O pároco para quem os fiéis ligaram em aflição, que combateu com a população lado a lado, “puxando mangueiras, a bater no fogo”, acredita que terá havido um milagre que evitou mortes. “O inimigo chegava à porta das casas e não entrava, não estava convidado para entrar e não entrou.” Também bombeiros não entrariam: “Não apareceu ninguém, passavam e diziam que não podiam ajudar, que não tinham ordens para isso.”
Veste de escuro na roupa. Calções e calçado desportivo. O hábito não faz o monge.
Pedro é padre. Tem 42 anos. É-o há já quatro em Covas do Rio, Covelo de Paivô, Figueiredo de Alva, Gafanhão, São Martinho das Moitas e Sul. Seis aldeias em São Pedro do Sul, distantes, do alto da serra, que estiveram cercadas pelo fogo durante a noite de segunda-feira e madrugada de terça. Falharam as comunicações, faltou a água, faltaria também a eletricidade, os bombeiros não responderam, ninguém lhes respondeu, a população viveu infindáveis horas de temor.
Enquanto as estradas não ficaram sem passagem, cortadas por árvores, postes elétricos caídos e labaredas, Pedro percorreu as aldeias e combateu o incêndios ao lado dos fiéis.
Encontramo-lo em São Martinho das Moitas. Seguiremos para Gafanhão. Esta quinta-feira, e quando por fim dormiu ao fim de três dias em claro — na quarta o incêndio, “o pesadelo”, passara mas ainda se viam reacendimentos —, o padre desloca-se paróquia a paróquia, aldeia a aldeia, casa a casa, a distribuir máscaras — recebeu vários caixotes de um velho amigo carpinteiro, de Gumiei, em Viseu, de onde Pedro é. Há no ar uma neblina, cerrada e clara, de fogo, e esvoaça fuligem.
Não distribui só máscaras. “Isto não é só entregar; é ouvir. Dar conforto, alento, carinho. Dizer que é o tempo de reconstruir. No fundo, apaziguar os corações em sobressalto.”
Enquanto percorremos aquela encosta, após qualquer curva, e olhando qualquer direção, quase nada há por arder. “Isto era tão bonito, tão bonito, tão bonito. Às vezes perguntavam-me se me cansava, se me aborrecia, seis aldeias, longe umas das outras, horas e horas de carro, e respondia que não me cansava, nunca.” Recordado o passado, recordará agora a noite, recente, em que o fogo chegaria: “Isto foi um bocadinho horrível, um bocadinho horrível. Muito horrível. Começou a arder por todos os lados, tentámos socorrer toda a gente, salvar as pessoas, havia muita contra-informação também, que já ardia aqui, que já ardia ali. Uma azáfama. Foi angustiante: o cerco durou a madrugada toda”.
Nunca fui bombeiro, nada sei de incêndios. Mas puxei de mangueiras, bati no fogo, nas giestas. Não chegou."
O combate fez-se corpo a corpo, “o combate de alguém pequeno a lutar contra um gigante”. O padre Pedro não tem qualquer experiência a combater incêndios. “Nunca fui bombeiro, nada sei de incêndios. Mas puxei de mangueiras, bati no fogo, nas giestas. Não chegou. Tentámos intercetar o fogo, para que o fogo não entrasse nas aldeias. Não conseguimos.” Estamos às portas de Gafanhão.
Pedro estaciona junto do café São João. Quando nos fala do incêndio, há sempre um “nós”. Nós, população. Todos. Sozinhos. “Tínhamos muitos populares, muita água, cisternas, tratores carregados de água. Mas nós, no fundo, só andávamos a ‘regar’ o fogo, não a apagar. Se houvesse um carro, um carro só!, de bombeiros, o fogo não teria passado, garanto-lhe que não. Não apareceu ninguém, passavam [bombeiros] e diziam que não podiam ajudar, que não tinham ordens para isso.” Entramos no café de Arlindo, Arlindo não parece estar, Pedro pousa duas caixas de máscaras e Arlindo surge-nos de trás de uma arrecadação.
− Mestre, ‘tá rijo?
− Estou é podre!
− Pois… foi duro.
− Foi o inferno. O inferno! Hoje são quantos?! Sexta? Quinta? Quinta. Perdi a noção do tempo. Foi todo o dia e toda a noite. Parecia o fim do mundo, nunca vi!, nunca assim vi coisa igual.
O padre diz que vai ali deixar algumas máscaras, pede que seja Arlindo a dá-las a quem vier, “porque este fumo, as poeiras, isto faz muito mal”. “Deixe, deixe…” Arlindo está revoltado. O padre escuta-o. “Mas isto foi mesmo muito mau… Era para aí um quarto para a uma e vi três chamas em sítios diferentes. Mas ainda longe. Passado uns segundos, vejo passar um carro branco, a acelerar. E o fogo veio por aí abaixo. Foi muito rápido, saltou o rio, foi muito rápido.”
