, da alegria e do nojo. Mas nenhuma delas é tão essencial para a vida como o medo. Esta é, por definição, a emoção que a natureza desenhou para nos proteger de ameaças à sobrevivência.  

Em tempos idos – quando os primeiros humanos ainda se moviam entre potenciais predadores – o medo servia uma função essencial: a de orquestrar uma resposta rápida a qualquer ameaça. Em menos de um abrir e fechar de olhos, uma reação de alarme era desencadeada e preparava o organismo para encetar uma resposta. Normalmente esta resposta envolve uma mudança no corpo, de aumento do ritmo cardíaco e respiratório, de mobilização de energia para os músculos e muitas outra alterações fisiológicas que nos ajudam a reagir depressa e eficazmente. Segue-se normalmente uma de três ações pré-programadas: enfrentar, fugir ou imobilizar diante do perigo (mais conhecidas como fight, flight, or freeze).  

Atualmente, a possibilidade de um ataque de tigre dentes-de-sabre (ou de outro predador mais credível) já não paira entre as nossas maiores preocupações. Ainda assim, não deixa de ser curioso o paralelismo entre a história da evolução da nossa espécie e o desenvolvimento dos medos ao longo da vida. Num cenário em que os humanos viviam sob ameaça da predação, o perigo mais importante para um bebé seria a ausência dos cuidadores. Depois de adquirida a capacidade de andar e circular com maior liberdade, conseguir evadir-se de ataques de animais passaria a ser mais importante e este parece ser um tema que ainda hoje ocupa o imaginário de algumas crianças. Curiosamente, ainda hoje subsistem receios de animais como cobras, aranhas venenosas ou tigres, que para o quotidiano urbano de muitas pessoas não constituem um perigo provável. Esta intuição inata para evitar certas ameaças ancestrais pode, no entanto, levar a um certo desajuste face aos riscos dos contextos em que vivemos. Um exemplo é o medo prevalente (por vezes até na forma de fobia) de cobras, apesar da hipótese de morte por contacto com um destes répteis, ao nível global, rondar o valor de 1 em 552522. Em contraste, o risco de morte por desastre automóvel é de 1 em 93, sem que se assinalem casos sequer comparáveis de medo extremo às 4 rodas. 

Falar apenas de medos inatos seria fazer uma representação muito incompleta e simplista da mente humana. Há muitos outros medos que resultam da aprendizagem e dos contextos em que vivemos. Na última edição do Fear Survey, um inquérito anual promovido pela Chapman University (EUA), o medo mais citado pelos norte-americanos foi a corrupção entre a classe política. Mencionado por cerca de 60% dos inquiridos, a corrupção surgiu na frente de terramotos e tornados, desemprego e colapso financeiro, cobras e tubarões, e até mesmo da própria morte.  

Apesar de ser interessante olhar para os medos que partilhamos coletivamente, os nossos receios mais importantes são porventura os mais pessoais e que resultam da nossa experiência de vida e daquilo que valorizamos. Normalmente estes dizem respeito a temas centrais para a nossa personalidade, como a solidão, o fracasso, a incerteza ou a rejeição. Receios normalmente mais profundos e que podem influenciar as nossas ações mesmo que tenhamos pouca consciência deles. É, por isso, importante que conheçamos os nossos medos. Não só porque se teme mais ainda aquilo que se desconhece, mas sobretudo porque só desta forma podemos deixar de ser dirigidos por eles.  

Para além das consequências psicológicas, o medo pode ter também fortes implicações sociais. No passado, foi pelo medo daquilo que não se conseguia explicar (a chuva, os trovões ou as fases da lua) que nasceram rituais e religiões. Foi pelo medo do “outro”, que é diferente de nós, que nasceram divisionismos e os conflitos que fazem com que a história da humanidade seja uma sucessão ininterrupta de conflitos e de guerras entre povos. É também pela incerteza face ao futuro e pelo medo da mudança, que para alguns parece demasiada e demasiado rápida, que atualmente vivemos um aumento da tensão social e assistimos ao crescimento de sociedades de trincheiras, divididas pelos valores.  

O medo é uma emoção fundamental que nos ajuda a evitar riscos importantes. Mas o mesmo mecanismo que foi desenhado para nos proteger está também sujeito a vieses que nos podem levar a reagir perante uma sensação de ameaça, que não implica necessariamente uma ameaça efetiva. Quando se torna esmagador, o medo pode impedir-nos de pensar cautelosamente, de analisar todos os dados das situações, de ser empáticos e de agir com ponderação. Se é verdade que a ausência de medo nos tornaria incautos e incapazes de nos cuidarmos, o seu excesso pode levar-nos à impulsividade e às más decisões.  

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Sugestões

O medo é uma resposta a ameaças reais ou imaginadas. Muitas vezes, subestimamos riscos relativamente prevalentes (ameaças à cibersegurança, resistência a antibióticos) e sobrestimamos outros (ataques terroristas, desastres de avião). Procure confrontar as suas crenças com dados estatísticos e verifique sempre a credibilidade das fontes. 

Procure tomar consciência dos seus medos e da forma como estes influenciam os seus comportamentos e relações pessoais. Frequentemente, um receio latente (e.g., medo da rejeição) pode levar-nos a agir de formas defensivas (e.g., hipersensibilidade à crítica ou evitamento de situações sociais), o que pode paradoxalmente alimentar ainda mais os nossos receios. 

Apesar de haver medos relativamente prevalentes na sociedade, muitos podem ser altamente individuais, mas igualmente legítimos. Procure não desvalorizar ou ridicularizar os receios de outras pessoas mesmo que tenha dificuldade em compreendê-los.  

O medo é uma emoção natural e adaptativa, que existe em todas as pessoas. Muitas vezes é confundida com o antónimo da coragem, mas na realidade muitas das pessoas que tomam atitudes consideradas corajosas, fazem-no apesar do medo e não porque não sintam medo. Por esse motivo, sentir medo não deve ser confundido com fraqueza nem vulnerabilidade 

Analise a extensão dos seus receios. O medo é a base de muitas respostas emocionais como a ansiedade, o pânico ou as fobias. Se o medo interfere significativamente com a sua vida quotidiana, trabalho ou relações pessoais, poderá estar perante um problema que requer ajuda. Pode encontrar mais informação em eusinto.me e procurar apoio através da plataforma encontreumasaida.pt.  

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