Medo, Vergonha, Sexo, Poder. Paula Rego, mulher sacrificial, entregue ao prazer e à culpa
Paula Rego

Medo, Vergonha, Sexo, Poder. Paula Rego, mulher sacrificial, entregue ao prazer e à culpa

Por
Anabela Mota Ribeiro

Jorrnalista, escritora e mestre em Filosofia. Autora do livro “Paula Rego por Paula Rego” (2016), que reúne cinco entrevistas realizadas entre 2003 e 2011.

Anabela Mota Ribeiro
Anabela Mota Ribeiro

Anabela Mota Ribeiro estava a caminho de Málaga, em Espanha. Iria participar numa conversa sobre Paula Rego no Museu Picasso, que inaugurou em abril uma exposição da pintora portuguesa. Foi durante a viagem, esta quarta-feira, que soube da morte de Paula Rego. Levava já escrita a intervenção para esse dia, sem poder suspeitar que aquela seria a sua última exposição inaugurada em vida, e que a conversa ocorreria poucas horas depois da notícia da sua morte. Aqui se publica esse texto, que manteve como base da sua intervenção inicial, e que, tendo sido escrito uma semana antes, começava assim...

A fala primordial de Paula Rego

“Se eu morresse, morria com O Anjo. Levava O Anjo comigo. É verdade. Ela é ao mesmo tempo um anjo da guarda e um anjo vingador. A sua missão é proteger e vingar. Traz os símbolos da Paixão, a espada e a esponja.” O Anjo foi feito no fim da [série do] Padre Amaro (1998).

Apesar desta relação com o quadro, apesar de estarem condensados nesta pintura assuntos fundamentais da sua obra, a artista considera que O Anjo não é o seu melhor auto-retrato.

Este anjo não tem a cara de Paula Rego. Mas não é preciso ter a fisionomia da pintora para ser um auto-retrato. Os seus retratos são uma colecção de máscaras. Os retratos são as narrativas que aparecem nos seus quadros, mais disfarçados, menos disfarçados.

O Anjo (pastel sobre papel montado em alumínio - 1998)

N’ O Anjo, a modelo é Lila, a enfermeira que emigrou para Inglaterra para acompanhar os anos de doença do marido de Paula Rego. Lila encarna a mulher portuguesa, o seu corpo traz o imaginário dos anos de formação em Portugal.Paula gosta especialmente d’ O Anjo, d’ A Filha do Polícia (1987), As Criadas (1987), À Janela (1997).Quem é então Paula Rego? Primeira resposta: ela é sempre uma multiplicidade, uma confluência de opostos e de pulsões contraditórias. Como diz a sua filha mais velha: “Com ela nunca é acariciar ou bater, é sempre acariciar e bater.” Paula é esta tensão. A pintura é o instrumento de aglutinação destas linhas narrativas.   

Paula Rego
Paula Rego

Vicky, a segunda filha, que é actriz e posou várias vezes para os quadros da mãe, é eloquente: "Ela é o trabalho dela e o trabalho dela é ela. Não lhe é possível livrar-se dessa realidade, desligar. [...] Havia sempre alguma coisa que não era possível atingir na mãe. A mãe sempre ergueu uma espécie de parede entre ela e todos nós. Não sei. O pai era mais real, por assim dizer."

No livro Paula Rego por Paula Rego, o mesmo é expresso pelos três filhos. “O estúdio era realmente o seu santuário, e privado, quer fosse a adega, na Ericeira, ou o quarto do andar de cima da nossa casa, em Londres”, conta Vicky.

Paula Rego com Nick Willing e os filhos, 1970
Paula Rego com Nick Willing e os filhos, 1970

Cas guarda também essa memória. “Passei a minha primeira infância na quinta. O pai e a mãe usavam a adega como estúdio. Ele, o lado esquerdo, ela, o lado direito. A pintura foi sempre a actividade mais importante e o tópico central de conversa às refeições. Bons, maus, pintores interessantes eram discutidos. [...] Não me lembro de a minha mãe alguma vez ter falado de técnica, embora pudesse estar orgulhosa de uma coisa especialmente bem desenhada. O que mais a preocupa é o conteúdo. Frequentemente, o que ela pede como presente de Natal é uma ideia”.

Uma ideia, uma história para pintar. O resto é trabalho solitário, focado, árduo.

Se Paula é o seu trabalho, vamos procurá-la nos quadros.

Durante anos, o seu trabalho foi ignorado em Inglaterra, e foi tratada com condescendência quando tentou arranjar um galerista. Vicky lembra-se de perguntas estúpidas, como: “Ainda continua a pintar?”. Basicamente porque Paula era mulher e não era suposto que uma mulher fosse uma pintora, reconhecida, séria. Vic Willing é que era a estrela do casal. Era o artista de quem se espera tudo.

