"Não havia um único bombeiro. Nada. Nada, nada. A população quase se metia à frente do camião, de joelhos, e não paravam”
Carlos, um guia em Jafafe (Tiago Palma)
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"Não havia um único bombeiro. Nada. Nada, nada. A população quase se metia à frente do camião, de joelhos, e não paravam”

Terça, dia 17 || Jafafe, Águeda

Reportagem
Tiago Palma

A terra ainda continua a fumegar. Poucas árvores haverá por arder. Muitas queimaram rente às habitações. Cruzam os céus os Canadair. Os bombeiros já concluíram o rescaldo e abandonam. A normalidade regressará.

Não para já. Jafafe é só uma entre quatro aldeias de Águeda que sofreram entre segunda e terça-feira com um incêndio de grande fulgor, acentuado esse fulgor pelo vento forte, não tanto pelo calor — já que ao romper da manhã, quando chegou o incêndio às povoações, as temperaturas não eram tão elevadas quanto foram mais tarde.

Fernanda regressa lentamente à casa (Tiago Palma)
Fernanda regressa lentamente à casa (Tiago Palma)

Em Jafafe só se fala do fogo. Santiago e Cristina, casados, estão à porta de casa, garantem que foram dias “infernais” mas, ainda assim, “milagrosos”. “Milagroso porque só ardeu uma casa. Porquê? Porque a população esteve à altura, combateu um fogo sozinha. Sozinha”, garante Santiago. Cristina conclui: “Não havia um único bombeiro. Nada. Nada, nada. Passavam, a população quase se metia à frente do camião, de joelhos, e simplesmente não paravam. Não ajudavam”.

Como eles, muitos tentaram salvar as casas à força de braços e baldes. “Água não havia. Não tinha força. Nós temos poço, há vizinhos com piscina, e regávamos tudo, persianas, árvores, tudo.” Em 57 anos de vida e de Jafafe. Santiago diz nunca ter vivido algo semelhante. “Eram umas sete menos vinte quando eu me levantei para ir fazer o tratamento, porque eu faço diálise. Estava tudo limpinho, limpinho. Eu demoro 20, 30 minutos no tratamento. Quando voltei já isto ardia tudo! Parecia um inferno!”

Os incêndios não pouparam a população de Águeda (Tiago Palma)
Os incêndios não pouparam a população de Águeda (Tiago Palma)

Um vizinho mais novo irrompe na conversa. É Carlos. “É que isto é negócio, o fogo é negócio. Como pode ele começar em tantos sítios ao mesmo tempo? Impossível”, acusaria, enigmático. Cristina desanuvia e regressa às horas de combate “Olhe: fez-se noite de dia. As galinhas até recolheram, porque lá achavam que era mesmo de noite”. Riem-se. Santiago e Cristina entram para casa. Carlos pergunta se queremos ir ver a casa queimada. De habitação? Ou devoluta? “Da Fernanda”, responde.

Fernanda está a metros da casa, mas não entra. O exterior ardeu totalmente. Persianas já não há. Há estilhaços de vidros. A cozinha desapareceu, o telhado desabou. Resistiu uma pequena sala e dois ainda mais exíguos quartos. “Não consigo entrar, falta-me coragem, espreitei de fora, vi que do que sobrou, ardeu roupa, os móveis estão totalmente descolados. A cozinha é sucata. Su-ca-ta. Não aproveito nada”, lamenta. Entrará quando cair em si. “Eu sinto-me drogada, parece que tomei medicação. A minha cabeça ainda não entrou bem no que me aconteceu.”

Carlos, um guia em Jafafe (Tiago Palma)
Carlos, um guia em Jafafe (Tiago Palma)

O que lhe acontece foi sobretudo veloz. “Eu trabalho numa fábrica em Águeda. Peguei às seis da manhã. Àquela hora não havia fogo. Nada de nada. Às oito liga-me uma irmã, ‘Ó Nanda, tu vem para cá, que anda o fogo na tua casa!’ Não queria acreditar, mas vim. Quando cheguei, eram umas oito, já não se podia fazer nada, estava mesmo em cima de nós”, lembra, consternada.

Perdera-se a casa - na imagem de capa deste artigo -, e ainda mais lhe custou “porque tenho uma boca de incêndio ao lado e não funciona”, mas nem por isso se deixou abater. Não logo. “O que é que eu fiz? Fui proteger as casas dos meus vizinhos. Para não arder mais nenhuma.” Abateu depois: “Toda a gente me ofereceu dormida, mas eu não durmo. Só penso na minha casinha — eu tenho 57 anos, vivo aqui sozinha há 30. Na motorizada, tantas vezes ma quiseram comprar e nunca a vendi, porque era para as minhas netinhas. Nunca vi um fogo destes. Até remoinhos ele fazia!, era o demónio que ali estava.”

O estado da cozinha de Fernanda (Tiago Palma)
O estado da cozinha de Fernanda (Tiago Palma)
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