O general russo por trás das atrocidades na Síria que atacou civis na Ucrânia com bombas de fragmentação
General russo Alexander Alexandrovich Zhuravlyov. Foto: Kremlin/Edição CNN

O general russo por trás das atrocidades na Síria que atacou civis na Ucrânia com bombas de fragmentação

Investigação
Nima Elbagir, Barbara Arvanitidis, Gianluca Mezzofiore, Katie Polglase, Tamara Qiblawi, Alex Platt, Victoria Butenko, Darya Tarasova e Maria Avdeeva

Infografia
Henrik Petterrson e Connie Chen

Edição de vídeo
Oscar Featherstone

Enquanto ia buscar água potável para a família numa tarde ensolarada, mas fria, no final de fevereiro, Margarita Kiriukhina tentou ignorar os estrondos e barulhos dos bombardeamentos russos nas proximidades.

Na fila, com dois garrafões na mão, Margarita tentou aliviar o ambiente, contando piadas com os vizinhos enquanto esperavam pela sua vez no dispensador de água. Apesar dos horrores que se abatem sobre a cidade depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, organizaram-se em fila de forma ordenada.

De repente, Kiriukhina ouviu um som de assobio por cima da cabeça. Depois de vislumbrar algo pelo canto do olho, gritou para que todos se baixassem. A fila ficou rapidamente encharcada em sangue, o ar encheu-se de gritos.

Moscovo acabara de lançar um dos seus famosos rockets de fragmentação Smerch de 300 mm, um projétil que desencadeia 72 submunições sobre uma área do tamanho de um campo de futebol americano, atingindo Kiriukhina e os seus vizinhos.

A torrente de estilhaços cortou a perna, a mão e a testa de Kiriukhina. Um homem nas proximidades perdeu dois dos dedos.

"Senti que a minha perna e a minha anca se romperam. O meu braço foi atingido e não senti a cabeça", contou Kiriukhina à CNN.

A mulher de 56 anos foi levada para o hospital num carrinho de mão e ficou internada durante dez dias.

Um vídeo publicado nas redes sociais mostrava uma mulher, de ar corajoso, enquanto a perna se esvaía em sangue. Um pé decepado estava a alguns metros de distância. Outra mulher fez um torniquete de uma coleira de cão, tentando desesperadamente salvar a mulher ferida, de acordo com testemunhas oculares.

Margarita Kiriukhina esteve hospitalizada durante 10 dias depois de ter sido ferida com um ataque com bombas de fragmentação em Kharkiv. Foto: Alex Platt/CNN

 

Não foram os únicos rockets Smerch disparados contra Kharkiv num período de 48 horas no final de fevereiro, quando tropas russas lutaram para tomar a cidade das forças ucranianas. E a Ucrânia não é o primeiro campo de batalha onde as forças russas lançaram munições de fragmentação com efeitos devastadores contra civis.

Aos sobreviventes da longa guerra civil da Síria, as cenas em Kharkiv evocam inúmeras outras levadas a cabo pela Rússia depois de ter intervindo para ajudar o Presidente Bashar al-Assad em 2015.

Através da análise de imagens de satélite em colaboração com o Centro para Resiliência da Informação (CIR) e investigações no terreno, a CNN identificou a brigada de artilharia de rockets que lançou o ataque de munições de fragmentação em bairros residenciais da segunda cidade da Ucrânia, no dia em que Kiriukhina e os seus vizinhos foram atacados. Aquela brigada reporta diretamente ao mesmo líder militar, o Coronel General Alexander Zhuravlyov, que supervisionou um dos capítulos mais brutais da guerra da Síria.

A CNN identificou 11 rockets Smerch que aterraram em Kharkiv a 27 e 28 de fevereiro como propriedade da 79ª Brigada de Artilharia Russa, sediada na região russa de Belgorod.

Essa brigada reporta diretamente à liderança do Distrito Militar Ocidental (DMM), um dos cinco distritos militares do exército russo, sediado na parte ocidental da Rússia.

Vários peritos militares disseram à CNN que Zhuravlyov, o equivalente russo a um comandante de teatro de operações nas forças armadas americanas, é o único oficial com autoridade para ordenar um ataque de rockets Smerch no seu distrito. Como arma de elevado valor, precisa de uma autorização sénior.

O Kremlin e o Ministério da Defesa russo não responderam ao pedido de comentário da CNN.