Paula Rego
Paula Rego

No filme Paula Rego - Histórias e Segredos, Cas é explícita quanto a esta cisão entre a mulher-mãe-esposa, obediente, domesticada por uma educação castradora do feminino, e uma artista fulgurante que "despeja tudo" no quadro. No entender da filha, é por não ser capaz de dizer "não" na vida real, pela timidez, pela submissão ao mundo exterior, que os quadros são tão poderosos e intensos. A arte é uma forma de exprimir a sua visceralidade, o seu lado indómito, a sua identidade mais autêntica. E a arte é uma forma de se salvar.

"Pintar quadros é como ser um homem, tem a ver com o nosso lado agressivo, é o mesmo tipo de impulso, de ofensiva. Ter bebés, estar com eles em casa, é parecido a fingir que brincamos às casinhas quando somos crianças. É quando estou a pintar um quadro que me identifico mais comigo mesma".

A expressão que Paula mais recorrentemente usa para designar aquilo que faz, ou seja, pintar, é "fazer bonecos".

Tácteis ou desenhados, são bonecos. E pode acontecer que os bonecos toscos que constrói (sobretudo estes) sejam similares aos bonecos da infância, a bonecos de brincar, e que tudo isto seja uma forma de brincar às casinhas. E desenhar é descrito, em muitos passos do seu percurso, como um riscar feroz, infantil, experimental.

Paula confessou-me numa entrevista que há um quadro especialmente revelador: Target (1994), o alvo. “É a menina de costas, a abrir o vestido, cúmplice na maldade que lhe estão a fazer. Vão dar-lhe um tiro nas costas, ou uma seta, como ao São Sebastião. (Gosto muito do São Sebastião por causa das setas.) E ela está a ser cúmplice naquilo que lhe estão a fazer: está a abrir o vestidinho para lhe fazerem mal. É um quadro que me saiu muito simples e que tem muita coisa de que gosto”.

Target (1995)

 

Frequentemente há uma rendição, um entregar-se ao carrasco, àquele que tem poder e que tanto se teme e se ama – e há um prazer nisso.

Paula Rego é esta mulher, sacrificial, entregue ao prazer e à culpa.

Estes temas atravessam as diferentes fases da sua obra. A expressão plástica, num percurso tão longo e fértil, é diversa. Mas as obsessões da artista não são tão diferentes assim. O resumo de Paula é este: “Mandar nas pessoas. Obediência. Subversão. Fazer bem às pessoas más, fazer mal às pessoas boas. Poder. Desigualdade entre os sexos. Os homens mandam nas mulheres em geral. As mulheres às vezes mandam, mas é de outra maneira. A relação entre os sexos. É isso. Não é preciso mais. São tudo coisas caseiras. Tudo se passa no espaço doméstico.”

Untitled (Girl Shaving a Dog) [Sem título (Menina a fazer a barba a um cão)], pintura da série A Menina e o Cão, de Paula Rego
Untitled (Girl Shaving a Dog) [Sem título (Menina a fazer a barba a um cão)], pintura da série A Menina e o Cão, de Paula Rego

Ou seja, as relações de poder, o lugar da mulher, a visceralidade do amor. A subversão social. As verdades ditas através de animais. É isto que se revela no universo pictórico de Paula Rego. As suas palavras essenciais: Medo, Vergonha, Sexo, Poder.

A famosa série A Menina e o Cão retrata a última fase da relação de Paula com o marido: o cuidado, a dependência, a ternura. Nesses últimos anos, Vic vivia confinado ao seu quarto. Paula regressava ao fim do dia, desenrolava o que tinha pintado, pedia-lhe opinião.

Estava a pintar A Dança, uma tela imensa e triste, quando ele morreu. Demorou seis meses a completá-la. “A fumar brutalmente e a pintar.” Ficou entregue a si própria. Sem ninguém a quem perguntar. Perguntar se está bem, perguntar o que fazer. Seguiu o conselho de Vic, a dádiva, segredado pouco antes de morrer: aprendeu a confiar nela.

Dance

 

Se é verdade que a produção de décadas não é uniforme, o traço, o desenho, são o elemento comum. “Todo o risco é muito importante. A pressão, o riscar, que tem também a ver com o ferir. Todo o trabalho, desde o princípio, envolve desenho, mais do que pintura. O traço tem de dizer qualquer coisa, senão seriam riscos.”

A pintura – e, antes dela, o desenho – constitui uma fala primordial, uma língua materna, onde Paula Rego se reconhece e afirma enquanto pessoa e enquanto criadora. Pintar é uma forma de se escutar a si própria. Uma auscultação íntima que conhece som e conteúdo no momento em que se ausculta. E assim se torna expressão, língua visível.

