Na calada da noite, com uma bússola na mão e neve até à cintura, o russo Ilya atravessou a pé a fronteira para a Finlândia
Estacas e uma cerca. A fronteira entre a Rússia e a Finlândia, junto a Imatra. 19 março 2023. Foto: Alessandro Rampazzo/AFP via Getty Images

Na calada da noite, com uma bússola na mão e neve até à cintura, o russo Ilya atravessou a pé a fronteira para a Finlândia

Reportagem
Helena Lins

Imagem
André Lico

Edição de vídeo
Teresa Almeida

Grafismo
Matilde Candeias

Na maior fronteira da Europa com a Rússia, inúmeros negócios prosperaram com o dinheiro dos vizinhos do leste. A guerra na Ucrânia fez desaparecer os clientes. Antes da guerra, a Finlândia era o principal destino turístico na Europa para os russos. Agora, pôs fim a décadas de uma política de neutralidade e juntou-se à Aliança Transatlântica.

Nos protestos de 2020 contra o presidente Alexander Lukashenko, no poder há 29 anos, Ilya Kanatush prestou apoio psicológico a ativistas bielorrussos. Durante as manifestações de 2021 contra a prisão do opositor político russo Alexei Navalny, Ilya Kanatush apoiou ativistas russos. Quando Vladimir Putin ordenou a invasão da Ucrânia em 2022, “vi que não havia protestos na Rússia contra o que estava a acontecer. Percebi que não pertenço ali. E sair era o mínimo que podia fazer para expressar a minha discordância”, explica Ilya.

O psicólogo russo de 30 anos demorou três dias para tomar a “inevitável” decisão. Nem a inexperiência nas andanças do ativismo e dissidência o demoveu. “Os ativistas russos têm como regra ter sempre vistos prontos para o «grande» passaporte para se houver alguma coisa saírem rapidamente. Eu não tinha”. Decidiu seguir a velha tradição soviética. Foi de transporte, não especifica qual, de São Petersburgo até à estrada perto da zona de fronteira com a Finlândia. Também não especifica qual. Às nove da noite começou a caminhar. Foram cerca de 10 quilómetros a pé, na surdina da noite, por entre “terreno acidentado, pequenos rios e neve até à cintura”. Por volta das seis da manhã cruzou a fronteira com o país da União Europeia. Substitui a palavra medo por estranheza. “As emoções mais fortes foram na primeira hora. Era de noite, o tempo estava mais ou menos como agora, por volta de 0 ºC. No início apenas questionas o que está a acontecer e o que estás a fazer. Depois, habituas-te. Limitei-me a seguir a bússola para oeste”. Sim, a bússola. O telemóvel esteve sempre desligado para não ser localizado. 

Ilya Kanatush cruzou antigos territórios finlandeses invadidos pela União Soviética há oitenta anos. “Tal como está a acontecer com a Ucrânia agora. Oitenta anos passaram e nada parece ter mudado”, comenta Ilya Kanatush enquanto olha pelo vidro do café do hotel onde nos encontramos, em Helsínquia.

Nove meses depois de ter entrado sem visto, Ilya Kanatush conseguiu o estatuto de refugiado. Está agora focado em integrar-se na sociedade finlandesa. Enquanto aguarda que o seu diploma em Psicologia seja reconhecido, apoia como voluntário outros dissidentes russos  e refugiados ucranianos.

Num dos primeiros dias em Helsínquia, Ilya Kanatush participou numa manifestação contra a invasão russa da Ucrânia. Ainda tinha calçadas as mesmas botas que usou para cruzar a fronteira. Foto: cortesia de Ilya Kanatush

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Destino favorito dos russos

A invasão da Ucrânia acordou memórias e medos entre os finlandeses e espoletou um efeito dominó de decisões políticas históricas. Um mês depois do início da guerra, o governo finlandês suspendeu o comboio rápido que ligava Helsínquia a São Petersburgo em três horas e meia e que transportou mais de 4 milhões de passageiros desde a inauguração, em Dezembro de 2010, até Março de 2022. Uma medida que fez de Vainikkala, a dois quilómetros da fronteira com a Rússia, uma estação de comboios fantasma. Era a última paragem antes de entrar na Rússia, ou a primeira para quem entrava na Finlândia. Agora, de vez em quando, passa apenas um ou outro comboio de uma empresa privada. Não traz passageiros, apenas carga.

