Luís Paulo, o herói que salvou uma aldeia inteira com um trator que só pega de empurrão
O dia era de festa na aldeia e veio o fogo. Os bombeiros nunca apareceram. Agora, querem fazer uma estátua a este estudante de engenharia. Soutelo é em Castro Daire e esteve dois dias debaixo de um incêndio. Um grupo de jovens guiados pelo “comandante” Luís Paulo, que não é bombeiro, impediu perdas: de casas e de vidas. "É fácil agora dizer que não senti medo. Claro que senti. Senti muito. Mas por sentir medo nos outros, não podia cruzar os braços, estar parado.”
Esta ainda não é a história de Luís Paulo e da Massey Ferguson que ele comandou.
Estamos em Soutelo, aldeia de Castro Daire assolada por um violento incêndio. O fogo veio de noite, segunda-feira. A população concentrara-se no largo. O dia era de festa, celebrava-se a sua padroeira, Santa Eufémia. Os emigrantes regressaram, fazendo duzentos dos cem que tem Soutelo. Tocava um conjunto de baile. Até que alguém alertou:
— O FOGO JÁ VEM NO CANADO!
As horas que se seguem são de agruras e de heroísmo. Encontramos Tony, “Tony do Soutelo”, no largo. É emigrante em Itália há duas décadas, “curiosamente trabalho na Belfor, que é uma empresa de recuperação de incêndios, mas não florestais”. Veio sábado para um casamento. Tony relata segunda-feira: “Eu tenho 44 anos. Nascido no Soutelo. E digo-lhe, eu nunca vi isto na vida. O fogo veio lá de cima [aponta na direção das serras], das Alcavadas, Mões, Lamas, Arcas, atravessou o cemitério, atravessou o campo da bola. E chegou aqui rápido, às casas. O conjunto parou de tocar, arrumou tudo e fomos ajudar como podíamos a apagar o fogo”.
Tony leva-nos pela aldeia. Subimos à rua da Carvalinha, a mais alta no Soutelo, onde termina não há mais nenhuma casa. “Aqui é a minha casa, ali a da minha tia… Isto é tudo família. Ora vê! Ora veja: o fogo parou ali.” Parece apagado. Terá sido trabalho dos bombeiros? “Não, não. Aqui não veio nenhum bombeiro, só andaram lá para cima, na mata, e era só uma corporação. Isto foram os jovens, só com um trator, que tinha duas cisternas de mil litros atrás. Enchiam num tanque, despejavam, enchiam outra vez, despejavam. O trator é do Luís Paulo. E é nosso herói. A sério, façam-lhe uma estátua no Soutelo.”
Esta é a história de Luís Paulo e da Massey Ferguson que ele comandou.
Tony diz que ele não vive longe, “pode é não estar em casa”. Luís Paulo é estudante de engenharia civil no Politécnico de Viseu. Tem 21 anos. Enquanto descemos rumo à casa deste rapaz feito herói, e a quem agora apelidam de “comandante”, Tony atalha e aproxima-se do tanque que fica atrás da sua casa. “Enquanto o nosso Luís Paulo vinha e não vinha, eu ia ali buscar água, enchia baldes, deixei à porta da minha tia, ela molhava as nossas coisas. Esvaziei um tanque à baldada sozinho!” Descemos. Nova paragem. A tia é emigrante no Luxemburgo. Está na varanda de casa. Tem 56 anos. Como Tony, não tem memória de incêndios em Soutelo, “e nem os antigos têm”. “Houve um em 2017, mas não passou do pinhal.”
Discutem os motivos, e motivações, do incêndio. “Estavam 28, 29 graus. Havia muito vento, picos de vento de madrugada”, explica o sobrinho. E responde a tia, Maria do Céu: “Oh Tony, um fogo a começar à noite?! Mas alguém acredita? É posto! É posto… E quem o fez, viu que era o dia perfeito, a festa, o calor, o vento”. Tony lança um diz-que-disse: “Já me disseram que ouviram motas à noite na serra… Não sei. E havia pessoas que disseram que ouviram explosões no pinhal. Não sei”. “E a limpeza? É o que se vê. Limpa-se ao pé da casa e é só”, lamenta Maria do Céu.
Descemos rumo à casa de Luís Paulo. “Mas isto não foi só ele. Seriam uns quatro, cinco, seis jovens. E a Andreia. Mulheres também, a Andreia.” Sugere-nos que conheçamos Andreia, “é de caminho”.
Andreia desfolha espigas. Ao lado, fica o tanque que serviu para atestar o trator de água. “Só páramos ontem [terça-feira] de noite, foram 24 horas a encher o trator. Estou cansada, muito, muito, muito cansada. As cisternas demoravam 15, 20 minutos a encher. Já perdi a conta às vezes que enchemos. Mas tinha de ser. Tínhamos casas em risco, pessoas aflitas. O trator do Luís Paulo salvou muitas casas”, elogia a amiga, futebolista de 25 anos.