Abandonamos Gafanhão e Pedro diz, já cá fora, não querer entrar “em teorias da conspiração”. Mas que as há, há. “Que é estranho, é. Quem conhece este território disse-me que os fogos, aparecendo à hora a que apareceram, foram obviamente postos meticulosamente, para fazer um cerco, para queimar tudo.” Não fala em perdão, mas quer crer que “quem faz isto não sabe bem o que faz, não pode saber”.
O que fez, se é que o fez, foi tirar o sustento às famílias. "Muita gente vive dos cortes da madeira, da agricultura, dos animais. Subsistem da terra. E está tudo destruído, tudo destruído.”
Alfredo e as três Marias
Partimos rumo àquela que, das aldeias, terá sido a que mais sofreu, Covas do Rio. Perdeu-se, apesar de tudo, uma casa só. Um motivo há: “É que lá, um senhor, o Alfredo, que tem 80 anos!, defendeu aquela aldeia — a aldeia tem o quê?, uns 15 habitantes, mais coisa menos coisa… —, comandou as operações, teve a ajuda de um rapaz e de três mulheres, de três Marias, mas foi ele que salvou aquilo. Sem eletricidade, sem comunicação, sem água da companhia. Sem bombeiros.”
No sinuoso e cauteloso percurso para conhecermos o herói, um outro homem de Covas do Rio liga. Aparenta sobressalto:
− ‘Tou, Manel? Então, ‘tá em Covas [do Rio]?
− Não, estou em São Pedro do Sul. A trabalhar.
− Diga-me lá…
− Olhe: ardeu alguma capela?! Disseram que sim…
− Capela? Não, não. Ardeu foi uma cozinha lá no [Santuário de] São Macário. Um barracãozito. Capela, não.
− Ah, pois. É que me disseram…
− Não ardeu, não. Esteja descansado, Manel.
− Pois, antes ser mentira, graças a Deus!
Nenhum habitante daquelas paróquias não tem o número de telefone do padre Pedro. Na longa noite e prolongada madrugada do infame incêndio, o telefone tocou e tocou e tocou até que não podia mais tocar. “Pediam-me que eu rezasse por eles. ‘Reze pela minha casa.’ E depois, quando me viam, viam que a fé estava junto delas, redobraram a vontade de combater. E combati ao lado delas. Depois, na terça-feira à noite, quando nos faltaram as comunicações, deixei de saber das pessoas noutras aldeias. Senti-me impotente”, confessa o pároco.
Chegámos a Covas do Rio, mas logo na entrada o padre Pedro é travado. Uma das Marias vai de saída. Param os carros, conversam janela com janela:
− Ó Maria, então, carago? Levaram aqui uma malha!
− Ui, senhor padre! A casa nova do Mesquita ardeu, também a da Maria do Vintes esteve quase-quase… A nossa sorte foi ter o senhor Alfredo e o rapazito…
− O senhor Alfredo está por casa?
− Não sei.
Maria acredita que só por milagre apenas uma casa ardera. “Eu pedi muito a Deus. Muito, muito.” Pedro só ouve e acena. Maria descreve o que de noite sentira. E do que mais sentira ausência. “Isto era só vento e lume, não apareceu aqui ninguém, ninguém, achávamos que morríamos aqui. Este fogo urrava! Não dava para sair — o senhor padre ainda me ligou, mas aí já era quando ninguém entrava também. Liguei para 112, atenderam uma vez, disseram que iam mandar meios. Até hoje! Até hoje…”
“Vá, calma, Maria. Calma. Vai com Deus”, responde o padre Pedro, mas fechada a janela logo atira: "É, faltam meios, faltam…”
Recusa, ainda assim, criticar os bombeiros, mesmo tendo “trabalhado até quase desmaiar” naquele combate — até porque eles, bombeiros, “sentem medo como nós”. “Mas passavam por aqui, viam isto, e diziam que não tinham ordem para parar, que não podiam prestar ajuda. Houve muito desorganização”, lamenta. Valeu, repete, a união: “As pessoas uniram-se. Vinham de umas aldeias para as outras — isto enquanto não ficaram cercados, pois aí ninguém entrava nem saía. Houve um que de tanto ajudar os outros acabou por deixar o próprio aviário…”
Fé sem obras não é nada. Se estivéssemos só parados, isto arderia mais ainda. Mas é a fé que move, move-nos, deu-nos ânimo, força, para enfrentar este inimigo. E, sim, houve ajuda d’Ele. Porque acaba por não acontecer o pior. Ninguém morreu.”
Ainda assim, unidos numa luta desigual, o padre Pedro não esquece que “havia muita gente perdida, claro, sem lucidez, o que é normal, amedrontada”.“O pior é que foi muito tempo, muito tempo. E cercados”, recorda-nos, voz embargada. Recupera quando falamos de fé. Embora, garanta, “fé sem obras não é nada”. “Se estivéssemos só parados, isto arderia mais ainda. Mas é a fé que move, move-nos, deu-nos ânimo, força, para enfrentar este inimigo. E, sim, houve ajuda d’Ele. Porque acaba por não acontecer o pior. Ninguém morreu.”
