
"Ninguém sobe, está perigoso, ninguém sobe!". Esta família só queria ir para casa (fosse como fosse)
O incêndio na aldeia da freguesia de Torres de Mondego, em Coimbra, obrigou a diversos cortes, as autoridades foram irredutíveis, impedindo muitos de regressar a casa. Houve quem arriscasse serra dentro, sem gorar lá chegar, ignorando o apelo do primeiro-ministro. Aqueles que ficaram, quem só observou de longe, não tem dúvidas de que o incêndio de Carvalhosas “é um fogo posto”. “O fogo está num sítio, depois noutro, depois noutro"
Em Coimbra, já desde a tarde, o fogo arde na aldeia de Carvalhosas, bem no alto da freguesia de Torres de Mondego. Às primeiras horas da noite rodeia perigosamente várias casas. Em volta tudo é arvoredo, eucaliptais. O clarão é vívido. O fumo não é agora denso, antes uma quase neblina de serra, pois sopra um vento cada vez mais brusco, sem uma direção concreta, que leva o fumo mas dá fulgor às chamas.
Na rotunda da Estrada Nacional 17 que nos permite o acesso à aldeia, há um primeiro corte policial. A PSP permite a subida, que será breve. A poucos metros um segundo bloqueio, este da GNR, junto à Escola Básica de Ceira. “Ninguém sobe, está perigoso — até para os bombeiros! —, ninguém sobe”, explica um guarda.
Uma mulher vai tentando convencer o guarda, “eu vivo ali, deixei-me ir, vou a pé”. O guarda não parece ceder. A mulher é Zulmira. Com ela tem o marido, Celso, e a filha, Ana, ainda uma adolescente. Saíram de casa a meio da tarde, “quando já havia fogo mas longe”, para ir buscar a filha, “que estava no voluntariado”. Não conseguem regressar.
Frustradas as tentativas, conhecedores do território, aventuram-se numa tentativa de circundar Carvalhosas, “por Ceira, Fundo da Lomba, São Furtuoso, depois Carvalho, Zorro, depois Palheiros — e chegamos”. De carro, decidimos acompanhá-los.
Zulmira admite que o caminho que a GNR cortara é perigoso, percebem-se as labaredas adiante, “mas talvez desse para passar”. Não chora sobre leite derramado. “Vou ligar ao Antunes, tenho o número para aqui, a ver se nos explica o caminho — ele vive em São Furtuoso.” Antunes não atende. Liga agora para a irmã, que está em Carvalhosas. Ao mesmo tempo dá indicações, “ESQUERDA, ESQUERDA, agora é em frente”. “‘Tou? Ó mana, como é que está? Não, não deixam passar…” Ana vai ouvindo as respostas e logo se exaspera: “Pronto, piorou! Não vou dormir a minha casa — e amanhã tenho aulas. Eu só queria ir ver a minha gata…” Zulmira desliga a chamada: “A tia diz que do quarto vê um grande clarão!, diz que ficou sozinha agora, que eles foram ver do fogo”.
A Celso, o marido, não espanta o incêndio. Não é uma novidade em Carvalhosas. “Não, há todos os anos. Em 2017 foi grande, também em 2004. Ardeu uma casa, só não arderem mais por milagre.” Zulmira interrompe. E desconfia: “Não há coincidências. Ou há demasiadas coincidências…” Ana interrompe: “É sempre à tarde. E quase sempre nesta altura, às vezes em Agosto, mas é mais em Setembro.” Admitem mão criminosa. Zulmira lamenta a existência de eucaliptais a perder de vista: “Isto não se vê nos outros países! Isto se pega, arde tudo!”
Chegamos a São Furtuoso. Celso sugere que é Tapada. “Tapada?! Não é Tapada nada; Tapada é lá para baixo… Se encontrar um conhecido, perguntamos. Eu aqui já não conheço”, assume Zulmira. Não parece haver ninguém pelas ruas desta aldeia.
Num pequeno miradouro, um homem bebe cerveja e elucida-nos sobre o caminho. Mais ou menos. “Isto é fácil, tem que voltar para trás, faça marcha-atrás, depois sobe aquela rua, o caminho é estreitinho mas dá para ir, depois esquerda, e vai ter às Lagoas, sobe, depois começa a descer, sobe outra vez, e chega ao cimo. Depois não é para a esquerda, é à direita…” Zulmira parece entender. Mas logo em seguida admite que não.
Saímos da aldeia, o caminho continua alcatroado mas já sem casas, ladeado como tudo naquela envolvente por eucaliptos, está escuro, estamos no cimo da serra, sempre entre curvas. Minutos depois avista-se um camião dos Bombeiros da Lousã. Num entroncamento, abastece-se numa nascente. Os bombeiros sugerem, sem certezas, de que o caminho melhor é em frente. “Para Carvalhosas? Em princípio dá, para trás vai dar à A13.”
Seguindo o caminho, avista-se um clarão, mas ainda longe. Seguimos. E seguimos. Até que um jipe da GNR impede a passagem. “Não podem estar aqui! Chegaram aqui como?! Não podem estar aqui!”, insurge-se um guarda. E adverte: “Se fossem em frente, ficavam-se aí! Ficam-se aí! Virem para baixo, para baixo é seguro.” Regressamos. A volta é maior do que à vinda. Demora quase uma hora.
Zulmira sugere regressar a Torres de Mondego. “De lá, passamos para Carvalhosas através praia fluvial. A pé.” Assim fizeram, em breves minutos. E chegaram finalmente à aldeia. Zulmira e o marido, que saíram à tarde de casa, que regressam tarde esta noite já com a filha, não ouviram o primeiro-ministro esta segunda-feira. Luís Montenegro, antecipando a “iminência de uma tragédia”, sugerindo “horas difíceis”, apelaria, à noite, à população: “É preciso que cumpram as recomendações das autoridades”.
Em Torres de Mondego há dezenas de automóveis em segunda fila. Sobretudo curiosos, das imediações. Alguns até de mais longe. Observam o incêndio. As chamas rompem mais alto no céu. Ainda sem fumo. Ainda com mais vento. O vento parece afastar o pior. Nenhuma casa estará por agora em risco.
Manuel e Zé não são curiosos, vivem uma rua acima. Mostram-se preocupados enquanto observam o lavrar das chamas, “porque em 2017 o fogo galgou o rio, chegou mesmo aqui”, recorda Manuel, que curiosamente é familiar de Zulmira. Zé, um antigo guarda prisional, aposentado, que diz conhecer “a malta da pesada”, não tem dúvidas: “O fogo está num sítio, depois noutro, depois noutro. Isto é fogo posto, é alguém que conhece bem estas serras. Vai na volta e é um dos que está para aí, a tirar fotos”. É madrugada. Os vizinhos recolhem. Alguns curiosos, poucos, resistem.