Passa-se assim: “O Pillowman era o meu pai. É a história dele, verdadeira. Não sei porque é que o Pillowman era o meu pai, mas compreendi que era. Estava no estúdio a falar com o Marco Livingstone, e, na nossa conversa, compreendi o que tinha feito. [...] Normalmente [compreendo] depois de desenhar. Às vezes nem isso. Outras vezes, antes de desenhar. Depende.”

Pintar é um modo de trazer à luz, de dar à vida qualquer coisa que antes só existia no reduto íntimo de cada sujeito. (Curiosamente, há imensas grávidas nos quadros de Paula Rego.)

Pintar parece ser a sua forma primordial de pensar, de se pensar, em liberdade. Parece ser a sua forma de aceder a uma verdade que era desconhecida e que se revelou no gesto pictórico.

Toda a sua genealogia familiar é convocada, mas o seu país e a sua cultura também. É curioso que, mesmo vivendo em Londres desde os 17 anos, nas suas referências a artista continue a ser, sobretudo, portuguesa.

Sem uma história, um enredo, nada existe. A palavra, a literatura ocupa um lugar central. Todavia, outras disciplinas têm presença significativa na sua obra. A dança, o teatro, o cinema, a escultura, a própria pintura. As representações de cada uma destas são abundantes. Podemos mesmo dizer que elas se entrecruzam permanentemente.

Carta de Paula Rego a Júlio Pomar, depois ver uma retrospectiva de Picasso no Grand Palais, em Paris, 1979-80.  Imagem da Fundação Júlio Pomar

 

No início do filme Paula Rego - Histórias e Segredos, de Nick Willing, ouve-se a voz da pintora a explicar a aproximação a um assunto. Quando tem dúvidas quanto ao local que cada personagem e cada objecto deve ocupar na micro-narrativa que é o quadro, regressa a um sítio que conheceu em criança. Desenha a sala que era a sala da sua infância e põe a história lá dentro. A sala da casa do Estoril onde viveu com os pais até se mudar para Inglaterra. É o seu território, o seu refúgio, o que a sustenta.

The Cadet and his Sister (O cadete e a irmã), 1988, Paula Rego
The Cadet and his Sister (O cadete e a irmã), 1988, Paula Rego

Paula Figueiroa Rego nasceu no seio de uma família da alta burguesia. O pai era um engenheiro electrotécnico, anglófilo, que ouvia fervorosamente a onda média da BBC para saber notícias da Guerra. Tinha uma espécie de cinema em casa e uma “Divina Comédia” ilustrada por Gustave Doré. Foi sempre um grande apoio para Paula, inclusive quando a filha engravidou, solteira, num país tão conservador como Portugal, em plena ditadura.

A mãe era uma senhora elegante, que deixou em Paula o gosto pelos vestidos. “Íamos a Lisboa às compras, de comboio, e eu adorava. A minha mãe punha o chapéu, arranjávamo-nos muito bem, com luvas e sapatos, e lá íamos para o Chiado. Eu tomava sempre um café glacé com bolas de Berlim”. Folheavam as revistas de moda. Tiravam os modelos. A menina Francisca vinha a casa costurar. Há uma blusa desse tempo que Paula conserva. Integrou-a num quadro da série da vida de Nossa Senhora.

Paula Rego, investida como Dame Commander pela Rainha Isabel II, no Palácio de Buckingham, em Londres, em outubro de 2010. (Dominic Lipinski - Getty Images)

 

O pai e a mãe encarnavam o mundo do Estoril. Aveludado. De hierarquias vincadas, regras estabelecidas. A menina devia aparecer na sala de luvas brancas, se havia visitas. Comportar-se, obedecer. “O maior problema toda a minha vida tem sido a incapacidade de me exprimir frontalmente, dizer a verdade. Os adultos tinham sempre razão: a menina ouve e não responde. Responder, contradizer, era a morte, era cair de repente num vazio terrível. Esse medo nunca me há-de deixar. Vêm daí os disfarces infantis, os disfarces femininos. Menina pequenina, menina bonita, mulher atraente. Daí a evasão de contar histórias”. (conversa com o biógrafo John McEwen)

E agora, e o futuro?

“E agora vamos ver se vem alguma coisa interessante, está-se sempre à espera do que se vai fazer, não é verdade? Não importa nada o que se fez até aqui. Importa até certo ponto, mas não é suficiente. O que importa é que o se vai fazer, o encher-me de medo.”

Paula Rego pronunciou estas palavras num tempo de consagração, quando se inaugurou o seu museu Casa das Histórias, em 2009. Que uma artista continue a sentir este medo e este desejo de futuro, com a sua idade e o seu estatuto, manifesta uma imensa vitalidade e génio criador.

 

Anabela Mota Ribeiro escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

Paula Rego e Anabela Mota Ribeiro, em 2011

 

 

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