Investigação CNN: O general russo por trás dos ataques que tiveram os civis como alvo

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Lições da Síria

Zhuravlyov, 57 anos, foi contratado como oficial soviético na década de 1980, quando serviu na antiga Checoslováquia com um grupo de forças russas. Após o colapso da URSS, regressou à Rússia, inicialmente servindo nas unidades de carros de combate.

Destacado para a Síria três vezes, tornou-se o comandante das tropas russas no país durante a sua segunda passagem pela Síria, em julho de 2016. Antes de assumir o cargo, Moscovo estava envolvida numa luta sangrenta para capturar o leste de Alepo aos rebeldes, fazendo avanços constantes contra a oposição armada.

Quem é Alexander Zhuravlyov?
Quem é Alexander Zhuravlyov?

A liderança de Zhuravlyov catalisou o ataque ao leste de Alepo. Depois de assumir o controlo, os militares russos rapidamente intensificaram os seus ataques ao território dos rebeldes e completaram o cerco à cidade densamente povoada, provocando um grande número de mortos e abrindo caminho para uma tática que definiu a intervenção da Rússia na Síria: cerco, fome, bombardeamento e tentativa de submissão.

O seu período de comando também registou um aumento drástico dos ataques documentados de munições de fragmentação em Alepo.

De acordo com o Centro de Documentação de Violações, que documenta violações dos direitos humanos na Síria, as munições de fragmentação foram usadas 137 vezes em Alepo entre 10 de setembro e 10 de outubro de 2016, um aumento de 791% no número médio de ataques com munições de fragmentação nos últimos oito meses.

Em 2015, o Ministério da Defesa da Rússia negou ter usado munições de fragmentação na Síria.

Foi uma escalada que os grupos de ajuda procuraram chamar a atenção do mundo. Na altura, a então diretora da Save the Children na Síria, Sonia Khush, disse em comunicado: "Há crianças com membros recém-amputados ou com rolamentos de esferas embutidos no tecido muscular devido ao uso destas armas terríveis e indiscriminadas".

Em Kharkiv, a CNN falou com dezenas de testemunhas oculares em vários bairros alvo de 11 ataques com rockets Smerch ocorridos nos dias 27 e 28 de fevereiro.

Imagens de videovigilância mostram residentes de Kharkiv em busca de abrigo a 28 de fevereiro, com as munições de fragmentação a explodirem ao redor. Fonte: Telegram, verificado pela CNN

Recordaram a morte e destruição que as munições de fragmentação fizeram na sua cidade. As ruas estavam cobertas de feridos, carros em chamas e vidros partidos. Uma testemunha disse que uma dúzia de pessoas ficaram feridas, só no seu prédio de apartamentos, num único ataque de rockets Smerch.

"Não sei exatamente o que era aquilo, mas estava por todo o distrito. Umas peças pequenas que explodem e espalham estilhaços perigosos por todo o lado", disse Yuriy Braiko, analista de programas de TI que vive em Kharkiv. "Geram um monte de estilhaços minúsculos que entram em vários lugares, atingem janelas e pessoas."

Os restos de rockets vistos em Kharkiv pela CNN e as marcas de queimaduras deixadas pelos projéteis revelaram a direção do ataque, que a CNN rastreou até à região russa de Belgorod, perto da fronteira com a Ucrânia.

Como relacionámos os rockets de fragmentação Smerch em Kharkiv com Zhuravlyov

Através de uma combinação de vídeos das redes sociais, cálculos de trajetória, imagens de satélite da PlanetLabs e relatos no terreno, a CNN e o Centro para Resiliência da Informação conseguiram rastrear os rockets até a uma Brigada de Artilharia de Rockets que reporta ao General Alexander Zhuravlyov.

A CNN visitou um local onde as autoridades ucranianas tinham recolhido grandes montes de artilharia explodida e não explodida. Mark Hiznay, especialista em armas e diretor associado de armas da Human Rights Watch, analisou imagens do local e disse que as fotografias indicavam que os ataques de munições de fragmentação tinham acontecido a uma escala que não se via há anos.

"Há muitas munições de fragmentação utilizadas numa escala que provavelmente foi além do que vimos no sul do Líbano em 2006", disse Hiznay, referindo-se à guerra de 2006 entre o Líbano e Israel, durante a qual os militares israelitas lançaram cerca de 4 milhões de submunições no sul do Líbano, segundo as Nações Unidas.

