O outro lado do bairro do Zambujal, onde Odair dava gomas aos miúdos - e agora se convida "o senhor Ventura para uma cachupa"
REPORTAGEM || No lugar onde Odair Moniz foi criado, teve três filhos, abriu um café (onde lhe fazem hoje uma derradeira despedida) e ainda vivia, todos lhe reconhecem qualidades humanas - "era um irmão, um amigo, um confidente" - mas ainda não querem pensar na falta que fará
A noite foi de desacatos e, no bairro do Zambujal, na Amadora, a luz do dia deixou a descoberto a destruição. Pelas ruas principais, as marcas dos incêndios eram ainda bem visíveis e o autocarro da Carris Metropolitana que foi incendiado no meio do bairro - mesmo ao lado do "café da Sónia" - quase que servia de rotunda. Não fosse isso, quase se podia dizer que a noite tinha sido calma e nada se tinha passado. Mas, o clima de tensão palpável pelas ruas e os muitos jornalistas concentrados junto ao que restava do autocarro ardido faziam adivinhar o contrário. Os jornalistas e os muitos moradores de vigia ao que por ali se passava.
Hermínia tem 82 anos. Está sentada num banco de pedra, de frente para o prédio onde sempre morou, um quarto andar de um prédio sujo e gasto no Bairro do Zambujal, na Amadora. “Ainda foi o meu marido, já falecido, que andou aqui a construir estas primeiras casas. Acredita? É verdade.” O bairro cresceu, mudou. Hermínia não, mantém a rotina de todos os dias, “tomar o pequeno-almoço no café da Sónia”, e rotineiramente reconhece-lhe os problemas: “No café, por lá andam uns [pausa], ainda são uns quantos!, enrolam uns cigarrinhos, sabe?, daqueles cigarrinhos, entram e saem, saem e entram. Mas eu não lhes digo nada, eu cá não quero saber das vidas dos outros”, garante, referindo-se depois, baixo, entre dentes, ao tráfico.
Diz também “saber bem” quem na noite de ontem incendiou caixotes do lixo e barricou estradas - e assim lhe tirou o sono -, “mas disso nem quero falar”, porque prefere falar “da gente boa que aqui vive, que olha por gente como eu, que estou sozinha - tenho uma vizinha cigana que me trata tão bem, tão bem”. Hermínia, enquanto mãe, tratou bem, enquanto criança, de Odair Moniz, o homem de 43 anos morto por um agente da PSP na passada segunda-feira.
“Era bom, o Odair era boa gente, bom menino - e deixou três meninos! [chora] -, era da idade dos meus filhos, cresceram juntos, tantas vezes eu lhe dei de comer, às vezes nem para nós tinha e dei. Criei-o como se fosse meu. Ele não merecia isto que fizeram, era bom, ele era”, lamuria. Despedimo-nos. Hermínia despede-se: “Liguem-me se precisarem de mim, liguem!, ‘tá bem? Olhe! [Sussurra] cuidado, cuidado…”
Seguimos caminho e voltamos ao local onde os jornalistas estão concentrados. A vigia dos moradores parece que relaxa com a chegada de Gilberto Pinto e Telmo Miranda que nos levam pelas ruas do bairro até ao café que era gerido por Odair Moniz. Querem mostrar que o bairro do Zambujal "é um bairro bom" e que Odair - o "Dá", como lhe chamam - "era um homem bom" que ali "vai fazer muita falta".
"Temos aqui um bairro multicultural, temos aqui um bairro bonito, temos aqui um campo de futebol. Isto é um bairro em que é agradável viver, em que as pessoas gostam aqui de viver, temos aqui uma comunidade multicultural", começa por contar o presidente da Associação de Moradores do Bairro do Zambujal - A Partilha.