A casa de Luís Paulo é logo à frente. “Oh que caralho!”, exclama Tony, detetando um reacendimento. É pequeno, à frente da casa de José. “Ó ZÉ MANEL! ZÉ MANEEEEEL!” Não estava por casa. Tony olha em redor, procura uma enxada, na tentativa de o travar, e, não encontrando, diz: “Bem, o que tinha para arder, já ardeu”. A queimada extinguir-se-ia brevemente, sem vegetação por onde avançar, pouco sobrou de três dias de incêndio.
Chegamos finalmente à casa de Luís Paulo. A mãe diz que ele não está, que está nas Eiras, “porque o fogo voltou para lá”. “Mas liguem-lhe, vão ter com ele”. Debita o número de memória. “Então não sei, claro que sei. Trago o meu filho sempre comigo, na memória e no coração.”
O fogo de que se fala, quando chegamos às Eiras já acabara. Luís Paulo, de trator, um Massey Ferguson, vermelho, já antigo, apagara-o.
Para trazer o trator mais perto, engata uma mudança na ribanceira. “A Massey só vai lá assim, de empurrão”. Batizou o veículo no feminino. Usa-a nos trabalhos agrícolas, diz que nunca vira de perto incêndios, “isso só vejo na televisão”, tão pouco quis ser bombeiro, pelo que nem ele nem a Massey sabiam bem o que faziam na segunda-feira. E na terça.
“Ainda não dormi. Esta quarta-feira parei duas horas, por agora chega. Quando isto acalmar, durmo. É quando tiver de ser.” Sobre o combate ao fogo, diz que usou da “intuição”. Ri-se quando se referem a ele como o “comandante”, recusa louvores ou heroísmos. “Chamei dois ou três, o pessoal alinhou. Depois já éramos uns cinco. E fizemos o que nós podíamos. Era encher e ir, encher e ir.” Diz que tiveram o incêndio sob controlo meia dúzia de vezes. “Mas vira o vento e nem nos dava qualquer hipótese.”
No começo, quando à festa da aldeia chegou a notícia do fogo, “eu não quis acreditar”, mas acreditou quando reparou “no céu todo negro”. Não hesitou nem um instante e pegou na Massey. Avançou sobre aquele fogo enquanto avançava o fogo sobre as casas, centenas de casas. “É fácil agora dizer que não senti medo. Claro que senti. Senti muito. Mas por sentir medo nos outros, não podia cruzar os braços, estar parado. Não sei se fui ou não inconsciente. Sei que fiz o correto, socorrer.” Rapidamente se aperceberam os populares do socorro. “Alguns ligavam, outros era na rua, abordavam-me.” De tanto responder, o corpo fraquejou. “Ufffff! Senti cansaço mal comecei, ao fim de umas poucas horas. As pessoas dizem-te que não é assim, que é ao parar que isso se sente. É mentira. Sentes. Sentes mas nem pensas. E continuas”, garante.
Não pensava no cansaço mas pensava quando acabaria: “Até que desisti de pensar. Apagávamos, reacendia. Apagávamos, reacendia. Seis, sete vezes. Voltava sempre.” Lamenta não ter recebido apoio, não da sua vizinhança e jovens amigos, “toda a gente se uniu”, mas dos bombeiros. “Percebo que não poderão estar em todo o lado, tudo bem, mas as viaturas vieram cá à noite e foram-se embora. Não voltaram quando piorou, de madrugada. Meios aéreos também nunca chegaram. Três dias assim. Olha, fizemos o possível. Liguei cinco vezes para eles [bombeiros]. Responderam-me sempre ‘já temos essa informação, já temos essa informação’. Desisti de ligar e lutei com o que tinha.”
Diz que sentiu “tristeza, raiva e impotência”. “O que fazemos parece-nos sempre pouco.” E a raiva? “Claramente alguém meteu este fogo. E sinceramente nunca entenderei.” A quem o fez, se fez, seja por patologia ou por negócio, Luís Paulo fala diretamente. “Aos incendiários, digo que não podem estar bem consigo próprios, que precisam de ser ajudados. Isto é o pior que se pode fazer. Ameaçar casas, ameaçar vidas! A quem o faz por interesses económicos, gostaria de, olhos nos olhos, dizer-vos: para se ganhar dinheiro não é preciso fazer mal aos outros. Quem faz isto, quem destrói a natureza assim, é triste, é alguém triste”, acusa.
Por fim, uma pergunta que importa: como soube ele do fogo nas Eiras, do reacendimento? “Eu estou sempre atento. Ainda estou. Vejo o fumo, pressinto incêndio e vou para lá. Mas hoje não, curiosamente. Eu fui à universidade e ligaram-me, disseram-me que o incêndio voltou. Regressei depressa, 20 minutos. Depois peguei no trator e apagou-se.”