"Não é como nos filmes em que se vê o míssil antes de a bomba chegar. De repente, temos 72 submunições a detonar ao longo de um campo de futebol americano", afirmou Hiznay. "É por isso que as pessoas são literalmente cortadas ao meio com estas coisas. Não se fica com muitas queimaduras. Não se tem ferimentos de explosão. É apenas a fragmentação, terrível e sangrenta."

As armas de fragmentação contêm múltiplos explosivos que são libertados sobre uma área que pode ter o tamanho de vários campos de futebol. Podem ser largadas a partir de um avião ou da terra ou mar
  • As submunições são libertadas em voo e caem no chão. Podem variar entre as dezenas e muitas centenas.
  • São projetados para explodir no impacto, mas isso não acontece com cerca de um terço, e continuam a ser um risco mortal para os civis, nos anos que se seguem.
  • 94% das vítimas mortais de bombas de fragmentação são civis, das quais quase 40% são crianças

Nota: As munições de fragmentação podem variar muito em design e escala, este gráfico apenas tem como objetivo explicar a sua função geral.

As bombas de fragmentação são proibidas ao abrigo de um tratado internacional - a Convenção de 2010 sobre munições de fragmentação - que proíbe o uso, transferência, produção e armazenamento de armas. O tratado cita o fracasso de muitas submunições em explodir no impacto, deixando perigosas munições em campos e áreas urbanas que podem matar ou mutilar pessoas. A Rússia, a Ucrânia, os Estados Unidos e Israel estão entre os países que não são signatários do tratado.

Mas um ataque de qualquer género que atinja indiscriminadamente civis, como revela a investigação da CNN no terreno, nos dias 27 e 28 de fevereiro, parece ser um crime de guerra, segundo vários peritos entrevistados.

"Os assassinatos extrajudiciais e o bombardeamento da população civil, que não é uma necessidade militar nem proporcional à ameaça que enfrentam, são contra as Convenções de Genebra", afirmou Philip Wasielewski do Instituto de Investigação em Política Externa.

"E com base no padrão de responsabilidade de comando das Convenções de Genebra, o General (Zhuravlyov) é culpado, assim como qualquer outra pessoa na sua cadeia de comando."

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" Os ferimentos são iguais"

Um médico que tratou feridos de guerra em ambos os conflitos ficou surpreendido com as semelhanças. As pessoas chegavam ao hospital de Kharkiv com estilhaços, danos na pele e musculares, amputações, fraturas abertas e traumatismo craniano.

O cirurgião ortopédico sírio-americano, o Dr. Samer Attar, que trabalhou em Alepo quando as forças de Zhuravlyov sitiavam a cidade, viajou para a Ucrânia a partir da sua cidade natal de Chicago, na esperança de ajudar os médicos ucranianos a lidar com a vaga desconhecida de feridos de guerra traumatizados.

O Dr. Samer Attar tratou ferimentos de munições de fragmentação no leste de Alepo e viajou para a Ucrânia para tratar os feridos em Kharkiv. "Os ferimentos são iguais," disse à CNN. Foto: Alex Platt/CNN

Attar descreveu os ferimentos que tratou em Kharkiv e os que viu em Alepo em 2016 como "iguais".

"Podemos ouvir as sirenes de ataque aéreo, mas todos aqui aprenderam a permanecer quietos e firmes e a continuar", afirmou. "Lá fora, nunca para e o trabalho também não."

Em dezembro de 2016, os rebeldes que estavam escondidos no leste de Alepo finalmente renderam-se e o governo sírio e as forças russas reconquistaram o território.

Uma rua no bairro Salihin, controlado pelos rebeldes, em Alepo, coberta de destroços a 11 de setembro de 2016, após a Rússia ter atacado a zona residencial com bombas de fragmentação. Foto: brahim ebu Leys/Anadolu Agency/Getty Images

 

Com o fim da batalha por Alepo, Zhuravlyov deixou o comando dos militares russos na Síria e regressou à Rússia. Foram-lhe atribuídas as maiores honras concedidas a um oficial russo, o Herói da Federação Russa.

Foi promovido duas vezes no ano seguinte e tornou-se comandante do Distrito Militar Ocidental – a mesma divisão que causou a morte e destruição em Kharkiv e em outras partes da Ucrânia – pouco depois da sua terceira passagem pela Síria, em 2018.

"Os resultados que Zhuravlyov conseguiu na Síria foram exatamente o que os russos queriam, daí a sua recompensa com a medalha mais importante e o cargo mais alto que se pode ter", disse o perito militar russo Wasielewski.  "É o que Napoleão disse: 'a recompensa de um general não é uma tenda maior, mas um comando maior.'

