"Não havia um único bombeiro. Nada. Nada, nada. A população quase se metia à frente do camião, de joelhos, e não paravam”
A terra ainda continua a fumegar. Poucas árvores haverá por arder. Muitas queimaram rente às habitações. Cruzam os céus os Canadair. Os bombeiros já concluíram o rescaldo e abandonam. A normalidade regressará.
Não para já. Jafafe é só uma entre quatro aldeias de Águeda que sofreram entre segunda e terça-feira com um incêndio de grande fulgor, acentuado esse fulgor pelo vento forte, não tanto pelo calor — já que ao romper da manhã, quando chegou o incêndio às povoações, as temperaturas não eram tão elevadas quanto foram mais tarde.
Em Jafafe só se fala do fogo. Santiago e Cristina, casados, estão à porta de casa, garantem que foram dias “infernais” mas, ainda assim, “milagrosos”. “Milagroso porque só ardeu uma casa. Porquê? Porque a população esteve à altura, combateu um fogo sozinha. Sozinha”, garante Santiago. Cristina conclui: “Não havia um único bombeiro. Nada. Nada, nada. Passavam, a população quase se metia à frente do camião, de joelhos, e simplesmente não paravam. Não ajudavam”.
Como eles, muitos tentaram salvar as casas à força de braços e baldes. “Água não havia. Não tinha força. Nós temos poço, há vizinhos com piscina, e regávamos tudo, persianas, árvores, tudo.” Em 57 anos de vida e de Jafafe. Santiago diz nunca ter vivido algo semelhante. “Eram umas sete menos vinte quando eu me levantei para ir fazer o tratamento, porque eu faço diálise. Estava tudo limpinho, limpinho. Eu demoro 20, 30 minutos no tratamento. Quando voltei já isto ardia tudo! Parecia um inferno!”
Um vizinho mais novo irrompe na conversa. É Carlos. “É que isto é negócio, o fogo é negócio. Como pode ele começar em tantos sítios ao mesmo tempo? Impossível”, acusaria, enigmático. Cristina desanuvia e regressa às horas de combate “Olhe: fez-se noite de dia. As galinhas até recolheram, porque lá achavam que era mesmo de noite”. Riem-se. Santiago e Cristina entram para casa. Carlos pergunta se queremos ir ver a casa queimada. De habitação? Ou devoluta? “Da Fernanda”, responde.
Fernanda está a metros da casa, mas não entra. O exterior ardeu totalmente. Persianas já não há. Há estilhaços de vidros. A cozinha desapareceu, o telhado desabou. Resistiu uma pequena sala e dois ainda mais exíguos quartos. “Não consigo entrar, falta-me coragem, espreitei de fora, vi que do que sobrou, ardeu roupa, os móveis estão totalmente descolados. A cozinha é sucata. Su-ca-ta. Não aproveito nada”, lamenta. Entrará quando cair em si. “Eu sinto-me drogada, parece que tomei medicação. A minha cabeça ainda não entrou bem no que me aconteceu.”
O que lhe acontece foi sobretudo veloz. “Eu trabalho numa fábrica em Águeda. Peguei às seis da manhã. Àquela hora não havia fogo. Nada de nada. Às oito liga-me uma irmã, ‘Ó Nanda, tu vem para cá, que anda o fogo na tua casa!’ Não queria acreditar, mas vim. Quando cheguei, eram umas oito, já não se podia fazer nada, estava mesmo em cima de nós”, lembra, consternada.
Perdera-se a casa - na imagem de capa deste artigo -, e ainda mais lhe custou “porque tenho uma boca de incêndio ao lado e não funciona”, mas nem por isso se deixou abater. Não logo. “O que é que eu fiz? Fui proteger as casas dos meus vizinhos. Para não arder mais nenhuma.” Abateu depois: “Toda a gente me ofereceu dormida, mas eu não durmo. Só penso na minha casinha — eu tenho 57 anos, vivo aqui sozinha há 30. Na motorizada, tantas vezes ma quiseram comprar e nunca a vendi, porque era para as minhas netinhas. Nunca vi um fogo destes. Até remoinhos ele fazia!, era o demónio que ali estava.”