Incêndios: as imagens que gostava de nunca ter gravado
Na madrugada de 18 de setembro o fogo batia à porta de Maria da Graça, na pequeníssima povoação de Ossela, mas não chegou a entrar. Ficou-se pelas traseiras, onde uma habitação devoluta foi reduzida a uma paisagem tão brumosa e enfumaçada que só me foi possível observá-la detalhadamente pela lente da minha câmara. Sem que eu me apercebesse semicerrava continuamente os olhos e racionava a minha respiração, com uma máscara no rosto que guardei já dos tempos da pandemia. Previ que voltaria a ser necessária e acertei. Quem me dera ter estado errada.
Ali, no pequeno terraço da senhora que, desgostosa, implorava a Deus por “uma chuvinha”, eu e a João contraíamos todos os músculos do nosso corpo para não descortinarmos as nossas emoções. “Que direito tínhamos, ao lado de quem quase viu uma vida inteira a ser-lhe roubada pelas chamas?”, questionei-me várias vezes. Os moradores estavam esgotados: uns ainda lacrimejantes, outros visivelmente desiludidos. Um afago e uma palavra de alento eram o mínimo que duas intrusas como nós, ainda que com as intenções certas, podíamos oferecer em troca dos seus desabafos conjugados com uma fuga abrupta assim que eu lhes apontava cuidadosamente a objetiva.
Adelina, uma vizinha de 64 anos, permitiu que captasse a sua indignação. Nunca vira nada assim e sabia que nunca mais dormiria direito. E lá estava ele, o afamado sentimento agridoce que (acredito que) muitos repórteres reconheçam no terreno. Defendo obstinadamente que em jornalismo não basta um texto bem escrito para levar o leitor a compreender a história, não sou capaz de descrever a dimensão do sofrimento que presenciei num só parágrafo. É preciso, sim, dar-lhe corpo para fazer chegar a mensagem. Mas em situações como esta, a busca incessante pelo aflição de terceiros pode ser rapidamente confundida com desrespeito, indiferença e até uma certa curiosidade mórbida, depositando em mim o peso da culpa perante a mais ínfima possibilidade de tal acontecer.
Nove dias depois lembro-me daquela experiência à medida que reúno todos os vídeos que recolhi - e que partilho juntamente com este texto. “Escolhe o melhor material e faz a reportagem das reportagens” pediu-me o Pedro. Sento-me pela primeira vez desde a fatídica e inesperada semana, com disponibilidade suficiente para o fazer. A compilação ficou concluída em poucas horas, depois de testar várias sugestões que acabei por recusar. Deixei as imagens exatamente como estavam: sem filtros preto e branco num cenário onde já pouca cor restava, sem slow motion, sem exacerbar o dramatismo que os próprios acontecimentos carregam sozinhos, apenas as mulheres, homens e crianças que tão generosamente nos deixaram estar ali, a observá-los, a ouvi-los.
Mas nem tudo a minha câmara filmou. Tenho 29 anos, seis anos de jornalismo e um repertório de incêndios substancialmente curto, pelo que o entusiasmo inconsequente - talvez próprio da juventude - me levou a correr em direção ao perigo, assim que me deparei com uma nuvem de fumo a crescer entre os eucaliptos, no Carvalhal, muito perto de Sever do Vouga. Sentia o calor das chamas intensificar-se a cada passo que dava e o ar a tornar-se irrespirável. À minha frente, dois homens travavam sozinhos uma batalha com muito parco armamento: uma mangueira, um balde e a água de um pequeno trator verde que quase me chegava aos joelhos. Numa fração de segundos senti medo pela primeira vez, e esse não é passível de ser gravado. Agora que penso, desejo nunca ter de o fazer.