Passo ante passo, debaixo do sol a pique e sob o olhar atento dos moradores que espreitam pelas janelas e cumprimentam a dupla, dirigimo-nos para o café de Odair Moniz - "mas não em linha reta". O bairro segue o dia com uma aparente normalidade e é isso mesmo que Gilberto tenta mostrar. Que ali é "um bairro tranquilo" onde vivem "pessoas de bem de todas as raças".
"Temos aqui pessoas de bem de todas as raças, pessoas que trabalham, que fazem os seus descontos, e nós aqui todos, esta população toda que vive aqui, vivemos em harmonia, somos todos amigos um dos outros, convivemos aqui pessoas de etnia africana, ciganos, portugueses. Nós na nossa associação estamos representados por todas estas etnias, vivemos todos em harmonia e gostamos aqui todos do bairro", garante.
Mas apesar de viverem todos em "harmonia" e de ser um bairro "tranquilo", as últimas noites foram de tumultos, com carros e caixotes do lixo incendiados, que fizeram com que adultos e crianças pensassem duas vezes antes de sair à rua.
"Obviamente os moradores não querem que isto aconteça, ficam tristes, ficam preocupados, até com os bens deles. Não é nada disso que nós queremos, nós queremos é que seja reposta à verdade, e queremos que a paz volte. Nesta altura, há crianças com três e quatro anos que não querem ir para a escola, que estão com medo, há pessoas que para entrar no bairro do Zambujal à noite não conseguem entrar, pessoas que saíram do trabalho, e nós só queremos é que este alarme social pare", afirma, insistindo que "é importante voltar à normalidade o mais rápido possível".
Telmo Miranda, amigo de Odair, confessa mesmo que tem sentido medo ao sair de casa porque não sabe "o que pode acontecer". "Posso passar e levar um tiro ou uma pedrada. Por isso mesmo, eu peço que isto acabe e que tudo se resolva", apela e diz mesmo que "não foi justo o que fizeram perante o Odair e há que haver um culpado perante isso".
Um apelo partilhado por Gilberto Pinto que afirma que "o que se diz neste país, desde Trás-os-Montes a Vila Real de Santo António, é que o bairro do Zambujal é uma cambada de assassinos e nada disso corresponde à verdade".
"Mora aqui muita gente trabalhadora e eu faço um convite ao senhor André Ventura para vir aqui. Nós mostramos o que é o bairro do Zambujal ao senhor André Ventura. Ele que venha aqui, que vai ser bem recebido, come aqui uma cachupa, que estas pessoas de Cabo Verde sabem fazer, e vai conhecer o bairro do Zambujal, há muita gente digna aqui, há aqui muita gente de valor".
Gente de valor como Odair, dizem. Amigos há vários anos - Telmo conhecia Odair há sete anos, Gilberto há mais de 25 -, os dois moradores do Zambujal não precisam de puxar muito pela memória para recordar o amigo e lembrar que "era uma pessoa por quem se tinha um carinho muito especial". "Ele era voluntário ali na associação, sabe? Ia buscar o pão à Padaria Portuguesa, dava-nos uma ajuda, porque o Odair vivia mesmo ao lado da associação, sabe? Agora, o Odair faleceu e deixa três filhos, está a ver?", diz Gilberto enquanto olha para Telmo, como quem quer confirmar que nenhum dado lhe falta.
E continua, contando-nos que "para além da esposa, a Mónica, ele deixa um menino com dois anos, deixa a filha que é adolescente, deve ter aí cerca de 18 anos, e depois tem um filho com cerca aí de 19 anos".
"Isto é uma perda muito grande que nós tivemos aqui na nossa comunidade, porque era uma pessoa muito respeitada e muito acarinhada. Nesta rua toda a gente gostava do Odair. Pretos, brancos, ciganos, toda a gente. Ele dava gomas aos miúdos, dava comida aos meninos no restaurante dele, ele agora antes de falecer ia buscar cachupa para dar às pessoas lá na Cova da Moura. É verdade. Ele vinha a casa buscar uma panela de cachupa para dar às pessoas na Cova da Moura. E, portanto, era uma pessoa por quem nós tínhamos aqui um carinho muito especial".