Estamos na aldeia. À passagem da carrinha do padre Pedro, muitos se abeiram da janela ou portadas. “Acredite nisto: reconhecem as pessoas só pelos pneus, pelo barulho do pneu.” Uma idosa aceita feliz as máscaras, mas parece ter outra preocupação que não os ares de fogo.
− Tome lá uma máscara, por causa da respiração, cuidado com os seus pulmões. Tire mais!, tome três.
− Obrigado, senhor padre, vou usar, vou. E quando é que é a missa?
− Terça. Não: quinta. Quarta? Terça, quarta, quinta: é quinta!
A casa de Alfredo fica já adiante. Rosa, mulher do herói de Covas, atira a Pedro: “Cafezinho, senhor padre?” Alfredo alicia: “Hidromel?” Ofende-se se recusamos. O jornalista logo cede. Falamos de incêndios à mesa de casa. Alfredo é experimentado no combate, garante que ali há fogo de sete em sete anos, “mas nunca assim, assim nunca vi”.
“Veio a meio da tarde, da zona de Castro Daire, desceu à beira do Rio Paiva, atravessou para cá, galgou!, isto foi um instante, o vento a soprar que era uma coisa louca. Ainda fui à serra mais um campadre, para ver onde estava, e o lume veio atrás de nós em menos de nada, tivemos de fugir depressa. Queimou tudo, pelo cume da serra abaixo tudo ardido”, recorda.
O frente a frente logo começaria. Desigual mas, apesar de tudo, capaz. “Isto foi cada um pegar na manguerinha e ir regando, regando.”
Envaidece-se quando lhe referimos o heroísmo que dizem que teve. “Eu comandei? [Risos] Fiz o que pude. Mas trabalhámos em conjunto. Um rapazito é que me ajudou, grande homem, grande homem!, e nem é de cá. Ajudou-me a acudir. Eu deixei a minha Rosa lá no cimo, a regar, e desci, para defender as outras casas. Salvei pelo menos três casas: a da Conceição Francisca, a do Gomes da Churrasqueira… A do capitão ardeu todinha! E quando faltou a água, fomos aos poços, a baldear, pumba, pumba, pumba!, baldes de água.”
Rosa, sozinha “lá no cimo”, teve medo? “Oh se tive”, responde a mulher de Alfredo. Também Alfredo teve: ““Medo? Senti muito. Ficámos encurralados. Vi-me atrapalhado… [Pausa] Principalmente no amigo Gomes, na casa dele. Eu tinha medo de morrer. Eu quero lá saber dos meus bens! Quero é viver!”
Numa das casas, “com fogo por cima e pelos lados”, acredita ter existido um ato divino. “Não é por estar aqui o senhor padre, mas foi um milagre, foi sim, porque eu vi com estes dois olhos a casa da minha falecida irmã rodeada de fogo, rodeada!, e eu como uma mangueira, um mija-mija, consegui safar”, recorda, disfarçando a emoção enchendo um cálice. “Vá, beba lá isso!”
O padre Pedro acredita, ossos do ofício, na intervenção divina, “até porque o inimigo foi um bocadinho simpático”. “Chegava à porta das casas e não entrava, não estava convidado para entrar e não entrou. A ajuda como te disse foi nenhuma [dos bombeiros]. Podia ter sido uma desgraça.”
A desgraça, para Alfredo, tem mão criminosa. A televisão está ligada, sonora. Neste instante, ouvem-se notícias da detenção de incendiários. Alfredo empolga-se: “Isto é fogo posto. Fogo posto! Mas é que digo-lhe já: é organizado, é pirataria. O que é que andam a fazer as autoridades? Prendem um, dois. E não tarda estão cá fora. E a justiça? A justiça não pode ser branda! E os políticos? Culpam os incendiários, os madeireiros. São tudo bodes expiatórios. Os políticos não fizeram nada pela floresta, nada!” Falou e disse. Convida-nos a ver o quanto perdeu e perda maior teve-a numa vinha. É logo à frente, antes vemos uma cerejeira queimada, “comi cerejas aqui em miúdo e nunca mais como”.
A vinha está morta. Mirrada, escura. Pendurada, ainda com uvas — que Alfredo colheria no fim do mês —, mas já sem recuperação. Haverá de ter de novo uvas. “Perdi 120 videiras de Touriga Franca, que fui buscar a São João da Pesqueira — a terra do vinho do Porto — há sete anos e plantei eu mesmo. Davam um vinho tão bom, tão bom. Uma qualidade! Agora? Agora estou velho. [Mas salvou a aldeia…] Oh, não me faça rir! [Risos] Mas, pronto, enquanto puder, vou reconstruir. Mas isto [fogo] vai voltar a acontecer”, augura.
O padre Pedro parte rumo a nova paróquia, Figueiredo de Alva.