Zhuravlyov disse mais tarde numa entrevista que a Síria lhe tinha ensinado sobre o valor do "engenho militar", e que as lições aprendidas estavam a ser integradas como uma "componente orgânica" de todo o treino militar russo.

Vladimir Putin com o Coronel General Alexander Zhuravlyov, ao centro, brindam após a parada militar do dia da Marinha em São Petersburgo, na Rússia, no dia 28 de julho de 2019. Foto: Alexei Nikolsky/Sputnik/Kremlin Pool via AP

Outro general russo que serviu na Síria ao lado de Zhuravlyov – o Tenente-General Aleksei Zavizion – foi nomeado adjunto de Zhuravlyov no Distrito Militar Ocidental no mesmo mês em que Zhuravlyov assumiu a sua posição atual. Apenas um ano antes, Zavizion tinha alegadamente liderado um grupo de combatentes separatistas depois de terem conquistado território das forças governamentais ucranianas na região do Donbass, no leste do país, de acordo com os serviços secretos militares ucranianos.

Os serviços secretos militares da Ucrânia também acusam Zavizion de estar por detrás de múltiplos ataques com sistema de rockets de lançamento (MLRS) em áreas civis na região do Donbass. Em 2017, a Ucrânia indiciou Zavizion por alegados crimes de guerra.

A CNN cruzou as suas conclusões sobre os dois generais russos com os serviços secretos militares da Ucrânia, que confirmaram ter acusado os homens de serem responsáveis por crimes aparentes contra civis em Kharkiv e noutros locais.

Nem Zhuravlyov nem Zavizion foram sancionados pela comunidade internacional.
"O Coronel-general Alexander Zhuravlyov devia ter sido sancionado pelas suas ações na Síria", disse à CNN um dos principais advogados de direitos humanos da firma de advocacia Payne Hicks Beach, Matthew Ingham. "É uma pena que não tenha havido uma resposta mais forte aos alegados crimes de guerra naquela fase, porque isso pode ter afetado os cálculos estratégicos ucranianos de Putin desde o início."

Entretanto, à medida que a invasão da Rússia continua no seu terceiro mês e a ofensiva no leste do país se intensifica, as bombas caíram sobre Kharkiv e grande parte da cidade perdeu os seus habitantes.

As fachadas de muitos prédios de apartamentos foram destruídas. Os residentes que permanecem foram levados para o subsolo, para acampamentos espalhados no sistema de metro da cidade.

Um rocket Smerch dentro de um carro em Kharkiv. Foto: Alex Platt/CNN

Depois de recuperar do ataque de rockets Smerch, a 28 de fevereiro, Kiriukhina fugiu de Kharkiv, na esperança de apagar as cenas de "filme de terror" da sua mente.

Agora, quando está em público, usa uma boina para esconder as cicatrizes das feridas.

"Estava de bom humor. O tempo estava agradável. O sol brilhava. Ninguém pensaria que tal horror iria abater-se sobre nós em poucos segundos", afirmou.

"Do fundo dos nossos corações e das nossas almas, desejamos punição por estes crimes. De alguma forma, a justiça prevalecerá. Mas, provavelmente, não será em breve.


Como fizemos este trabalho

A CNN verificou e analisou vídeos nas redes sociais que mostram múltiplas explosões compatíveis com o uso de rockets de munição de fragmentação Smerch de 300 mm em Saltivka e outras áreas residenciais de Kharkiv. Tanto a Human Rights Watch como a Amnistia Internacional obtiveram provas fotográficas de submunições de fragmentação não explodidas geolocalizadas para o local dos ataques. Num dos casos, uma submunição 9N235 tinha uma data de fabrico de 2019, anos depois de a Rússia deixar de vender estas armas à Ucrânia, confirmando que o ataque foi lançado pela Rússia.

A CNN obteve e verificou a foto original mostrando esta submunição. Os seus metadados mostram que a imagem foi tirada por um telemóvel a 28 de fevereiro perto da localização de um dos ataques com equipamento Smerch.

Uma equipa da CNN no terreno observou os padrões de impacto compatíveis com a explosão de munições de fragmentação.

Com a ajuda do perito em armamento Henry Schlottman, a CNN rastreou os rockets até à 79ª Brigada de Artilharia de Rockets, sediada em Belgorod.

Os serviços secretos militares da Ucrânia corroboraram as descobertas da CNN.
 

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