Há 43 anos, Jari Laihia trocou a pequena cidade de Lappeenranta, no sudeste da Finlândia, pela aldeia de Vainikkala, a 30 quilómetros de carro, por amor. Durante 25 anos geriu o restaurante Ukko-Pekka, o único da estação. Era também a mercearia da aldeia onde os cerca de 300 habitantes se cruzavam diariamente com turistas russos e viajantes de outras nacionalidades. Guardas de fronteira também faziam parte da clientela habitual. Havia noites de dança e de karaoke. Mas desde dezembro de 2022, quando Jari decidiu fechar o estabelecimento, há apenas silêncio. O negócio familiar que sobreviveu à pandemia com apoios do governo, não sobreviveu ao fim dos comboios. Com 61 anos, a Jari Laihia resta-lhe a pequena empresa de máquinas que criou ainda jovem quando regressou da tropa. Mas também ela estava ligada aos comboios. Dos 17 funcionários resta somente Jari. “Agora tenho uma coisa a fazer… vender as máquinas”, diz e ri. Quase todos os serviços desta pequena aldeia desapareceram. Vainikkala depende agora da capital da região, a cidade de Lappeenranta. Ainda assim, Jari Laihia mostra-se optimista. “Esta guerra vai acabar um dia e um dia estes comboios vão andar outra vez”. Acredita mesmo nisso, Jari? “Pode levar 10 anos”, diz e ri, outra vez.

Jari Laihia mudou-se para Vainikkala há 43 anos. Abriu um restaurante, uma mercearia e uma empresa de máquinas. Chegou a empregar 17 pessoas, hoje já só resta ele

No posto fronteiriço de Nujamaa, a maioria das faixas estão fechadas. O pouco movimento na estrada que liga a Finlândia à Rússia não justifica que o posto esteja em pleno funcionamento. Antes da guerra passavam por aqui camiões, autocarros, carros… Teemu Romppanen, guarda de fronteira há 25 anos, fala em cerca de 10 mil pessoas por dia. Quando Vladimir Putin decretou a mobilização parcial em setembro de 2022, milhares de carros russos fizeram fila para entrar na Finlândia. O governo finlandês reagiu e fechou as fronteiras aos turistas russos. Os vistos deixaram de ser emitidos com antecedência, explica Teemu Romppanen, e quem por aqui passa “tem de ter razões muito convincentes para justificar porque é que quer entrar neste momento na Finlândia ou no espaço Schengen”. Estudar, trabalhar ou visitar um familiar são algumas das excepções que permitem a um cidadão russo passar. Hoje em dia, Teemu Romppanen fala em cerca de 500 a mil pessoas por dia. 

De estacas de madeira a arame farpado

Mas a maior mudança foi mesmo a candidatura à NATO. Durante décadas, a Finlândia manteve uma atitude de neutralidade militar para com a vizinha russa, personificada na discreta fronteira de 1340 quilómetros – a maior da União Europeia com a Rússia – que pode ser facilmente confundida com uma normal cerca de jardim com estacas de madeira, se não fossem as placas coloridas a sinalizar “zona de fronteira”. Esta terça-feira, o país juntou-se à NATO depois de um rápido processo de adesão iniciado depois da invasão da Ucrânia.

A Finlândia controla a maior fronteira da União Europeia com a Rússia

Também a fronteira vai mudar. Os trabalhos de construção de uma vedação com cerca de 200 quilómetros, arame farpado e câmaras de vigilância já começaram. O objetivo é impedir a imigração em massa e aumentar a segurança militar. Vai ser erguida em zonas críticas. A primeira fase de três quilómetros já arrancou, na região de Imatra, um pouco mais a norte. Estará pronta no verão.

Apesar de todas as restrições e perda de neutralidade, a Finlândia continua disponível para receber dissidentes russos. Em 2022, registou 679 pedidos de asilo. Desses, 263 foram feitos depois de Vadimir Putin decretar a mobilização parcial.

Antti Häkämies nasceu e cresceu nesta região. É um habitante orgulhoso da terra. Apesar do frio e da neve o dia é de sol e o céu está azul. “Tiveram muita sorte!” Vive com a mulher Eveliina Lohko e os filhos em Lappeenranta, uma cidade muito procurada pelos russos pela natureza e tranquilidade mas, sobretudo, pelo comércio livre de impostos.

De acordo com um estudo da administração regional da Carélia do Sul, os turistas russos gastaram ali cerca de 310 milhões de euros por ano antes da guerra. Alguns vinham desfrutar do lago Saima, um dos maiores da Europa, outros vinham às compras dos produtos que o Kremlin deixou de importar em resposta às sanções europeias contra a anexação da Crimeia, em 2014.

“Num fim de semana normal, os supermercados aqui em Lappeenranta costumavam ter entre 15 a 20 autocarros cheios de pessoas a chegar para um dia de compras na Finlândia.” Enquanto conduz, Antti mostra-nos várias lojas e grandes armazéns, todos eles “duty free”. Nasceram e proliferaram com a procura russa. As lojas continuam abertas para os finlandeses, mas os cerca de 70 mil habitantes de Lappeenranta não são suficientes. Com a fronteira fechada aos vizinhos, não há clientes.

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