A esta hora, quarta-feira à tarde, ainda não havia duas informações importantes: a de que os policias reconheceriam que não havia nenhuma faca e a de que Odair tinha cadastro por tráfico de droga e crimes violentos: assaltos à mão armada, crime pelo qual esteve preso.
Ainda em choque como, garante, todos os moradores, Gilberto explica que a "comunidade ainda não percebe a falta que Odair vai fazer, os filhos dele ainda não conseguem saber a falta que o pai vai fazer". Apesar disso, Telmo diz saber que este "faz muita falta à comunidade" porque perdeu "um irmão, um amigo, um confidente como o Odair, que não tinha maldade e era um ser humano incrível". Ambos permanecem em silêncio, como se voltassem a sentir o peso da falta de quem se foi. "Não faz sentido, amigo", ouve-se Gilberto dizer a um grupo de moradores sentados na sombra dos prédios.
Ao longo do caminho que falta até ao café de Odair, Gilberto faz as despesas da conversa e lembra que os moradores do bairro se sentem "esquecidos" e que "tem de ser desmistificado" o estigma de viver num bairro social - "porque viver num bairro social ou viver em Cascais ou ali nas Amoreiras é a mesma coisa, não é?".
"Isso é um estigma que tem que ser desmistificado", ressalva. Perguntamos-lhe então sobre como é que o Estado podia apoiar mais quem vive no bairro e Gilberto diz que vai "ser claro" - as pessoas que ali vivem, "os arrendatários que pagam as rendas", deviam ter as casas "arranjadas", sendo esse um dos problemas apontados no Zambujal.
Mas, diz, não só por isso, os moradores sentem-se "esquecidos". "Claro que nós nos sentimos esquecidos. Mas não é só 'nós'. É muita coisa em que os cidadãos portugueses se sentem esquecidos, não é? Porque devia haver igualdade para toda a gente, não é? Neste país, não é só no bairro social. Em todos os sítios devia haver igualdade, não é? Para as pessoas se sentirem protegidas, não é? E é isso que as pessoas sentem neste momento neste país, não é?"
Chegamos finalmente ao café do Txitxo (nome do antigo proprietário) que estava agora a ser gerido por Odair e pela esposa, Mónica. "E é um sítio agradável de se ir, porque eu, pá, não tenho é muito tempo, mas eu almocei lá muitas vezes, está a ver?" questiona Gilberto, como acha que possamos duvidar dele, para pouco depois reforçar que "muitas vezes, ia até esse café. Porquê? Porque está ali uma comunidade".
Era nesse café que Odair mostrava o seu lado mais altruísta. Para além da cachupa que levava à Cova da Moura e do pão que iam buscar à Padaria Portuguesa "ele depois tinha esse lado altruísta de ajudar as pessoas, às vezes, pagava a alimentação a quem não podia, pronto, pessoas necessitadas, pessoas que tinham fome".
"E isso é um legado que ninguém consegue apagar, não é? Toda a gente, desde adolescentes até homens feitos. E muita gente aqui no bairro do Zambujal tem conhecimento disso". São essas gentes que, nas grades do café que Odair geria, têm deixado velas e até um ramo de flores. A última despedida faz-se no coração do bairro, entre o silêncio incómodo, a tensão palpável e a ausência de policiamento. As vozes da polícia ouvem-se vindas do telemóvel de um morador que acompanha a conferência de imprensa da PSP através da televisão e misturam-se com os gritos das crianças que saem para a rua curiosas com tanto aparato.
A vida, essa, regressa à normalidade possível. A noite ainda estava longe de chegar. E Hermínia, Gilberto e Telmo esperavam que fosse calma.
Esta reportagem foi alterada com novas informações às 11:30 de quinta-feira.